7.10.22

#2547

Dos corsários

nem a fazenda

se aproveita.

 

[Trova dos conformistas]

6.10.22

Cordilheira

Serve de afeição

a cordilheira entrançada

os folhos revirados como se fossem

as entranhas viradas do avesso

que é onde se atesta

a têmpera de que versam as entrelinhas.

No bojo que desalinha do modo

a cordilheira contém

as rugas da palma da mão

fica à mercê desta cartografia

desligada de tudo

frágil

tão frágil que nem parece

o sinaleiro do dicionário sem autoria.

À vista desarmada

limitada pela miopia da distância

dir-se-ia da cordilheira 

ser uma cortina de ilusões

o logradouro 

onde se entretêm os falsos letrados.

Não é dessas cordilheiras 

que se compõe a minha carne combustível:

os veios que rompem como arestas 

balbuciam as dores excruciantes

como 

as que mortificam 

misantropos voluntários.

#2546

Não há 

uma maneira má

de dar 

uma boa notícia.

5.10.22

#2545

O adeus que se perpetua,

a morada da apatia

no medo que tem âncora

no passado.

Os maus são uma minoria

Os maus são uma minoria 

– era da lavra de um espelho

onde se abastavam as desmedidas

e ninguém rimava com ilusão.

 

Os maus são a minoria 

– sempre que os ventos 

mugiam os tetos plúmbeos

e só os desatentos fugiam do Éden.

 

Os maus, minoria 

– que uma centelha refulgente

em seu ocaso improvável

devolve os férteis frutos às mãos

e os desvalidos perdem a linhagem.

 

Os maus são uma minoria 

– da tença de quem esgota a inverdade

e dela lança a sementeira 

que estilhaça lugares-comuns delapidados

para um fogo de artifício ao menos extasiante. 

4.10.22

#2544

O amoedado estiolar

à medida 

que o outono se afiança

na medida da decadência. 

Injustiças indocumentadas (27)

A lagoa

só pode ser um lago pequeno

se o feminino for o santuário

da pequenez.

Injustiças indocumentadas (26)

Se a lagoa

é um lago pequeno

os farroupilhas da nova língua

andam distraídos.

3.10.22

Injustiças indocumentadas (25)

O malmequer

não pode ter querença

de nome de flor.

Atrocidades

Se a voz sobe à parada

e desfila

como se entoasse

botas cardadas

a vil menção, desonrosa,

de todo o arsenal promitente

dos Homens saber-se-ia a sepultura

onde em estado terminal

se confundem com o selo de garantia

da sua grandeza.

 

Mas a voz é eunuca

partidária das fragilidades escondidas

um hino lancinante

ao desespero mascarado de afoiteza.

 

Nos teatros que não interessam

passeiam avinagradas falas

embotadas pelas balas dilacerantes

devolvidas

como vingança inadiável

sobre os beligerantes sem máscara.

#2543

Não encomendo

a bandeiras

o esconderijo da nudez.

2.10.22

#2542

Ordeno a libertação do verbo,

a única lei legítima.

Um espelho de chuva

Há lágrimas

que não são prantos. 

Derramadas pelo céu

são mecenas do outono

(a preferida estação).

1.10.22

Injustiças indocumentadas (24)

Se o primeiro milho é para os pardais

para quem será o segundo

(e o terceiro e o quarto e o quinto e)?

#2541

O clero,

clemente,

tão atencioso

com os prazeres 

dos paroquianos.

 

[Oxímoro]

30.9.22

Tirania do des-saber

Desde o lugar onde estou

dou à dúvida o benefício metódico. 

Dos cultores das certezas afiveladas,

pederastas dos des-saber,

fujo como se uma dissidência matriz

ditasse o sentido único

(e entro em contramão,

concedo,

por negação do metódico benefício da dúvida):

dos lugares-tenentes de tão ousada

ausência de dúvidas,

deles que já têm respostas no coldre

antes de haver tempo para o lugar das perguntas,

quero saber ser meu paradeiro

um antípoda lugar. 

Dos empobrecidos espíritos,

macilentas imagens que se autorreproduzem

ao sentirem a sua proclamação 

no espelho em que admiram,

quero ser antítese:

deste ensimesmar todavia autista,

em fuga dos predicados do muito mundo lá fora

tão maior do que a sua pequenez, 

espere-se apenas 

colheita sofrível. 

Injustiças indocumentadas (23)

Uma estrela cadente

não é uma estrela decadente;

uma estrela decadente

pode ser uma estrela cadente.

#2540

As palavras cruzadas

são como

as pernas cruzadas.

 

[Insinuação]

29.9.22

O jogo para depois

O que se joga depois,

as armas deitadas na vertical

dando estuque às paredes estilhaçadas,

e todas as luzes apontadas

ao luar seráfico que se agiganta contra o dia.

 

O que se joga depois:

as peças sublevadas

contra o despedaçado anfiteatro

por onde passam as artérias decadentes

o sangue vagaroso

as estrofes mundanas que se seguem

ao silêncio diligente.

 

Cortam-se a eito as arestas que doem

e fica o vazio

um imenso lugar à espera de paradeiro

à espera que o colonizem.

Não serei eu

o agente escolhido

que a minha vontade é indisponível

e da noite levo os cestos vazios

para depois neles juntar todas as mãos idas

e chamar ao medo os nomes mais feios.

 

Deixo a espada hasteada 

para destroçar os peões,

a quem chamo mastins.

 

O que se joga depois

é só outro jogo à espera de vez.

As páginas

não são diferentes 

de outrora,

contra as esperanças fermentadas

no melhor mel.

#2539

Dou ao vagar

a vaga imprecisa

antes que vague

na vaga excruciante

da maré.

28.9.22

Ferrugem

Feita a finta ao finório

faltava furtar ao farsante

o fruto fruste em fábula final. 

Falei ao fiável

fugindo da frustração fiel

no fogo fermentado no facho fecundo. 

Não é ao furibundo,

o furtivo francês em força fatal,

que a festa se afidalga:

o forte fundiu-se na fervura tão fútil

e a farda enfastiou-se no fácil farejo. 

#2538

Não estou convencido

que a teoria da conspiração

seja o consistório da prática.

27.9.22

Das enciclopédias que não interessa dar parte

As portas duras 

tiram a alfândega da letargia. 

Dizem:

há fronteiras

outra vez

onde já antes tiveram praça. 

Ao menos 

sabemos

que o sangue não obedece

aos impedimentos dos burocratas

das almas derrotadas pelo nanismo

dos que metem baias nas pessoas

só porque têm diferentes falas

e culturas e costumes

e tornam essas baias em metáforas

de balas. 

Quem inventou as fronteiras

devia ser condenado ao olvido

e rasgadas seriam 

as páginas a eles dedicadas 

na enciclopédia dos saberes.

#2537

Seja feito de asas

o idioma apurado

e o mar sem fim

por cima das fronteiras.

26.9.22

Notas avulsas do dia avulso

Notas do dia:

a nortada

tempera o Outono

ainda madraço;

 

contra os impropérios

e outras miopias mentais

as bocas

todas as bocas 

– sem exceção – 

não podem

não devem

ser caladas

ou temos o dever de arcar

com não solicitados tutores

que apascentam a moral 

que não lhes diz respeito

(a que a cada um pertence)?

 

a volumetria da acefalia

precisava de ir a termas

só para tentar uma cura;

 

Berlusconi foi retirado

do cemitério;

 

houve um rapaz

perdido no meio

de uma roda de bicicleta 

furada:

jurou

como se fosse preciso jurar

que fora muito diligente

e jurou ainda

que não sabia como acontecera

a avaria 

– e eu lembrei-me do “Avarias”

a maratona minimal repetitiva;

 

para honrar a rotina

(e a monotonia acrisolada)

o comentador-geral do reino

comentou

sobre variegadas pendências;

 

ao menos sei

que outubro vem depois de setembro

sem ao menos pressentir

nas sílabas de outubro

se este palco contínuo

risivelmente contínuo

se encerra na decadência do tempo.

 

A palavra de passe

do dia 

é

 

remediar.

#2536

Arrancam-se as teimas

no tirocínio da tempestade:

a cólera 

não é a moeda forte. 

25.9.22

Injustiças indocumentadas (22)

Ao parecer de César 

não basta ser mulher, 

tem de ser sério.

#2535

Não percebo

por que ainda ninguém inventou

gurus de autoajuda

para ensinar a sair de escadas rolantes.

Sociedade Anónima

Longa se torna

a estrada

no trono largo

em que tem estrado.

Neste estado letargo

tarda o lastro

e nas tornas se estuda

a litania estrénua.

Torna longa

a estrada

e larga no estirador

a trova que incendeia

o estridente lugar.

24.9.22

Injustiças indocumentadas (21)

Sete

são as vidas

de um gato.

Ainda está por provar

o exercício cabalístico.