24.10.22

#2564

O adubo

enxerta-se nas veias

e o sangue cresce,

lunar.

23.10.22

#2563

Dar um jeitinho,

ó povo

pequenino.

22.10.22

Injustiças indocumentadas (34)

Nem toda a mostarda

sobe ao nariz.

#2562

Salvo-conduto

cheio de habilitações

mente por nós

agora e na hora

da nossa hipocrisia.

21.10.22

Buenos Aires (promessa)

Ouvimos

em surdina

os verbos esquecidos. 

 

Lamentamos

em coro

as páginas desfalecidas. 

 

Avisamos

o passado

para não ser vulto. 

 

Arrefecemos

em segredo

a candeia do medo. 

 

Habitamos

de corpo inteiro

o sangue crepuscular. 

 

Admitimos

nas nossas mãos

as bocas impacientes. 

 

Resolvemos

sem aviso prévio

as rugas que adejam no ocaso. 

 

Desenhamos

em sílabas desabituadas

os labirintos que se antecipam. 

 

Fintamos

com a destreza do Maradona

as trovoadas impertinentes. 

 

Marcamos

nas costas do segredo

o lugar em Buenos Aires.

#2561

Os rostos 

encenam os véus

que deixam as almas

sem tradução.

20.10.22

Manifesto (à mente que manifesta sem mentir não se atirem pedras)

Não abro mão

da coroa de espinhos

da tabuada dos sete

do rigor do Correio da Manhã

da feijoada sem tripas

da literatura que é uma chaga

da prolixa fala dos aspirantes ao estrelato

dos negociantes e dos regentes em concubinato

da D. Graça da DGS

dos gurus condutores de almas

dos sebastiões em que o povo insiste

na diarreia verbal de S. Exa. 

(o comentador incidental do reino)

dos fingimentos que se fingem a si mesmos

dos condutores que anularam o pisca

do incrível otimismo nacional

e do seu gémeo separado à nascença

o derrotismo federalizado

dos chicos-espertos (essas aves abundantes)

do ministro que ainda não percebeu que já não é

das mentiras que disfarçam as suas próprias farsas

dos agelastas inconsequentes

dos ignorantes que têm sempre uma opinião

dos eruditos do alto da sua pança farta

dos parasitas montados na ética republicana

nos aríetes das moralidades (sem exceção)

dos juízes em causa alheia

dos tribunícios sem palco que não seja o seu espelho

dos que tropeçam no conhecimento de tudo

(vulgo: tudólogos)

do Galamba

dos inovadores semânticos

dos tropistas das modas

da pandemia de influencers

do esgoto terminal que desagua no horizonte

da bandeira pútrida

e dos seus arautos sem saberem da sua decadência

e não abro mão

de um receituário de ironia.

#2560

Como os encantadores de serpentes,

as gongóricas personagens

que tomam conta da praça pública. 

19.10.22

Injustiças indocumentadas (33)

Dizer

que se dá a cara

pode sair muito caro.

Ecuménico do avesso

Soubesse da missa a metade 

– era em jeito de pretexto 

que acendia a ladainha do arrependimento

à espera da absolvição

uma indulgência anónima 

que seria um sibilino juntar das mãos

sobre o sono pacífico. 

Mas o mar era atlântico

e estava uma tempestade das antigas

 

(os mais novos quase nem sabem

que a tempestade tem lugar no dicionário)

 

e, para o mais que contasse,

nem uma metade da missa sabia, 

quanto mais o outro meio. 

Parecia prometida

a noite como embaraço

e um sono tumultuoso

viajando pelas ondas cavadas

que são o chão próprio

dos arrependimentos sem serventia. 

Injustiças indocumentadas (32)

A noção vaga

da chuva torrencial

deu para confirmar

que os cavalinhos 

foram todos retirados 

para seus aposentos.

#2559

Os espantalhos não contam

para o cadastro dos cidadãos.

18.10.22

Injustiças indocumentadas (31)

O trinta e um

é um grande trinta e um

porque é um anagrama

do treze.

Totem

Risco a página do dia:

é como se fosse 

um baldio

os ossos frios estalam

na embocadura da noite

deixando-a 

muda. 

À página do dia

sabotada pelo estrénuo movimento

em que se senta a angústia

outra suceder-se-á. 

Do lugar em que me encontro

na posse do dia irremediável

não sei como será ornamentada

a página 

que se segue. 

Só sei que todos os dias

são um fio irremediável

assim que se encontram 

com o seu saldo. 

As páginas dos dias

quando andam da frente para trás

são um volume de contratempos

o lugar sem nome para 

a rendição.

#2558

Ao teu lado

as manhãs 

são boreais.

17.10.22

Extraviado

E se da matança não houver ouvidos

os sentidos rasgados desmaiam no caudal

talvez sangrando as palavras opacas,

este o graal consentido.

O ringue está sempre pronto:

os imprevidentes impérios

tutelam-se nas mangas dos burocratas

tornam-se adultos 

no avesso das páginas remendadas.

As mentiras sobram nas goteiras

cobrem as vidraças com o orvalho demorado

e as pessoas avançam no meio das ilusões

apagadas

como sempre são as pessoas

no fingimento de serem as peças centrípetas

que sobem a palco

ao palco sem residência nem existência certa.

E as palavras

invisivelmente sangradas

escorrem no meio da podridão coeva.

Não se enfastiam

os mecenas do teatro dos fingimentos;

sabem que só são periscópios

enquanto os demais 

forem corsários da grande mentira universal,

a mentira que se entronizou

metáfora da verdade.

#2557

O vento periférico

um avesso que se veste

na rosa servida pela manhã.

Novos horizontes

Colho

na penumbra do outono

as sílabas sortilégio

o almirante miradouro

que levanta do céu embaciado

as cortinas vetustas

e sei

que o outono é promitente

de outonos que não cumprem

o selo da decadência

nele levitando novos horizontes. 

16.10.22

#2556

Obstinados

os poetas bebiam nas palavras

a lava que arrefecia o sangue.

15.10.22

Injustiças indocumentadas (30)

Quando chove

molha-tolos

só mesmo os mesmos

saem à rua.

#2555

Ouvir as nuvens

em seu sereno vagar

e extrair dos sonhos

os medos de atalaia.

14.10.22

Casa de penhores

Desse palco soube distância. 

O povoado sabia-se torto

sem ser pela impureza 

a dissidência:

as fragas 

sussurravam na esquina do Outono

e a linhagem das palavras entoadas

soava a farsa invalidada

pela muralha da cidade. 

 

Mas o Outono era tardio. 

 

O ciciar do caudal dele dizia ser timorato

um pouco como as bocas 

que eram parentes da afoiteza

mas não passavam da medida pequena

assim encerrando-as 

na sua soez descapacidade. 

 

Ao menos

à noite 

ninguém via rostos e bocas e rio

e até os murmúrios se metamorfoseavam

em silêncios. 

#2554

Sobre 

a matéria dos sonhos

a súplica do olvido.

13.10.22

Testa-de-ferro

A voz perdeu as sílabas

mas não se calou.

Os calos da boca

enchem-se de brio

e resistem

resistem ao veneno bolçado

pelos apátridas que desadoram 

a liberdade.

#2553

Em dívida 

pela dádiva devida

no rumor 

da dádiva da dívida.

12.10.22

Estado de sítio

Estado de sítio:

tomamos a convulsão como verbo

reféns do imorredoiro protesto

contra o estado das coisas. 

Consideramos:

é da natureza das coisas

a sublevação 

contra a natureza das coisas

pois as coisas

em sua natureza

seriam destinadas ao malogro

se de nós soubessem 

a apatia. 

E nem que preciso seja 

adejar uma conspiração

devolvemos à nostalgia a sua inutilidade

por insatisfatória condição;

preferimos 

avançar a desmedo

arroteando os touros à medida que desfilam

desfazendo as bandeiras que se supõem

equinócios baratos

juntando nas mãos a neve vagamente prometida

coabitando na memória do presente 

– o maior presente que deixamos

em memória do futuro. 

A rendição 

não se traduz no nosso dicionário. 

Queremos ser procuradores do avesso continuo. 

Há quem garanta

tratar-se apenas de feitio mal concebido. 

Não somos desmancha-prazeres

nem é da nossa lavra

a contradição condenada a ser um logro. 

Não escondemos sob o tapete

as más cores que embaciam

o estado das coisas. 

Somos

apenas

seus legítimos artesãos

sem esconder 

as reentrâncias da contrafação. 

#2552

Dos arquitetos daninhos

colho a indiferença.

11.10.22

MB da vida

Consulta de saldo

sobre o tempo sobrante

em crédito à conta da vida. 

 

O empenho menor

atraiçoa o sangue murmurado

arrefece os dedos

o étimo da capitulação. 

Não se sabe

ninguém sabe

a que úbere se dá a vida a beber

pois de sortilégios vários 

cumpre-se

a função mínima. 

 

O recibo da consulta de saldo

dança um número. 

Se fossem varandas expandidas sobre o céu

diria palavras inestimáveis,

incomensuráveis, 

esse número em forma de aval. 

Seria um salvo-conduto

quase

uma garantia vinculativa

amarrada a um cumprimento escrupuloso

sem pretextos como enredo

ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis. 

Se fosse assim,

que não é. 

A transgressão da garantia 

começa na ausência de entidade reguladora:

 

ainda bem 

que não há 

uma ASAE 

para as vidas.

#2551

Não maltratem o mensageiro

se a culpa é da babel

em que respiram os mandantes.

10.10.22

Injeção eletrónica

A cada luar sentado no telhado

uma quimera que entra na fala

e compõe os oráculos sem destino. 

 

A cada fado tresmalhado

uma centelha que não se cala

e anima o vento clandestino. 

 

A cada erro sem ser combinado

a carne arrematada pela dura bala

e um espelho com rosto prístino.