O adubo
enxerta-se nas veias
e o sangue cresce,
lunar.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Ouvimos
em surdina
os verbos esquecidos.
Lamentamos
em coro
as páginas desfalecidas.
Avisamos
o passado
para não ser vulto.
Arrefecemos
em segredo
a candeia do medo.
Habitamos
de corpo inteiro
o sangue crepuscular.
Admitimos
nas nossas mãos
as bocas impacientes.
Resolvemos
sem aviso prévio
as rugas que adejam no ocaso.
Desenhamos
em sílabas desabituadas
os labirintos que se antecipam.
Fintamos
com a destreza do Maradona
as trovoadas impertinentes.
Marcamos
nas costas do segredo
o lugar em Buenos Aires.
Não abro mão
da coroa de espinhos
da tabuada dos sete
do rigor do Correio da Manhã
da feijoada sem tripas
da literatura que é uma chaga
da prolixa fala dos aspirantes ao estrelato
dos negociantes e dos regentes em concubinato
da D. Graça da DGS
dos gurus condutores de almas
dos sebastiões em que o povo insiste
na diarreia verbal de S. Exa.
(o comentador incidental do reino)
dos fingimentos que se fingem a si mesmos
dos condutores que anularam o pisca
do incrível otimismo nacional
e do seu gémeo separado à nascença
o derrotismo federalizado
dos chicos-espertos (essas aves abundantes)
do ministro que ainda não percebeu que já não é
das mentiras que disfarçam as suas próprias farsas
dos agelastas inconsequentes
dos ignorantes que têm sempre uma opinião
dos eruditos do alto da sua pança farta
dos parasitas montados na ética republicana
nos aríetes das moralidades (sem exceção)
dos juízes em causa alheia
dos tribunícios sem palco que não seja o seu espelho
dos que tropeçam no conhecimento de tudo
(vulgo: tudólogos)
do Galamba
dos inovadores semânticos
dos tropistas das modas
da pandemia de influencers
do esgoto terminal que desagua no horizonte
da bandeira pútrida
e dos seus arautos sem saberem da sua decadência
e não abro mão
de um receituário de ironia.
Soubesse da missa a metade
– era em jeito de pretexto
que acendia a ladainha do arrependimento
à espera da absolvição
uma indulgência anónima
que seria um sibilino juntar das mãos
sobre o sono pacífico.
Mas o mar era atlântico
e estava uma tempestade das antigas
(os mais novos quase nem sabem
que a tempestade tem lugar no dicionário)
e, para o mais que contasse,
nem uma metade da missa sabia,
quanto mais o outro meio.
Parecia prometida
a noite como embaraço
e um sono tumultuoso
viajando pelas ondas cavadas
que são o chão próprio
dos arrependimentos sem serventia.
A noção vaga
da chuva torrencial
deu para confirmar
que os cavalinhos
foram todos retirados
para seus aposentos.
Risco a página do dia:
é como se fosse
um baldio
os ossos frios estalam
na embocadura da noite
deixando-a
muda.
À página do dia
sabotada pelo estrénuo movimento
em que se senta a angústia
outra suceder-se-á.
Do lugar em que me encontro
na posse do dia irremediável
não sei como será ornamentada
a página
que se segue.
Só sei que todos os dias
são um fio irremediável
assim que se encontram
com o seu saldo.
As páginas dos dias
quando andam da frente para trás
são um volume de contratempos
o lugar sem nome para
a rendição.
E se da matança não houver ouvidos
os sentidos rasgados desmaiam no caudal
talvez sangrando as palavras opacas,
este o graal consentido.
O ringue está sempre pronto:
os imprevidentes impérios
tutelam-se nas mangas dos burocratas
tornam-se adultos
no avesso das páginas remendadas.
As mentiras sobram nas goteiras
cobrem as vidraças com o orvalho demorado
e as pessoas avançam no meio das ilusões
apagadas
como sempre são as pessoas
no fingimento de serem as peças centrípetas
que sobem a palco
ao palco sem residência nem existência certa.
E as palavras
invisivelmente sangradas
escorrem no meio da podridão coeva.
Não se enfastiam
os mecenas do teatro dos fingimentos;
sabem que só são periscópios
enquanto os demais
forem corsários da grande mentira universal,
a mentira que se entronizou
metáfora da verdade.
Colho
na penumbra do outono
as sílabas sortilégio
o almirante miradouro
que levanta do céu embaciado
as cortinas vetustas
e sei
que o outono é promitente
de outonos que não cumprem
o selo da decadência
nele levitando novos horizontes.
Desse palco soube distância.
O povoado sabia-se torto
sem ser pela impureza
a dissidência:
as fragas
sussurravam na esquina do Outono
e a linhagem das palavras entoadas
soava a farsa invalidada
pela muralha da cidade.
Mas o Outono era tardio.
O ciciar do caudal dele dizia ser timorato
um pouco como as bocas
que eram parentes da afoiteza
mas não passavam da medida pequena
assim encerrando-as
na sua soez descapacidade.
Ao menos
à noite
ninguém via rostos e bocas e rio
e até os murmúrios se metamorfoseavam
em silêncios.
A voz perdeu as sílabas
mas não se calou.
Os calos da boca
enchem-se de brio
e resistem
resistem ao veneno bolçado
pelos apátridas que desadoram
a liberdade.
Estado de sítio:
tomamos a convulsão como verbo
reféns do imorredoiro protesto
contra o estado das coisas.
Consideramos:
é da natureza das coisas
a sublevação
contra a natureza das coisas
pois as coisas
em sua natureza
seriam destinadas ao malogro
se de nós soubessem
a apatia.
E nem que preciso seja
adejar uma conspiração
devolvemos à nostalgia a sua inutilidade
por insatisfatória condição;
preferimos
avançar a desmedo
arroteando os touros à medida que desfilam
desfazendo as bandeiras que se supõem
equinócios baratos
juntando nas mãos a neve vagamente prometida
coabitando na memória do presente
– o maior presente que deixamos
em memória do futuro.
A rendição
não se traduz no nosso dicionário.
Queremos ser procuradores do avesso continuo.
Há quem garanta
tratar-se apenas de feitio mal concebido.
Não somos desmancha-prazeres
nem é da nossa lavra
a contradição condenada a ser um logro.
Não escondemos sob o tapete
as más cores que embaciam
o estado das coisas.
Somos
apenas
seus legítimos artesãos
sem esconder
as reentrâncias da contrafação.
Consulta de saldo
sobre o tempo sobrante
em crédito à conta da vida.
O empenho menor
atraiçoa o sangue murmurado
arrefece os dedos
o étimo da capitulação.
Não se sabe
ninguém sabe
a que úbere se dá a vida a beber
pois de sortilégios vários
cumpre-se
a função mínima.
O recibo da consulta de saldo
dança um número.
Se fossem varandas expandidas sobre o céu
diria palavras inestimáveis,
incomensuráveis,
esse número em forma de aval.
Seria um salvo-conduto
quase
uma garantia vinculativa
amarrada a um cumprimento escrupuloso
sem pretextos como enredo
ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis.
Se fosse assim,
que não é.
A transgressão da garantia
começa na ausência de entidade reguladora:
ainda bem
que não há
uma ASAE
para as vidas.
A cada luar sentado no telhado
uma quimera que entra na fala
e compõe os oráculos sem destino.
A cada fado tresmalhado
uma centelha que não se cala
e anima o vento clandestino.
A cada erro sem ser combinado
a carne arrematada pela dura bala
e um espelho com rosto prístino.