Se morrer é para sempre
e viver o seu contrário
faça-se do viver
a perene condição da vida.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Um salto depois
Paris ou Istambul
Berlim ou Budapeste
extinto o sentido das fronteiras
os idiomas deixam de ser embaraço
e um caldo de cultura
feito de fusão
do sangue e da carne que não falam idiomas
nem são paradas em fronteiras
vem no lugar da roda sobressalente.
As bandeiras hasteadas são todas brancas
nelas esvoaçam os vincos das palavras
nelas se sucedendo os idiomas amostra
desenhando
a tinta da China
o músculo da concórdia
o ecumenismo de diferentes
que só o são nas convenções arrumadas
no parapeito da banalidade.
Somos
os nomes que se dizem
em todos os idiomas
as bocas que se cruzam
no desmedo das diferenças
os corpos cosmopolitas que aprendem a sê-lo
na vertigem do corpo sempre outro
seja qual for a sua linhagem.
Numa eutopia militante
onde se jogam dedos em forma de pétalas
armas sem munições
as palavras mosqueadas em poemas espontâneos
bebendo a inspiração em marés untuosas
maresias anestesiantes
esboços de sonhos não proibidos por lei
nem desdenhados por tributos variegados.
Esse lugar
onde habitam os sonhos
não vem no mapa.
É imarcescível na fusão das falas
no ditado dos corpos
na recusa das pertenças que disfarçam prisões.
O lado escondido
abriga-se
nos segredos
e em páginas de livros
sem inventário nas bibliotecas.
Assim seja,
em Budapeste ou Paris,
em Istanbul ou Berlim,
à espera que um sinal funda as algemas
à espera
das sílabas com a raiz funda
onde os ossos encontram
a lava adormecida.
Tingidas as folhas
o desencanto arrumado:
pelo andar dos boémios
a noite respira o eterno
e só os que se dobram
é que confirmam o efémero.
Agigantam-se
os deuses nada óbvios:
as estrofes que esbracejam
vingam a cor sobre os vultos madraços
e todas as páginas
todos os parágrafos
são como as folhas
herdadas do Outono.
A margem incendeia a pele
por a tocha centrípeta
acenar da margem outra.
A lava ascende
por súplica do magma
a pele não capitula na demanda.
Por ser tanto o desejo
inventa-se uma ponte
e as margens coalescem numa só.
Não se extinguem as margens
no sulfuroso atear das mãos
que se desfazem da sede recíproca.
Entre as margens testemunhas
corre a caudalosa redenção
a poesia colocada entre os sexos intensos.
Já às margens correm
artesanais
por conta de evidentes notas de rodapé
ainda o sol não espreitou às costas da noite
enquanto se ouve
apenas
o murmúrio dos apressados emergentes
naquele pressentimento da exoneração da noite
e os olhos
na intenção de abandonarem o estremunhado
encantam-se com a luz inaugural.
Oxalá
se deuses houvesse
essa luz ficasse eterna
emoldurada num bola de cristal.
Da pele em alvoroço
a lava tingida de branco
e o beijo em aval de poesia
sem os emolumentos do mal
só uma maresia que toca a boca
no pressentimento maior
que deus nenhum adivinha.
A roca do medo
extinta
e a maré que entra no rio
a caudalosa maré que enche o rio
desfeita a noite em mil pedaços de pele
e as estrofes que asfaltam a estrada
nos braços enlaçados
que voejam a manhã que arde.
Cortar
a eito
sem esperar
pela porta aberta:
insiste
a destemperança
no rosto febril
de quem se desencanta
no êxodo da noite
no refúgio do luar.
O laço apertado
adorna a jugular
e a levitação dos sentidos
como se fosse lisérgica
enfeita as luzes bastardas.
Não se julgue
precipitadamente
o principesco abotoar da goela
que isto não é
a matança dos galináceos.
Se o mar não fosse fundo;
se as lágrimas tivessem nascente;
se a lava não amanhecesse irascível;
se os lados do mundo fossem fungíveis;
se as bocas não se embebessem em falso mel;
se os países não tivessem bandeira;
se o luto fosse anulado por decreto;
se a lua tivesse paradeiro na orla do dia;
se os peões soubessem que são peões;
se a lucidez não fosse emparcelada;
se os condutores de almas fossem para o diabo;
se os regentes não rimassem com mitomania;
se os corpos não mentissem ao tempo
(ou será o tempo que mente aos corpos?);
se todas as coisas válidas se extinguissem;
se não deixássemos de lado as palavras por dizer;
se não fôssemos reféns de um labirinto;
se nós adiássemos no passado sem causas;
se não fosse perda toda a matéria venal;
se não houvesse carestia de sermos nós;
se os disfarces não ocupassem o palco;
se os versos não se fizessem desacompanhar de mãos;
se a maresia tombasse sobre o entardecer;
se os rostos dos filhos fossem sempre pueris;
se as pernas não tergiversassem ao menor sinal do medo;
se a raiz quadrada de tudo fosse o sangue combustível;
“e assim sucessivamente”.
Entoava as sílabas
com o mesmo vagar
das folhas sem sono
e esperava
que um arco-íris tendesse
a gramática do tempo.
É um acaso
a porta opaca
escrita com a maresia.
Sobram os olhares
uma sombra de xisto
sentada sobre os socalcos
a desafiar o tempo.
Um acaso
e por nada que seja
provável
ensinam-se as páginas decorativas;
se não se hasteassem
tantos
no entanto
desertas ficariam as perguntas
e à maré entediada
seriam conferidos os saberes
afastada a humildade metódica
e a matemática precisa.
Pela porta fundeada
o basalto cimeiro
dá um ar de sua graça:
o chão limpo
é o passe social para desfeitear
a soberba
– e, no entanto,
ninguém desiste
de dar segunda hipótese
aos prováveis fautores
de tantos caminhos sobrepostos.
As veias tornadas paredes
na sumptuosa enseada
à prova de juras
abjuram o medo consular
a matéria funda que bolça
sobre a inocência.
A inocência,
ah!
como rima com incoerência
(a proscrita, hélas! incoerência)
como são remotos os paladares
as virgens que nunca o foram
as estantes destinadas ao vazio
as fábricas sem operários
um pouco
como aqueles comboios modernos
que viajam sem condutor.
As veias
congeminadas por dentro de vulcões
imperatrizes da sua própria lava
não se intimidam:
atirem-se os mastins a elas
para serem derrotados sem remissão
num remoinho nuclear que tudo dilacera
até a palavra estilhaços
banida do dicionário
banida das convenções outorgadas
banida de
banida de...
banida.
Os modos perderam-se
ainda a tempo
de serem desmentidos.
E todo o sangue devolvido às veias
tradução válida de um corpo inamovível
avisa os destemidos que tinham de o ser
contra a avassaladora tempestade sideral
o céu a fugir por entre os dedos da alma
e um copo de água
singelamente
derramado
para avivar as sementes
para memória futura.