O pivot do telejornal
a jogar à patela
com os acasos do mundo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Risco as farsas
os mapas amarrotados
as vozes que contrariam o silêncio
e vou
pelas montanhas intrépidas
saltando os ribeiros que se agigantam
prometendo os dias sem crepúsculo
o miradouro a subir
desde as minhas mãos.
E não deixo o sono vingar
não quero ser
colónia de sonhos avulsos
simples matéria passiva à mercê dos sonhos
não deixo
que os atónitos passageiros da cidade
se amordacem na matéria invisível
ou que sejam apenas
peões
meros peões
numa aritmética acima das suas possibilidades
para se tornarem irrisórios números
condenados à decadência antes do tempo.
Arrisco
que não são profecias
estas aqui costuradas com a saliva da rebeldia
apenas
um desejo que se deseja
na primeira pessoa
do singular.
Pelo fundo da garrafa
o pináculo da audácia
numa cordilheira de juras.
Amedronta-se o medo:
nem vulcões irascíveis
lobrigam o rapto do sono
nem eles
fermentam o desassossego militante.
Amedrontem-se
as estrelas cadentes
os astronautas de galáxias amancebadas
os regentes garbosos:
pelo fundo da garrafa,
que é onde sobra a valentia pura,
os dias chegam ao peito
e são eles que se afeiçoam
à lava incandescente
imparável
que sobe à boca
contra as vendas amestradas
os emissários do silêncio
os procuradores da tirania arrevesada.
Até que o fundo da garrafa
traduza a inteireza
apenas a inteireza
que não capitula
às reticências oxigenadas
pelos apóstatas da liberdade
que não desaprendem de cuspir
no direito a ser
que é o ser dos outros.
Testamentário
da vontade dos deuses
vestia o oráculo sem flores a ornamentá-lo
e murmurava
no cio do dia
os versos saídos de sonhos
os versos
que outrora ficavam
reféns da desmemória.
O artesanal sentir
em vez
do malquisto penhor
ao irmos de visita
a mercados larvares.
[Dirás não ao ominoso capitalismo]
Os segredos
ouviam-se em sessões clandestinas
quando todos estavam a dormir
ou em lugares adivinhados pela ausência.
Os segredos
se viessem a ser contados
estariam por conta de catástrofes
por não irrisórias bombas crepusculares.
Os segredos
são facas afiadas sobre o futuro
penhores que absorvem o oxigénio
areias movediças só depois de lá entrados.
Se sumissem os segredos
o que seria das mentiras?
E se fosse declarada extinta a mentira
(que o seria
certamente
pelos maiores mitómanos)
deixariam os diligentes curadores da verdade
de falarem seu nome?
Logo em menino
queria ser arauto da moral.
Ninguém lhe explicou
que estava condenado a fracassar.
Os dedos correm em simultâneo
sobre as cortinas que escondem
a fúria que amaldiçoa estes lugares.
São eles que servem o antídoto
passeando generosamente pela pele
onde a desarrumação das almas
se agiganta.
Mãos quiméricas
em vez de armas que se terçam
na inviolável condição dos estultos
que são os perspicazes mastins do caos.
Hoje
as notícias mandaram boas novas
aos que continuam a acreditar
que o otimismo vai derrotar o pessimismo:
as mãos
foram agraciadas com uma comenda
muito mais do que honorífica
uma espécie de Nobel
à paz que não faz de conta.
Um salto depois
Paris ou Istambul
Berlim ou Budapeste
extinto o sentido das fronteiras
os idiomas deixam de ser embaraço
e um caldo de cultura
feito de fusão
do sangue e da carne que não falam idiomas
nem são paradas em fronteiras
vem no lugar da roda sobressalente.
As bandeiras hasteadas são todas brancas
nelas esvoaçam os vincos das palavras
nelas se sucedendo os idiomas amostra
desenhando
a tinta da China
o músculo da concórdia
o ecumenismo de diferentes
que só o são nas convenções arrumadas
no parapeito da banalidade.
Somos
os nomes que se dizem
em todos os idiomas
as bocas que se cruzam
no desmedo das diferenças
os corpos cosmopolitas que aprendem a sê-lo
na vertigem do corpo sempre outro
seja qual for a sua linhagem.
Numa eutopia militante
onde se jogam dedos em forma de pétalas
armas sem munições
as palavras mosqueadas em poemas espontâneos
bebendo a inspiração em marés untuosas
maresias anestesiantes
esboços de sonhos não proibidos por lei
nem desdenhados por tributos variegados.
Esse lugar
onde habitam os sonhos
não vem no mapa.
É imarcescível na fusão das falas
no ditado dos corpos
na recusa das pertenças que disfarçam prisões.
O lado escondido
abriga-se
nos segredos
e em páginas de livros
sem inventário nas bibliotecas.
Assim seja,
em Budapeste ou Paris,
em Istanbul ou Berlim,
à espera que um sinal funda as algemas
à espera
das sílabas com a raiz funda
onde os ossos encontram
a lava adormecida.
Tingidas as folhas
o desencanto arrumado:
pelo andar dos boémios
a noite respira o eterno
e só os que se dobram
é que confirmam o efémero.
Agigantam-se
os deuses nada óbvios:
as estrofes que esbracejam
vingam a cor sobre os vultos madraços
e todas as páginas
todos os parágrafos
são como as folhas
herdadas do Outono.
A margem incendeia a pele
por a tocha centrípeta
acenar da margem outra.
A lava ascende
por súplica do magma
a pele não capitula na demanda.
Por ser tanto o desejo
inventa-se uma ponte
e as margens coalescem numa só.
Não se extinguem as margens
no sulfuroso atear das mãos
que se desfazem da sede recíproca.
Entre as margens testemunhas
corre a caudalosa redenção
a poesia colocada entre os sexos intensos.
Já às margens correm
artesanais
por conta de evidentes notas de rodapé
ainda o sol não espreitou às costas da noite
enquanto se ouve
apenas
o murmúrio dos apressados emergentes
naquele pressentimento da exoneração da noite
e os olhos
na intenção de abandonarem o estremunhado
encantam-se com a luz inaugural.
Oxalá
se deuses houvesse
essa luz ficasse eterna
emoldurada num bola de cristal.
Da pele em alvoroço
a lava tingida de branco
e o beijo em aval de poesia
sem os emolumentos do mal
só uma maresia que toca a boca
no pressentimento maior
que deus nenhum adivinha.
A roca do medo
extinta
e a maré que entra no rio
a caudalosa maré que enche o rio
desfeita a noite em mil pedaços de pele
e as estrofes que asfaltam a estrada
nos braços enlaçados
que voejam a manhã que arde.