Caminhavas
no verbo bucólico
do exílio que não viera
a tempo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Pequena seria a incumbência
se não fosse ao fado autorizado
o estatuto de mito afivelado
estandarte dos prantos
em que se debate uma terra inteira
tornando-a alagadiça
de tantas lágrimas que fecundam
um caudal de nostalgia
e o cimento da saudade
– da saudade que devia ser desorgulho
de tanto meter a terra a olhar para trás
em vez de para a frente a fazer andar.
De tanta melancolia emparedada
tanta a angústia servente do fado
aviva-se, cristalino,
por que tristezas não pagam dívidas.
Não pagam
é só olhar para os inventários públicos
e pedir à estatística uns cálculos emprestados
(só para fazer jus
ao princípio geral da dívida).
E esta terra tem-nas
dívidas
(e tristezas a rodos)
como se fosse uma piscina
a hastear-se
mais alta do que o corpo
acima de todos os fingimentos
e dos pueris que se disfarçam de fidalgos
e são tão falidos como a pátria endividada
– essa que é
uma mátria
avinagrada.
Da pauta menor
o penhor da palavra fundadora
a tabuada sem vírgulas
obsessão sem ultraje
as bocas que ciciam os bons nomes
os nomes emparedados.
Hoje
quando ainda há tempo para fugir
prometo o exílio para amanhã
quando o amanhã já puder ser
ontem.
O exílio fica por conta
das boas intenções
– que ninguém pode receber culpas
pela paternidade de um par de intenções.
Já quanto à fusão
entre o hoje que se ajuramenta num amanhã
e o amanhã que passou a pertencer ao pretérito
não se espere indulgência.
O compasso que nos rege
não perdoa o ultraje
dos diferentes modos do tempo.
A palavra
é a cobertura
para todos estes descaminhos.
Desempenhamos,
exercemos,
um papel
– papeis múltiplos
no curso do tempo.
E nunca sabemos
onde apanhámos o papel
ou como ele nos aprisionou
se voou com o vento gentio
ou se veio do chão,
amarrotado.
Disfarcem as palavras
daquilo que não são
antes que as palavras
se disfarcem de arsenais.
[Definição de diplomacia]
A moldura
esquece o futuro
para não parecer gasta.
O vidro
amanhece baço
oxalá estilhaçasse.
O rosto
adulterado no precipício
esconde-se do espelho.
A memória
antecipa a decadência
na vertigem incorruptível.
As memórias
em herança deixadas
não reclamam toponímia.
O nome
perdoa o passado
no olvido alfandegado.
O nada
o todo completo
aviva-se no destempo.
Lido com o lido
como se fosse inaugurar
uma estação que habilita a fruição
e deixo à pontuação
selecionada com esmero
a diferença no destinatário
os rodeios com as valsas de silêncio.
Escrevo como escrevo
o sangue arrefecendo nas mãos
o olhar exaltado
saltando as barreiras enquistadas
devolvendo à origem
travejamentos e códigos de conduta.
Ainda estou para saber
se escrevo como leio
ou se leio para refúgio da escrita.
As bocas famintas
bebem na ira da matilha.
Não conhecem o perdão.
Avançam,
destemidas,
no concurso da intransigência territorial.
No territorial
disfarçado de ideias
na parlamentar farsa da transigência.
Na hora H
arregimentam o arsenal
abocanham os tísicos pleiteantes
na irredutível cerca de onde não têm fuga.
Sem direito a contraditório
sem direito a julgamento
sem direito
a não ser a (sua) arbitrária lei de seita.
A matilha
ostenta nas suas bocas saciadas
o sangue ainda morno das vítimas;
os mastins
passeiam as barbas tingidas pelo sangue exaurido
dos que ousaram habitar outro mental lugar.
Passeiam toda esta ostentação
na pose de triunfais algozes
ufanos no cercear da dissidência
funcionários diligentes da perdurável doutrina
com simultânea exibição
para memória futura
e aviso
aos candidatos dissidentes
do desfado que os espera
se insistirem ser
o que deles
não se espera
que sejam.
“(…) o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso. (…)”
Mário de Cesariny, “De profundis amamus”.
Há poetas
visionários
poetas que pressentiram
com cinquenta anos de avanço
as redes sociais.
O exílio que se esportula
a meias com o azedo da angústia
arremete contra o caudal iracundo
na floresta onde se arrumam os sonhos.
Logro a sombra de uma tenaz
como se a uma figura mítica pertencesse
e aviso os deuses de plantão
que vendo dispendiosa a derrota que não intuo.
Manda a tirania dos contratempos
o desmazelo dos fantasmas alinhados
contra os vidros baços que travam o olhar
em labirintos sem o medo metódico.
O corpo suado não responde à lucidez
os versos são a cacofonia não reprovável
e a cada sismo da manhã
antepõe-se a harpa resgatada às cicatrizes.
Por dever irrecusável de pertença
devia ser proibido
assentar zeros
à esquerda.
Era como uma toga
só para disfarçar a nudez
a vergonha da nudez;
não sabia ao certo
porque a vergonha
rimava com nudez.
Do palácio dos corpos alistados
sobrava a moda;
isto é
o devastador panorama
das fazendas que alijam a vergonha
que seria
a procissão dos corpos nus.
E eu não sei
ainda
ao certo
se é por pudicícia
ou apenas
por um dogma de estética
o agradecimento a estilistas e não estilistas
por travarem
a procissão de corpos nus
a devastadora imagem
de um campo de terrores.
As costas das mãos
passeiam-se pelas vírgulas,
depostas em lugares ermos
como se fossem
as árvores distantes que ensinam
a gramática da vida
um torpedo desarmado
vocação diligente em ábacos erodidos.
Alguém diz
de uma paisagem em passagem
no disforme lugar do comboio
à janela:
esta
é a terra queimada
o torpor que desarma a vontade
uma tela áspera
onde os verbos se trocam por luares
e as velhas não insistem na viuvez.
Mas esta
não é
afinal
a terra queimada:
é um gotejar insistente à boca da manhã
promessa sem notário ou procurador
a aldeia com cheiro a lareira
ou o tojo cansado de tanta geada
inerte
a pedir
uma terra alagadiça.