Se o mal
é dividido pelas aldeias
vamos todos
para vilas e cidades.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não se adivinhe
o lugar do escultor
enquanto alfaiata os corpos
sob atalaia da sua alfaia
domando
a matéria-prima que caleja as mãos.
Não se desautorize
a hermenêutica de quem se depõe
diante da escultura
e empresta o seu olhar
à miríade de sentidos que a ela se abraçam.
Nesta cidade sem cor
da voz que se aviva
da voz de vultos hierárquicos
transborda a luz primeva
os orquestradores de oráculos.
Nesta cidade sem dor
um exílio que se adultera
do exílio de reféns sem redenção
amanhece o luar inverso
os apócrifos lobos que não esquecem.
Não deixo rasuras na pele;
a gravata que se esboça
é a da descerimónia a preceito.
Os longos bocejos são apenas sono.
A parcimónia não é solenidade
nem o cobrador de fraque
é para aqui chamado.
Ah, que de tristezas
podiam as dívidas ser saldadas
no selo bastante da sua isenção
antes que exauridos sejamos
arqueados pelo peso dos juros
e o disfarce das moratórias,
um eufemismo para a obesidade
que é o passado em riste.
Conluiam-se as espadas insubmissas
contra a ostentação das memórias
entre duas colheres de passado
e um remédio para a desmemória
do futuro.
As rasuras da pele
são outro eufemismo
para o pretérito em inventário.
As palavras tinham a cor da dinamite.
Trovejavam
cuspindo a angústia que as veias retesavam
à medida que o mundo atravessava o Rubicão
à medida do sangue que se protestava,
envenenado.
Dissessem o que dissessem do palco ingente
sentiam-se as sílabas
uma e a outra depois
a explodirem na boca
contaminando-a com o amargor
de quem de si não sabia o paradeiro.
Não foi no exílio que temperou a angústia.
E em vez de sentir as palavras
da cor da dinamite
conservou a granada encavilhada
não fosse a tonitruante cavalaria
desfeitear os sonos por haver.
O rumor visceral
nada entre as juras quiméricas
nada sabendo dos oráculos promitentes.
Desfazem-se as palavras
num manjar de confettis permanentes
enquanto as dádivas se sujeitam a sindicância.
E alguém diz
que outrora é que as saudades fermentavam
consumindo por inteiro um doravante em olvido.
Faça-se do adro
fábrica de emergência
que o tempo não espera por formalismos.
Componham-se as estrofes acarinhadas
em profecias depressa desmentidas
por vultos desmaiados.
Juntem-se as lágrimas arrematadas
em sonhos sem sombra de lustro
e copiosas promessas.
Oponha-se aos vaidosos estroinas
a predileção pela fonte erma
perto do santuário derruído.
Tornem-se luminosos os versos avulsos
a licença que dispensa carimbo
a caminho da irrisão.
Cessar fogo:
a artilharia emudecida
o clamor que celebra as pessoas.
Disparo a centelha ávida
contra a tremenda voz tumular
a voz que se esconde no crepúsculo
e amedronta com os dedos fingidos.
O céu está do avesso
e as mãos remexem as raízes das árvores
talvez demandem uma gramática
talvez
peregrinem as pedras válidas
escondidas da avareza.
Os braços não se deixam cair
ainda que a teia da gravidade conspire
a desfavor.
As casas estão todas atadas a um sono
e esquecem-se do dia militante.
Um começo que espera
esboça umas sílabas tentaculares
(como se fossem flocos de neve
a precipitar em câmara lenta)
abotoa as asas do pensamento insubmisso
capitulando
capitulando na hibernação confortável
dos que renunciam a ser quem são
por imperativo de transfiguração forçada.
Não digam
que este palco em que medramos
não é a pertença de sistemáticos fingimentos.
Não digam
que as bandeiras que se colam à pele
não são bandeiras que nos colam à pele
que deixamos que nos colem à pele
e nós
apenas timoratos que se anestesiam
suspeitamente adereços da vontade não nossa.
O casario parece todo igual
e até as diferentes cores parecem cores iguais.
Às vezes
a maré-viva decompõe a lhaneza pretendida
espalha o caos na geografia desarrumada;
é como se os alicerces fossem remexidos
e uma colossal colher de pau
arrancasse do fundo os sedimentos
dando um outro desenho à tela
– lavrando a mudança
que desconfia dos que conservam o passado
como se a mudança não fosse o verbo claro
do tempo que estuga o andamento.
Tomo posse da vontade
que abandona o exílio.
Sei que amanhã é amanhã
e que depressa um amanhã será passado
quando for a vez de um amanhã sucessivo.
As janelas não estilhaçam
nem sob a ameaça de tempestades.
Há uma tempestade de palavras
que espreita pela escotilha
enquanto a manhã se faz mulher;
essa é a tempestade que se espera.
Se houvesse cartografia dos contratempos
meu seria um mapa reescrito
liso e ausente
um paradoxo tornado livro de estilo.
Os genes não tergiversam
na intensa demanda que mantém o pensamento
de atalaia.
Não concebo a medida do tempo
e avanço
mar adentro
eu,
a nau de mim próprio
capitaneada pelo mesmo,
só para atestar
a tremenda pequenez que não me acossa.
Dois ou três dedos de conversa:
dizem
um bálsamo
que converte a solidão
ou então
fermento que aviva diferenças
incensando opostos que não coabitam.
A palavra
tão depressa se abastarda
na tirania da intolerância
e os anátemas estendem-se ao comprido
maquiavelicamente incapazes
de tomarem o lugar onde está o outro.
Desse mal se abjure
a conspiração
onde se desalimentam os que ficaram
esquecidos
numa qualquer esquina controversa do tempo.
A matilha não se cansa
os dentes tatuados do sangue das vítimas
e eles
tão aparentemente poderosos
reduzidos
à miséria de uma condição soez.
Extingue-se a penumbra.
Os gatos dissolvem-se das ruas
agora colonizadas por pessoas.
O céu tingido de tons alaranjados
rima com a preguiça que acompanha
o dia inaugurado.
O sangue das pessoas ainda é letargia.
As palavras saem a custo
muitas preferiam habitar
se pudessem
o exílio de uma cama.
As ruas ainda não crepitam;
prometem fazê-lo
pela experiência que trazem ao dorso.
Notam-se uns despojos da noite destreinada:
um punhado de boémios a desoras
perdidos na iconoclasta ebriedade
alguns operários do turno da noite
em contramaré
apressados para o sono
os estilhaços de garrafas averbadas na boémia
o lixo negligente de quem habitava
sentidos embaciados.
O dia que se inaugura
com o primeiro sopro da aurora:
que mentira tão bem montada
se o dia
este dia para efeitos de contabilidade do tempo
já leva no inventário
meia dúzia de horas.
Arrancado à dureza dos maxilares
um silêncio povoado de noite
esgrime contra a pálida expressão do medo.
A fala, submersa,
amotina-se.
Arruma a rigidez dos tendões
e a teimosia dos músculos,
contrária a mudez estrutural
vendo como os copos
entretanto vazios
dançam com as palavras dantes reprimidas
as palavras agora espalhadas pelas paredes.
Um rosto ensonado adia a manhã,
acredita na ilusão.
A luz inaugural fere o olhar
a mesma agressão da fala emudecida
enquanto a noite onde se sentam as solidões
vocifera um bolçar que não se ouve.
O silêncio não passa de um disfarce.
Todo o peso das pessoas
arqueia as ruas
que cedem à profusão de páginas faladas
pelo somatório de todos os que souberam
das ruas.
Essa amálgama é a indelicadeza da cidade
uma teia de haveres que se entretece
com os segredos habilitados
em testamentos guardados no silêncio fundo,
a estola que cai sobre o seu dorso.
A nudez da cidade
enfim
disfarçada por este coro claro.
Os nomes
não importam.
Não se fale
de extorsões
que se fingem
de incenso.
Um nome não é
o sangue
que habita as veias
as esporas que se atiram
na projeção do horizonte
e desembaraçam
janelas com artesões
não é
um nome
o esconjurar
supersticioso
do medo de sermos ninguém.
E, todavia,
quantos nomes há
que são apenas
ninguém?
Quantos
são os nomes
esquecidos
na almofada do tempo
na incúria da memória
num adeus inconfessável
no dorso de uma montanha
escondida nas ameias da noite?
Os nomes
não passam
de uma expropriação de almas
que se diz de o serem
depois de serem um labirinto
num nome.
Os nomes
se não fossem um cárcere
podiam importar.
Não
à conta do exílio
nem pela conta certa
averbada pelo sombrio ocaso
não
é não o que proclamo
aos que da inércia se alimentam
à projetada ideia de não dissidência
aos que se inquietam porque alguém se interroga
à castração das ideias
aos aios úteis de farsantes inúteis.
Não
pode ser o degrau heurístico
onde é crime dizer não
e onde dizê-lo
constitui uma ode
à liberdade mansamente reprimida.
Não
é a medalha sublime
desta irredutível desobediência
o salvo-conduto para a liberdade
não ser apenas um princípio sem substância.