19.3.23

#2716

Deve-se evitar

os santos e as santas,

a crer no mal que fazem

os doces conventuais.

18.3.23

#2715

Ao menos no xadrez

há quem coma bispos.

 

[Justiça restaurativa]

Sem destinatário

Este é o inferno sem demónio:

as casas empenham-se atrás dos limoeiros

na dedicatória ao fermento que trava a morte

o fecundo bolor em pétalas de sol inaugural. 

As ferramentas desarrumadas

intuem as desregras que não se escondem:

os vilões podem ascender ao promontório

podem colonizar os idiomas

pretender que os demais sejam escravos 

do silêncio

mas não passam de mastins desdentados

meras hipóteses de inferno

escaras que só sabem ser pútridas

como pútridos são os seus lamentos

ciciados na babugem soez 

– o seu passaporte,

que nunca prescreve. 

Esse é o inferno

onde os outros são mesmo os outros

empilhando todos os escaravelhos mentais

decifrando as luas que regurgitam 

das entranhas

enquanto passeiam inesteticamente nus

sentados nas coroas de espinhas

de deuses que caducaram às mãos vingativas. 

Os vestígios de sangue escrevem a pauta

e não há fronteira que se desembarace 

das facas,

o ultraje desfilando 

com a pompa dos órfãos de lágrimas

através das claraboias que ensinam as palavras

as temidas, as dissolvidas, as polissémicas,

as palavras-desfiladeiro. 

Se as falas apodrecidas fossem gémeas 

da mentira

não havia páginas para contar

não havia sucessores habilitados

e os lugares seriam ermos

como ermas são as luas 

se em viagem as visitarmos. 

O vento aluga-se aos interessados

mas não aceita rendas em saldo:

de cada vez que formos heróis,

nem que seja por conta própria,

saberemos 

que as páginas não se viram do avesso

a menos que a fome seja intencional. 

Ninguém trava a imensa roda da vida,

ninguém a consegue travar. 

A matéria infecunda que é a tela do deserto

deve ser a mátria do inferno,

o lugar onde a pele se descola da alma 

e fica ao deus-dará

órfã

destruindo os trunfos orquestrados

vingando os pulsos amordaçados

coabitando com as corpos tão puídos

na fábrica que não tem morada

a fábrica que não precisa de operários. 

A boca treme

tropeçando nas sílabas cortadas pela metade;

não há cicerones

neste lugar sem morada

não há dicionários nas estantes

apenas a poeira vetusta que tatua a pele

e anestesia os diligentes estetas,

sem esperar por instruções

abocanhando o podre do dia que decai. 

17.3.23

Injustiças indocumentadas (77)

O Natal 

é quando um homem quiser:

e as mulheres 

não têm nada a dizer?

 

[Parte do manifesto contra a masculinidade tóxica]

#2714

Arrumas os despojos:

gaguejas o resto,

as esporas sem rosto.

#2713

O verso encurralado

as sílabas caladas

os braços caídos.

16.3.23

Silêncio em praça fraca

As palavras que doem:

poços fundos de águas mortiças

as sílabas arrastadas no letargo ancião

na afortunada gramática que não sabe

das regras.

As palavras que doem

podem ser

um silêncio.

#2712

No bazar dos olhares

mercam-se

cumplicidades e indiferenças.

15.3.23

Anatomia dos segredos

Os segredos 

estão escondidos

numa mina. 

 

Os segredos

são uma mina. 

 

Os segredos

não precisam

de desminagem. 

 

Ao pisar um segredo

ganha-se um módico

de outra vida. 

 

Um segredo pisado

é todo um mar de acasos

que se abraça à vida. 

 

Um segredo alheio

tanto é uma mina 

que se entesoura

como uma mina 

que mutila. 

 

Antes não saber

o mapa dos segredos

e deixá-los ser,

segredos.

Injustiças indocumentadas (76)

Por mais que se esforçasse

o busca-pólos só encontrava 

o Norte e o Sul.

#2711

Dei de mim às mãos

para esculpir 

a mais fina lua.

14.3.23

Pulsação acelerada

Se naquele dia

não tivéssemos tido medo

quem sabe se não seríamos 

heróis

heróis de nós mesmos

e se do medo fugíssemos

como se de um exílio heurístico se tratasse

nos tornássemos maiores do que somos. 

Mas naquele dia

o tédio disfarçou-se de medo

e o dia ficou pela meação

como se dele tivéssemos sido algozes

e o amputássemos de ossos e carne.

Anda hoje tenho a impressão

que cercámos o dia

para que ele não se tornasse

maior do que somos

e consagrámo-lo

dele bebemos o sangue. 

Não queríamos 

que ao dia fosse permitida 

tamanha ousadia;

quanto à nós

não queríamos ser maiores

por imensa ser 

a nossa grandeza. 

#2710

O corpo baldio

refém 

da sua insubmissão.

13.3.23

Bom olhado

Podem ser janelas 

puídas com o ciciar dos estorninhos

filmes a preto e branco

enxertando pétalas crepusculares

manhãs ditas 

no avesso de versos angulares

um êxtase que se consome

nas ilusões em saldo. 

 

Podem ser os braços que não capitulam

as estátuas que dormem em pé

os estereótipos deixados sem herança

as portas fechadas que saciam a indigência

os dias claros arrumados num canto da esperança

os estilos disfarçados que se ajeitam à lapela

o sono sem adiamento no palco contrafeito. 

 

E tudo se amedronta

no leito onde se suavizam as marés

enquanto os violinos despontam na alvorada.  

#2709

Colorido o estendal,

à mostra,

a metáfora da vulnerabilidade.

12.3.23

#2708

É o irrepetível sangue

que desmente

a hereditariedade.

11.3.23

Cosmos

O corsário

respira a pele outonal. 

Exilado

esqueceu o idioma-mãe

e de si. 

Joga 

batalha naval

contra a inteligência artificial. 

Quando perde

embriaga-se;

nunca conseguiu esquecer

como a injustiça era pródiga consigo. 

Injustiças indocumentadas (75)

Um desejo ávido

não é um desejo havido.

 

[Inspirado num erro ortográfico, pescado algures]

#2707

Arrastas

no ruir da miragem

o teu corpo derruído.

10.3.23

Injustiças indocumentadas (75)

As águas de bacalhau

nunca foram de confiança.

#2706

Na colher do tempo

o açafrão que adoça a pele.

Injustiças indocumentadas (74)

Nada é impossível

Nada

é impossível.

9.3.23

Teclado

Arregaço as vírgulas

antes que o mel cristalize

e as sílabas fiquem presas na língua.

O vinho arroteia a verve;

aos vermes que nidificam em barda

dizemos a indiferença axial

(pode ser que deixem de ser fantasmas).

Oxalá as penitências não doessem

como doem as indulgências tiradas a ferro.

O amanhã viria

nesse caso

tingido pelas palavras amansadas

e todos os grotescos lugares seriam banidos

como banidos seriam 

os bandidos resistentes.

#2705

Este é o estaleiro ingente,

as obras vincadas no rosto

a pele avessada no viés do tempo.

8.3.23

Dispensa

Passo o corpo amordaçado

a mortalha que desce sobre o silêncio 

sem armas. 

 

Ao fundo

a gruta evoca o medo. 

O medo de quem não tem medo. 

 

As cortinas embainhadas fogem do dia

escutam a voz gutural dos ontens desarmados. 

 

Às voltas com as páginas amarrotadas

junto os dedos 

como se fossem espadas enredadas

e dou ao dia o poema sem nome

avivando as centelhas 

que derrotam as sombras.

#2704

Junta-se a assembleia

que a gangrena 

cai sobre o horizonte

roubando os nomes 

aos fantasmas.

Misalignment

Not the knot:

knot the not

wait

for knock-out.

Un-note the knot,

unknot the note

knock-out

the wait.

7.3.23

Autodefesa

Do caminho raso

as métricas possíveis

afogadas num aguaceiro

desviam as trovoadas triviais;

as copas das árvores parecem sorvetes

mas não se armam os alçapões

sem os arneses por perto.

 

De caminho

o avesso amoeda-se na pele

sua tatuagem impura que se subleva

na parte de trás da catedral

enquanto os rapazotes sobem aos pedestais

em marés de estultícia.

 

Caminho

nas oitenta e oito teclas do piano

desenho as notas no sopé do vulcão

e deixo o peito recolher os frutos ateados

sem sair do caudal de onde sorvo as lágrimas

sem pesar na carne as legendas cegas

e à porta sentar os medos pueris.

 

A caminho da alvorada

levanto a âncora que arrastou o corpo

sitiado por tribunais estéreis

amarrado ao represado manto de água

como se ele próprio, o corpo,

anuísse nas comportas que largam o degelo

mudando a consoante muda

consoante o que muda no jusante.

#2703

A boca faminta

sanguínea

não traz vítimas à lapela.

6.3.23

Falávamos de marés e de outros sortilégios

Dizias

com as palavras ditas em dourado,

as sílabas armadas com destreza,

que eras capaz de secar a maré 

– e eu queria 

que todas as marés fossem 

apenas 

praia-mar

para não molhares mais

do que os dedos dos pés.