18.3.23

Sem destinatário

Este é o inferno sem demónio:

as casas empenham-se atrás dos limoeiros

na dedicatória ao fermento que trava a morte

o fecundo bolor em pétalas de sol inaugural. 

As ferramentas desarrumadas

intuem as desregras que não se escondem:

os vilões podem ascender ao promontório

podem colonizar os idiomas

pretender que os demais sejam escravos 

do silêncio

mas não passam de mastins desdentados

meras hipóteses de inferno

escaras que só sabem ser pútridas

como pútridos são os seus lamentos

ciciados na babugem soez 

– o seu passaporte,

que nunca prescreve. 

Esse é o inferno

onde os outros são mesmo os outros

empilhando todos os escaravelhos mentais

decifrando as luas que regurgitam 

das entranhas

enquanto passeiam inesteticamente nus

sentados nas coroas de espinhas

de deuses que caducaram às mãos vingativas. 

Os vestígios de sangue escrevem a pauta

e não há fronteira que se desembarace 

das facas,

o ultraje desfilando 

com a pompa dos órfãos de lágrimas

através das claraboias que ensinam as palavras

as temidas, as dissolvidas, as polissémicas,

as palavras-desfiladeiro. 

Se as falas apodrecidas fossem gémeas 

da mentira

não havia páginas para contar

não havia sucessores habilitados

e os lugares seriam ermos

como ermas são as luas 

se em viagem as visitarmos. 

O vento aluga-se aos interessados

mas não aceita rendas em saldo:

de cada vez que formos heróis,

nem que seja por conta própria,

saberemos 

que as páginas não se viram do avesso

a menos que a fome seja intencional. 

Ninguém trava a imensa roda da vida,

ninguém a consegue travar. 

A matéria infecunda que é a tela do deserto

deve ser a mátria do inferno,

o lugar onde a pele se descola da alma 

e fica ao deus-dará

órfã

destruindo os trunfos orquestrados

vingando os pulsos amordaçados

coabitando com as corpos tão puídos

na fábrica que não tem morada

a fábrica que não precisa de operários. 

A boca treme

tropeçando nas sílabas cortadas pela metade;

não há cicerones

neste lugar sem morada

não há dicionários nas estantes

apenas a poeira vetusta que tatua a pele

e anestesia os diligentes estetas,

sem esperar por instruções

abocanhando o podre do dia que decai. 

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