10.4.23

#2740

Segregava

a Primavera ostensiva

no desabotoar das flores

feito o inventário do Inverno

sepultadas as chaves da hibernação. 

9.4.23

Taberna dos beócios

Antes confundir

concelho com conselho

do que LCD com LSD.

 

(Ou vice-versa,

que agora a dúvida

falou mais alto.)

#2739

Do dia estrénuo

ao formulário do medo

um roda inteira do mundo.

8.4.23

#2738

De toda esta terra 

aquém de si mesma

quanta é 

a contrafação do sangue?

7.4.23

#2737

A claridade vacila

à medida da voz trémula

que se levanta 

a jeito do entardecer.

6.4.23

Injustiças indocumentadas (88)

Anagramas 

com elevado viés 

incluído:

left e felt.

Manifestação

Dou à boca as palavras cãs

onde sobem os socalcos

até serem o mais alto trono

no promontório geodésico

onde tudo se oferece 

no estuário do olhar.

 

Deixo outras palavras 

não mudáveis

serem a cintura da tarde.

Ao mundo que não ouve

não digo que anda ao deus-dará,

digo o nada que ele que ele dispensa.

 

Se a matéria ampla for presságio

deixo as mãos no caudal do rio voraz

e nas pregas da idade apregoo as lições,

as estátuas perenes cingidas

no relógio sem nome.

E se na véspera forem todos mastins

escondo-me no espólio sem paradeiro

e deixo aos nomes 

a veia anónima que os consome

e os deixa utilmente anónimos.

 

Todo o sangue vazado

é mil oceanos coléricos

e os ossos

as cordilheiras submersas

as lápides que silenciam 

tantos segredos.

Injustiças indocumentadas (87)

“Estou-me nas tintas”,

disse,

sem (a)notar

os vapores tóxicos a que se expõe

quem está imerso em tintas.

#2736

Demitiu o arnês

e nomeou 

a montanha russa,

uma roda-viva 

em carne extasiada.

Injustiças indocumentadas (86)

O mantra,

não o manto.

5.4.23

Injustiças indocumentadas (85)

Caído o queixo,

o chão virado do avesso

adejando sobre a cabeça.

No dicionário, a Primavera

O mar

parecia o verniz do dia

como se fosse possível 

emoldurá-lo.

 

A maré 

cercava as rochas

um cerco de sal e linhagem

imperturbável.

 

O rio

queria saber do sal do mar

enxertando-o de imodéstia

e soberba.

 

A lua

era testemunha à distância

ainda mergulhada no seu sono

diurno.

 

A Primavera

já mais do que um esboço

deixava em legado as suas páginas

aveludadas.

#2735

Eis a alquimia da Primavera

os pássaros doidejando

como se fossem bardos

em coreografias coloridas.

4.4.23

Liturgia segundo os apóstatas avulsos

Dédalo das más intenções;

que se metam as palavras 

em marcha-atrás

e as más sejam boas intenções:

os espírito afidalgam-se

as solenidades são honradas

em vez de serem consumidas

pela banalidade da rotina.

Uma litania atravessa os claustros

onde se evoca a grandiosidade 

do futuro.

Testas-de-ferro diplomados

querem açaimes

querem

silêncios que evaporem as falas:

conspiram contra as vozes bastardas

vozes que estilhacem o bem adquirido

e a motivada mentira que atravessa 

os dias.

Em vez de uma bandeira

uma coroa 

auréola as cabeças sem tenência.

Há generais a mais

e solenidades a menos

e os festins

em devida preparação

não são de assinalar com ausência.

Injustiças indocumentadas (84)

A algaraviada

não precisa de sol

só precisa

de um módico

de sangue em ebulição.

#2734

Quem vai 

à poesia

dá e leva.

#2733

Deste modo,

a fala bruxuleante

que enfeitiça o luar.

3.4.23

God is lost in transition

Epifania no fundo do prato

sável ao engano

escabeche sem cebola “adstringente”

os talheres trocados

mas não para os canhotos

que somos contra discriminações

e deus

se existisse

 

(oh! lugar-comum

tão banal

que as próprias banalidades

se esgotam 

num esgoto de banalidades)

 

apedrejam os mastins da discriminação

que ganhou lugar de moda

a discriminação positiva

positiva

palavra benquista

louvor a prazo

crédito sem juros

contra os agiotas que açambarcam as almas

ingénuas

dir-se-ia

das que acreditam em deus

não fosse esta arrogância

um auto-de-fé contra quem a vocifera

ou

epifania do avesso

como se os hereges

e os ateus

 

(não necessariamente por esta ordem)

 

se perdessem no pântano das suas aleivosias

e deus

afinal

não se tivesse perdido

na transição.

#2732

Se não fosse 

pela dúvida bastião

os segundos sincopados

seriam uma repetível monotonia.

2.4.23

#2731

A voz visível

estilhaça o caos marejado

que anoitece o olhar

dividido.

1.4.23

Injustiças indocumentadas (83)

Se o trinta e um

é apenas trinta e um,

por que há de ser

um trinta-e-um?

Injustiças indocumentadas (82)

A mentira

é perna-longa.

#2730

Longe dos telhados de vidro

a folha caduca

enrugada e seca

esconde um legado.

Injustiças indocumentadas (81)

O toque de Midas

é erógeno?

31.3.23

#2729

Espreitei

por cima do dia

e as mãos falaram

o poema destinado.

30.3.23

Injustiças indocumentadas (80)

Penso rápido

no penso rápido

que o rápido dispenso

no rápido dá que pensar.

Providência silenciosa

Um bocado de carvão 

atirado à patibular infância:

dizemos sempre

que ficou tanto por dizer

e ninguém se acusa 

na cacofonia insurgente,

o chilrear doentio de falas sobrepostas.

 

Um bocado

talvez

de silêncio:

 

a bonomia que se congraça

nas entrelinhas da ausência:

ao silêncio,

a sua suserania

que de palavras banais 

estamos cheios.

#2728

Perguntaram

o que queria ser

quando tivesse idade 

para uma profissão:

alimentador de sonhos,

respondeu.

29.3.23

Dieta

Seguimos pelas avenidas vãs

aquelas onde a poeira sente-se nas veias

e as palavras desassossegam os anjos.

 

Vamos às avenidas malsãs

aquelas onde a poesia é insulto

e a fala se polui com deuses.

 

Saímos das avenidas repletas

aquelas em que somos corpos estranhos

e ao exílio pedimos franquia.

#2727

Recusem a desambição

de meter açaimes nas palavras

para não serem vítimas

do silêncio.