23.4.23

#2758

Um anão 

dança no meio da sala

e ninguém deita o olhar

nos gigantes que também

dançam.

 

[Às vezes, a metáfora de geopolítica]

22.4.23

Injustiças indocumentadas (94)

A tara da montanha

impede

que seja movida

pela fé.c

#2757

Feita a autópsia à lágrima corrompida

os peritos lavraram o auto:

era do sol pesaroso

derrotado 

pela chuva fora da estação.

21.4.23

Mosto capital

A fogueira crepita,

o único embaraço 

ao silêncio. 

 

O vinho voraz

deitado no sangue

a combustão empenha-se 

nas palavras. 

 

O frio fundo

foi deposto

e lá fora o luar

serve-se da solidão. 

 

Oxalá tudo fosse

assim sereno

deserto 

sem a vozearia infinita

sem os arautos do fingimento

apenas

um punhado de exilados do dia

que, como gatos vadios,

celebram a cidade como ermo lugar. 

Injustiças indocumentadas (93)

Dos vira-casacas

não se digam cobras e lagartos

que vestir o casaco do lado do forro

não é grande estética

e conforto.

#2756

Às vezes

apetece o exílio

atrás de um eclipse.

20.4.23

Por suposto silogismo

Se desse mel houvesse escamas

seria como vírgulas a destempo

ou um eclipse a adiar a penumbra.

 

Se do forte não houvesse fala

seria como um voto sem antídoto

ou um peixe a recusar a água.

 

Se às cores se arrancasse a pele

seria como uma enseada insociável

ou um idioma sem tradução inventariada.

 

Se dos braços levitasse o silêncio

seria como baixar âncora longe do cais

ou uma espera interminável no avesso da luz.

 

Se o remédio fosse calar a voz

seria como aceitar a desliberdade

ou um punhal cravado no pensamento.

 

Se em estilhaços acabassem as prosápias

seria como aplaudir a armadilha das vésperas

ou a lotação com astronautas de contrafação.

#2755

A mentira desengonçada

a mentira militante

a mentira à mentira

a mentira

a.

19.4.23

Eletrocardiograma

O conciso dia

abriga-se da escuridão campeã

junta o vento razoável

e armadilha os precipícios esperados. 

Serão os nomes avulsos

os senhorios das almas desemparedadas

serão eles 

a fabricar as convulsões apátridas. 

Hoje

só quero ser herege de todas as verdades

repatriado para um lugar zero

onde tudo pode ser contado

desde o início. 

As nuvens foram desenhadas por esquilos

e só falta saber o nome do arquiteto. 

Talvez as nuvens escondam nomes

e os estendais onde ganham cor

esqueceram-se 

de se avivar com as cores precisas. 

O murmúrio ganha peso

dissolvendo o silêncio da madrugada. 

Nos cafés 

onde as pessoas se despedem do torpor

a louça frange, estridentemente:

é de propósito

que o dia depressa se apressa

e não há melhor cafeína 

que o estrondear das chávenas. 

Os sinais anestesiam a fala

a derradeira instância da inércia

obrigada à derrota 

pela roda-viva que não tarda. 

Vai começar a grande farsa.

Injustiças indocumentadas (92)

Sorte, e grande,

para contrariar

os jogos que se chamam

de azar.

#2754

Riscas

o sangue do dia

com um lápis a doer,

à espera da voz mestiçada.

18.4.23

Aqui não há rede de segurança

O céu temperamentalmente outonal

cospe sombras sobre o avesso da noite. 

Vozes efémeras casam-se com a distância

esmaecendo a caminho do silêncio. 

A cada minuto

há não-sei-quantos praticantes da mentira

não-sei-quantos mentores do passado

não convencidos que o tempo segue para o futuro

não-sei-quantos mortos nas estradas

não-sei-quantos embriões logrados 

no sexo interrompido. 

As páginas dos livros incendeiam o vento

enquanto esperam

que a noite recupere o seu lugar. 

Alguém diz

tenho medo dos sonhos

tenho medo

que pressintam o pesadelo 

em que se torna

a vida. 

As pessoas querem o seu exílio

por fora do perímetro puído que as expropria. 

Querem

um futuro de poesia

em vez do pesadelo contínuo

através das assinaturas de jornais

e noticiários televisivos e seus ademanes 

– profetas da malquerença

e oráculos de utopia. 

#2753

“De”

pela parte

da mãe

ou do pai?

 

[Sociologia avant la lettre...]

Injustiças indocumentadas (91)

Matar o tempo

(dizem)

a tempo do tempo

falsamente imorredoiro.

#2752

Os dedos

como raízes

bebem na maré

enquanto se prometem

florestas protegidas.

17.4.23

Noruega! (Súplica)

Dezassete de abril

trinta graus centígrados

e ainda mal a tarde 

alvorou.

Mau, tempo

que mau tempo.

Sondagem

A hipótese

não se rende

com duas palavras meigas

nem se entrega

nos braços de um sacerdote 

sem remorsos

a menos que seja convencida

que é um desacontecimento. 

 

Todas as lápides

não podem tanto

como a gramática da pele

que se tatua de palavras fortes

e dá ao corpo as catedrais possíveis

onde se convoca uma arca de flores

a amostra da Primavera

que encena a sua exuberância. 

 

No resto do tempo

as hipóteses 

somam-se à toalha da mesa. 

#2751

O leiloeiro 

não desistiu de encontrar 

quem dá menos.

Injustiças indocumentadas (90)

Há o rei disto 

o rei daquilo

e o rei daqueloutro

só pode ser 

uma monarquia interrompida.

16.4.23

Didascália

Emparedado pela memória

como se os remos

arrumassem a maré contrária

e tudo no dia 

fosse a simetria do esperado.

 

As flores deitadas nas jarras

ficavam para memória futura:

 

logo que as pétalas ficassem maduras

e o embaraço 

se congeminasse na eira

os relógios dariam voltas atrás

e a inveja do futuro seria a rua deserta

aquele lugar a que ninguém ia

 

nem que governos ciosos 

malbaratassem

subsídios inúteis.

 

Emparedado pela memória

na intuição dos dias

devorados em rapsódias circundantes

a pele ateada no areal

abraçada ao sol ecuménico.

E um instante que se demora

à espera que o futuro 

seja um juramento.

#2750

Falavam de redenção.

Recusava.

Não estava moribundo.

15.4.23

#2749

O membro do governo 

faz as perguntas

e, com diligência inexcedível,

redige as respostas.

A Filosofia 

devia ser cancelada.

#2748

[Derivação – ou consequência – do #2747]

 

Incumbência:

instruir os editores

para mearem as páginas:

numa metade o texto original

na outra as luzes em dádiva ao leitor.

#2747

Termos 

em que temos os tempos

da linguagem em fora-de-jogo.

#2746

Encurralado

entre o deserto ermo

e a metrópole hermafrodita,

o precipício a estalar na boca

a qualquer momento.

14.4.23

As bocas que dança com os nomes

São as bocas 

que dizem os nomes.

E os nomes

ensinam as bocas.

As palavras são mediadoras

a ponte entre os nomes e as bocas

que sem as bocas 

os nomes ficam sufragados pelo silêncio

e sem os nomes

as bocas não sabem de que terra são.

Do silêncio não se diga

que impede os nomes:

todos os nomes não deixam de ser

se o silêncio for instalação duradoura.

Uns nomes têm palco

e outros não:

não se ofendam os mártires da igualdade,

uns nomes têm palco

falam com as suas bocas

há bocas outras a falar de si;

outros nomes vivem do anonimato

as suas bocas falam

não há quem nomes que ouçam

e mais nenhuma boca recita os seus nomes.

As bocas todas deviam ensinar

aos nomes sem exceção

que a miragem da igualdade

devia ser metida 

em museu a preceito.

Injustiças indocumentadas (89)

Alto Douro.

Alto Douro.

 

[Para ser lida, a segunda estrofe, “Altooo Douro”]

#2745

De astronauta disfarçado

meteu as mãos ao barro

esculpiu a sua própria lua

e partiu rumo ao exílio.

13.4.23

Jogo quase olímpico

Epicentro;

as furnas levitam o magma 

das almas sem paradeiro.

 

As folhas das árvores

derruídas pelo Outono

apreciam o ocaso

o fusível para as cores adulteradas

em movimentos desorganizados

de sindicatos sem certidão.

 

Diz-se

outra vez

sem saber se é por recusa

ou como hospedeiro da rotina

sem sequer intimidar 

os diseurs.

Abandona-se o lugar

deixado vago aos bancos ausentes

os bancos que podiam ser de bancos

se ainda houvesse jardins.

 

A matéria viva

toma conta do sol

fermenta a carne incindível

demorada no crepúsculo efémero.

Os cardumes pressentem-se

o mar é a sua morada

e não há pesqueiros no perímetro

nem um matança no fio do horizonte.

O ultraje

é afim do arrependimento

não se pode cativar a hipocrisia nos outros

sem cair na indigência

de não se reconhecer hipócrita.

 

O sal tempera as cicatrizes

põe as feridas à prova.

Não é provação à medida

ou à desmedida encomendada:

o sal

é a alma mater das cicatrizes

o incentivo

para tantos serem mineiros.

De todas

a pele de pêssego

cobra os impostos diferidos

e sabe-se

é a exemplar seda que cobre os corpos.

 

Na véspera

o medo era apenas

uma intendência.

Fingia-se não saber 

a linguagem do medo

fingiam-se

exílios em grutas sem mapa

em vez de almocreves desossados

irrompendo contra as palavras párias.

 

Era assíduo ouvir

por vezes

como se dizer 

por vezes

fosse a promessa que faltava

para colorir os dias vindouros.

Se houvesse

um matadouro dos lugares-comuns

não seriam de sangue

os seus vestígios.

Mas não haveria operários,

ou uma autofagia dilacerante 

cortaria tudo a eito

em pequenos estilhaços

de nós sobrando um ermo infecundo;

o precipício habilitado

para as vias de extinção.

 

Formulário coloquial:

aceitam-se a concurso

todas as fragilidades

as inventariadas 

e as que esperam 

em reserva;

num concurso de males

vence o que for de menor

estatura.

#2744

Decreto

o objeto secreto

como remédio direto.