11.6.23

#2810

O circo desmontado

as feras hibernadas

a arraia-miúda

de olhos marejados.

10.6.23

#2809

Encorpas 

numa muralha de palavras

avenida que amanhece

numa clareira.

9.6.23

#2808

Nas fronteiras 

um marco geodésico

o passaporte 

para um sangue participado.

8.6.23

#2807

Esta marcha marcial

tem tanto de impante

como de parcial.

7.6.23

Marcial sem arsenais

Ascendo ao supor venal: 

transijo com os rumores,

a flácida matéria 

dos que deixaram de ser 

vitais,

convoco os leilões das almas

as almas em pessoa

ou por procuração

(também serve).

Amarro os braços

a uma camisa-de-forças

a jaula de onde não apetece fugir

mesmo que exposto como animal

e de mim se diga

que foi merecido.

Nunca tive medo da humilhação.

Nunca soube ser das dores da insídia.

Ouve-se o vento martírio

o ciciar das flores que crescem

um vírgula dois centímetros por hectare

o ritmo compassado da pele hirsuta

e sabemos

sem termos sido ensinados

que é como se um tsunami 

estivesse a bater à porta

e nós, 

impassíveis,

à espera

só à espera.

Injustiças indocumentadas (118)

Aprende 

que eu não duro 

para sempre;

aprende

que de mais duro crânio

não há paradeiro;

e aprende

que a vaidade

extingue-se

como a vida.

#2806

A eternidade

é uma vírgula

no passado.

6.6.23

Injustiças indocumentadas (117)

Traz água no bico

(mesmo que esteja uma seca

de bradar aos céus).

#2805

Ponto e vírgula,

antes de mudar o assunto

que ainda não ficou tudo dito

sobre a pendência.

5.6.23

A viabilidade da fala

No estuário da voz

as sílabas cortam o vento

e acertam a nomenclatura

desafiando a orfandade.

Não será nesta voz

que se aninha o protesto:

o silêncio não tem gramática

e ainda que sejam viáveis

os apóstatas da cacofonia

até as palavras sem fundo

se sobrepõem ao silêncio:

o silêncio

é o pressentimento da morte.

Injustiças indocumentadas (116)

Se de bronze são

pífias são as leis.

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (115)

Se há leis de bronze

por que não as há

de prata ou de ouro?

 

[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]

Injustiças indocumentadas (114)

Uma lei é melhor

só porque é de bronze?

#2804

A armadura disfarça as fraquezas

ajuda a mentir 

com a dignidade da sua ferrugem.

4.6.23

#2803

A jogo 

sem medo

a muda 

arraia-miúda.

3.6.23

#2802

Escolha uma das seguintes

para a personalidade do momento

 

burlesco

grotesco

picaresco

 

sem justificar a escolha.

2.6.23

Valsa do peregrino

Um peregrino

 

(parecia um peregrino,

ou talvez fosse um mendigo)

 

avança devagar

apoiado na estrada.

Arruma com os pés as flores 

deixadas em bandeja no chão

como se o chão tivesse suplicado

um tapete aromático.

O peregrino

ajeita os andrajos

 

(seria um mendigo?)

 

e murmura

com ar de poucos amigos

o que ninguém consegue retirar

ao silêncio.

O peregrino

participa a solidão:

há quanto tempo

não fala com pessoas?

e esta interrogação

arbitrária como a suposição

só é válida para quem a formula.

Ninguém pode dizer ao certo

o que vai por dentro do peregrino

 

(e também não por dentro do mendigo).

 

A fivela à cintura descaiu

e o peregrino acerta-a:

não quer ficar

com as calças na mão,

o mendigo

 

(ou será o peregrino?).

#2801

Escondidos

como se fôssemos

o nosso próprio eclipse 

– não é vã,

a matéria anónima.

1.6.23

A pele do avesso

Virada a pele do avesso

um desassisado vulcão 

de frente para o precipício

sem rastilhos por atear

sem outras partidas

a servir de cais.

Do avesso

em vez de avulso

a lareira dentro da boca

e a incandescente tocha à espera de erupção

domando o sal que vem com a manhã.

Avesso me encontro

às tágides como trovoadas

inspiradoras que inspiram um avo

antes que sejam fermentadas 

pelo efémero que não entra no dicionário.

Ao vaso centrípeto

onde o sangue se deslaça

e tudo deixa de ser ontem

a pele avessada deixa de ser

em bordões de carne sem prescrição

a teimosia que derrota os mastins sem rédea.

E de volta do avesso

a pele desembaciada golpeia as uvas certeiras

antes que as abóbadas do apocalipse

sejam bilhete postal

antes

que as rodas desimpedidas sejam travejadas

no provável logro dos medos

na fatiada vida servida em fascículos

contra o princípio geral do bocejo

e a alardeada sinfonia 

dos que vão de braços em baixo.

Para saber da pele

é preciso levá-la ao avesso

extingui-la das viciosas coleções dos dias

macerá-la no vinho frágil

que a torna a mais vívida fortificação.

#2800

O vento 

foge depressa daqui

vem-se a saber

que este não é um lugar

favorito.

31.5.23

Alvoroço em gema

O alvoroço armadilha o convés

onde distraídas se congeminam as marés. 

As nuvens que desenham o céu

participam na quimera dos contumazes:

se os dedos chegassem às nuvens

conseguiam tatuá-las. 

No fundo poucos são assim

escondidos no seu labirinto

só eles conhecedores 

das meadas em que se entretecem

sem ambições de desanonimato. 

O alvoroço 

é o hino em que se amparam

ciosos de serem maiores 

do que o espelho que os retrata

na improfícua demência de julgarem

que as suas vidas 

são um teatro com audiência.

#2799

Espelhos fraturados

como se só houvesse 

retratos fragmentados

e não se falasse de inteireza.

Injustiças indocumentadas (113)

Compro gato por lebre

e que belo negócio.

 

[Mandamento do ailurófilo]

30.5.23

Metanol e Camões

Assim como o metanol:

sabia o poeta

(“o fogo que arde sem se ver”)

que havia o metanol 

– se quando o vate assim poemizou

ainda o metanol não tinha passado

no crivo das invenções.

 

Camões

foi muito à frente do seu tempo

(não é costumeira loa):

adivinhou

que o metanol seria inventado.

#2798

Quantas mentiras

foram ontem?

29.5.23

Ética republicana ao pequeno-almoço

Rega-se a mentira

com o mosto da injúria

somam-se 

umas lágrimas vadias

e fingimento q.b. 

Armadilha-se o dia 

com as esporas do medo

enquanto 

as sacerdotisas da hipocrisia

escrituram a feição avessa

e gritam

a seu favor

a verdade que não admite oposição. 

Mete-se o preparado no forno dos arnaldos

e o cronometro vai ao zero

só à espera de maturar

sob os auspícios da confraria inteira

que serve em bandeja o solilóquio dos pares

que se prometem sinecuras recíprocas

e ostentam o estandarte do monopólio 

sem não olvidarem a bandeira que vestem,

embaixadores incontestáveis 

só merecedores de encómios e genuflexões

ou não fossem

em plena vaia ao que dizem representar

juízes em causa própria,

aqueles mesmos que enchem a boca

com a palhuda massa folhada 

da ética republicana. 

#2797

Não se escondem

os rostos desembaraçados:

não precisam de golpes de Estado.

28.5.23

#2796

Em liça

a efervescência da pele

contra a agonia dos bastardos.

27.5.23

#2795

Se o rastilho ferver

e à ebulição me abraçar

os olhos vendados sabem a ler.

Injustiças indocumentadas (112)

Em suma,

o sumo

(sem pontífice).