1.9.23

Injustiças indocumentadas (162)

Nuvens vadias,

disse a meteorologista

deixando a verdade

a voar acima das nuvens.

#2883

Quem não petisca

não arrisca.

 

[Manual de instruções para restaurantes com estrela Michelin]

Injustiças indocumentadas (161)

A espuma dos dias,

a gastronomia molecular.

31.8.23

A alma-casa

A casa não é o bolor

as paredes não se descumprem

e as janelas são vantagem

sobre o exterior.

Caso sejam inquiridos

os alicerces dirão em ata

os maiores encómios.

As suas habitantes almas

são o arnês expedito

o aval à prova de abalos telúricos

o atestado que suplanta

os melhores cálculos engenheiros.

Injustiças indocumentadas (160)

O Direito

é tão torto.

#2882

A página amarrotada

um canto escondido da lua

a mão caiada, 

à espera.

30.8.23

Injustiças indocumentadas (159)

Andamos a viver

abaixo da nossa felicidade.

 

[Inspirado no Butão]

Produtividade

Os fórceps diários

eletrocardiograma previsível do mundo

as golas derruídas esbatendo as vozes malsãs

à míngua de arquitetos salvíficos,

extintas as epifanias. 

 

Mergulhas no rio matinal

e sabes 

que a pele ruge pelo frio que a trespassa;

os homens querem-se audazes,

ouviste pela vida fora,

sem ser preciso frequentar quartéis

e convenções de nostálgicos

(onde a boçalidade é o verbo farto):

é ao contrário,

arregimenta-se o fino nervo que serve à pele,

a sensibilidade (dizem)

que levita sobre as coisas brutas da vida

emprestando beleza à vida de outra forma bruta. 

 

Tudo é um império de fingimentos

e está é a adversativa que soma uma contusão

às maiores esperanças adivinhadas 

para memória futura. 

Os rostos são colonizados por disfarces

e nem precisam de máscaras. 

As pessoas parecem mortos antes do tempo 

ficam paradas à espera da tabuada dos mistérios

como se fossem pescadores

pacientemente aguardando um sinal místico:

a prescrição da anestesia que não pediram. 

 

Juras que não sabes

de que dores é feito o mundo. 

Se te dessem para a mão a agulha de tricotar

não darias ao mundo 

um emaranhado paradoxal como formato

nem saberias do que serias doador. 

 

Mas não juras nada. 

A experiência ensinou-te 

a lei geral da inverosimilhança

o pudor estatutário que refreia o ânimo

o contrabandear das almas que se vestem do avesso

a obediência arcaica que coage a liberdade 

o impensável como critério cautelar

a colossal humildade de quem é indiferente

o arsenal destituído devolvido à arma da palavra

o fogo apalavrado que ateia o futuro

em toda a carne sangrado

matéria-prima incandescente da vontade

o esteio incorruptível

à prova de provações

privado do medo que nega a pessoa.

Injustiças indocumentadas (158)

Macacos me mordam

que me esqueci 

de perguntar aos macacos 

se me querem morder.

Injustiças indocumentadas (157)

Ferro velho, ferro velho

que sucata chama por ti?

#2881

Nadar em forma de concha

o pé arriscado um passo atrás

arrematar o futuro

antes que ele seja pacto.

29.8.23

Aperfeiçoamento

Mandatado pela tatuagem que debitava vanidades

parei diante do estuário

o amplo parque de estacionamento de navios

e senti que as palavras queriam lava

os dotes avulsos subindo à boca de cena

antes que as omissões se tornassem olvido.

Era o chão fértil dos grandes escapistas,

tortuosa a espera pelo ontem havido,

enquanto no apeadeiro se falava um idioma caro.

O amurado cear não tinha o luar por companhia

mas não fazia mal:

há almas que substituem a angústia por centelhas

trazem em mão as suas próprias centelhas

e recusam a luz fabricada.

Depois de amanhã

voltaria ao lugar de anteontem.

Suspeito que os dias não combinam

e tudo se fará farta colheita nos bolsos revezados.

#2880

Se por dardo entenderes

o dia nascente, plúmbeo,

tuas serão as cortinas puídas

que se abatem 

sobre o dorso alquebrado.

28.8.23

Injustiças indocumentadas (156)

Não precisas de ser um espantalho

para espantares os espantalhos.

Injustiças indocumentadas (155)

Ninguém sabe

que a desculpa é de mau pagador

se não se souber que o pagador 

tem o nome no Banco de Portugal.

#2879

O vinco do vento

entre os poros da pele

a pentear as dores do medo.

27.8.23

Laboratório

La-

bora-

tório.

Labor-

a-

tó-

rio.

Labora-

tor-

io.

Lab-

oratório.

Laboratório.

26.8.23

Precoce

O que perguntas ao futuro

se o futuro ainda procura

um paradeiro?

 

Que parágrafo estabeleces

entre as ameias do tempo

para consoar no sangue-frio?

 

A que demónios dás coutada,

aos poéticos ou aos políticos?

23.8.23

Um presidente na Polónia

Espalhafatoso. 

Espalha factos. 

Espalha fatos

 

(em trincheiras

devidamente documentadas

só para fazer de conta

que é 

como na Primeira Guerra).

Injustiças indocumentadas (154)

À fina força

antes

que a força 

seja grossa

(e mal-educada). 

22.8.23

Rigor mortis

Sabendo 

que “deus está no meio de nós”

descobri 

que o ateísmo se deve

a um de nós

e não é em ti que o mal reside. 

Injustiças indocumentadas (153)

O lugar

onde as certidões de óbito

prescreviam. 

21.8.23

Preâmbulo

Olha

por dentro dos olhos

alcatifa o verbo tardio

desmata o Inverno sensato

e espera

pela tardança respirável

o assunto válido que se entretece

a rede de onde saem os peixes em roda-viva

sabendo das dores que desdoem 

o desafio que se incensa numa pira de medos. 

Atira

para dentro do preâmbulo

as falas inteiras que abrigam

a estória toda. 

20.8.23

Desmatemática

Não contes comigo

essa 

é matemática 

que não conheço. 

18.8.23

Bar de praia

As pessoas bem

que dizem bué

e tratam os filhos

por você

só vão almoçar

às duas e meia. 

Aguaceiro tropical

Foi chuva

de pouca dura. 

Déspotas em extinção (um sonho)

Escureci as facas com que se compõe o juro. 

No último dia

agravei a medida por que se tomam os déspotas

e perguntei

quando é o último dia

o dia

da extinção do último déspota. 

16.8.23

O acrobata

O desembaraço com que o acrobata saltava

fazia lembrar aquelas palavras órfãs

errantes na planura da página

como errantes são as mãos que as tutelam

uma lava irredutível que ascende pelas veias

e se desamarra das vulgatas. 

O cais não serve de refúgio:

é a casa da partida

antes que seja reduzido a uma salina

e à saliva subam as miragens. 

O acrobata tinha um esqueleto de borracha

e nós sabíamos

que a borracha não nasce apenas de uma árvore. 

#2878

Nos veios da vontade

o calcário desinfeta o medo.

15.8.23

#2877

No emaranhado 

que foste buscar ao passado

precisas de uma didascália,

uma memória futura

para te perderes.