Fina é a nódoa
que só se deita
na boa fazenda.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Um espelho que se despenha
vertical
no eixo do vazio
cozinhando no fogo embainhado.
No vale tardio
os camponeses esperam
pela pendência da velhice
amestrados em segunda grau
a contar os clérigos exilados.
Arrestam as suas artes ao pelourinho
preferem uma oferenda às divindades
antes que uma errante vingança
se abata.
E até os que se deitam ao paganismo
não insultam as divindades que não vêm:
ó embaixadores dos tempos
trespassados por mil soldadinhos de fancaria
aprovados nos ulteriores salões de boémia
tragam um excerto de futuro
para os embaixadores do medo
resgatarem a loja onde se desbarata o sossego.
As avenidas continuam sobrepovoadas
as almas à ilharga exibem a densidade:
as cidades arrumam-se depois
largas temporadas após se tremem esgotado
nos palacetes que guardam
as ideias barrocamente estultas.
Os olhos cruzados invadem-se
com o aparato da deselegância
sentem um burburinho
a colonizar o sono postergado:
os dedos
acobertam as páginas desimaginadas
que fogem sem trela por perto
ensaiando a tiracolo nas nobres decências
os homens encanecidos
que não se escondem nem fingem
um elixir
no enclave onde se apresentam as fardas.
Dão a noite por perdida,
agora que a insónia os enlaçou na alvorada
a destempo.
Se soubessem traduzir os incómodos
o dia por diante seria um longo eclipse
as persianas corridas fechando a luz do palco
e as pessoas
cabisbaixas
aprendendo com o porvir.
O alvoroço ruge no dédalo da acalmia
desautoriza o medo que nos dizem contínuo
como se um estado permanente de intimidação
estivesse de atalaia
vigilantemente angariando a obediência.
Lá fora
gatos vadios entretêm-se na coreografia do cio
desobedecem ao humano código de conduta;
obedecem na mesma,
o seu particular código
de conduta.
Peritos que mostram as credenciais à lapela
explicam que só todos formatados por regras
não seríamos uma anomia cacofónica
se persistíssemos na ausência de códigos,
empenhados no magma animalesco
reféns da ideia
de que limítrofes são todos os demais
sem ambição de sermos alguém
por fora das nossas fronteiras
nós,
em cada individualidade concêntrica,
a granada desencavilhada no limiar
do rebentamento
aos nossos pés.
Muitas e elaboradas são as confabulações
avivadas pelo lastro do tempo
e a fonte da experiência,
provas incontestáveis de sermos
um peão dentro da colmeia.
Anestesiados
pelo saber enciclopédico
e pela humilde sujeição aos maestros
que por isso nos regem
e esmagados
pelos obscenos desexemplos contrafactuais,
os párias provam com a sua insubmissão
que são miasmas para o coletivo sobreviver:
aceitamos
os códigos
e as leis
e os regulamentos
e todas as proibições
e mandamentos inescapáveis.
Confirmando-se
o Homem é lobo de si mesmo
autodidata da autofagia
viciado numa menoridade perpétua
que o torna meão.
O mar mestiço
abraça a miragem.
Combina a fúria
no mosto da tempestade
emancipa-se
de todas as vontades.
Tresleem na penumbra
um ocaso antecipado
e o mar mestiço
terça com seis braços
as espadas pusilânimes.
Um mar destes
é luto de pescadores
e musa de poetas.
São intransigentes
as injustiças
que nos regem.
O mar mestiço
não fala de lutos.
Luta
como se fantasmas se insinuassem
e pudessem ser um ónus.
O mar mestiça-se
para desarmadilhar conspirações.
Amedronta e extasia
a uma só vez
enquanto caia o dia
com uma tela embaciada.
Como há quem recuse
uma tempestade
como selo de bom tempo?
Havia um aliás que bombardeava os coliseus
na esperança inveterada de calar os bons.
Não lhe disseram para estar calado
e ele falou até ao próximo eclipse solar
saltando sobre todos os luares
orando as preces que amaldiçoavam
as gerações vindouras.
Talvez porque prometeu
ainda na sua tenra adolescência
que queria ser sacripanta em adulto.
Não sobraram cinzas ao varrer as costuras:
todo o vinho derramado
em páginas retesadas de calendários usados
não serviu para embriaguezes alheias.
O sono apetecia
como ao cão apetece ladrar
e ele
tão sempre de atalaia
vociferava por dentro a ira instalada
antes que a voz magoasse a cidade
e fosse intimado a comparecer
perante os altares enjeitados.
Não é esbanjador,
o pinga amores;
é um harpagão
irrigando austeramente
amor gota a gota.
Fundo de emprego.
Fundo do emprego.
(Renuncio ao Rossio.)
[Variações em torno de Al Berto]
Depois de tanto
adivinhei a madrugada
atado a um fogo posto
sem ter de ser por exílio
ou no caudal do luar furtivo.
Contam as silhuetas
os nómadas que não dormem
contam o que não sabem
antes que sejam
párias da consciência.
Afugentam a pele furtiva
obcecados
pelo estreito incumprimento das regras.
Aburguesaram-se
contestam outros
dissidentes
que deixaram de os ter em conta boa.
Como aburguesar
não merece a atenção do código penal
o pleito é anedótico
um burburinho de primos incompatibilizados
um entretém frívolo
de que não reza a importância.
Os párias
embebidos no nomadismo
não desaprenderam as coisas tribais
por mais que os desavindos os acusem
de se enamorarem pelas coisas triviais.
Se marcassem encontro
numa ágora inspiradora
conseguiam rematar as dissidências
com as pazes a deixar aberto
o horizonte da comunhão de meios?
Agora
as suas peles têm diferentes tatuagens.
Embarcaram em comboios diferentes
e usam mapas que são a antítese.
Dantes
ainda fingiam unidade.
Agora
evitam as mesmas ágoras
e deixam para os outros
o ónus que dividiu uma em duas casas.
Estão mais longe
do que estavam dos demais
antes de terem angariado
a cisão.
Muito se aguarda
no plantão dos iludidos
sem conceder que é um alçapão
que mora atrás do horizonte.
O objeto é abjeto.
Ir a Marte não é amar-te.
A métrica é assética.
A congruência faz lembrar o congro.
A tirania é uma espécie de tia.
A tirana é a que tudo tira.
O artificial não é (nada) especial.
O algoz é um capataz.
A pureza é uma indelicadeza.
O bocejo é matéria do desejo.
A aliteração soa a aletria.
O robe não é um nome inglês.
O contumaz deixou de ser capaz.
O périplo é como o pirilampo.
O estilhaço não precisa de vidro.
A bala precisa de demência.
A igreja não tem nada que se veja.
O estupor também é doutor.
A toalha não coalha.
Cada guerra é um lugar sem terra.
O amante é um armante.
A clepsidra é uma sidra cleptomaníaca.
O entulho é parente do esbulho.
A maresia amacia.
O vaidoso vai doloso.
O vate deve variar o verso.
A escumalha não sabe da escumadeira.
A aia só diz ai-a, ai-a (sem se saber quem é “a”).
A sílaba é sibilina.
A cordilheira não tem arnês.
A chuva dispensou o chapéu.
O sono é mais logo.
O gato perdeu o sapato.
O petiz é tão feliz.
Já o velho cavou o cenho.
O rouxinol só canta por conta do sol.
A sereia é um cabo de sarilhos.
O trovador encontra a dor.
A erudita gostava de ser da comandita.
O estouvado diz estou vago.
A atriz mete o dedo no nariz.
Há costa de quem não se gosta.
E luditas que emigraram para o Luxemburgo.
Sinais de fumo, sinais de fumo.
E o candeeiro gasto, sem mecha.
Fronteiras viradas do avesso.
Passaportes que passam os portos.
E didascálias, para os utopistas.
Dei de mim amostra ao magma inteiro
uma pletora de rios fundos e de frias águas.
Ontem
arrastei os ossos contra a maré
desviei os prantos de colisões desnecessárias
e os furtivos ventos alisaram a descompostura
antes que de mim se hipotecasse
um grama de alma.
Os provérbios fogem pela escotilha
juntam-se aos procuradores da decência
aos sacerdotes dos costumes
(têm de ser bons)
e levitam as mãos ateadas
deixam-nas suadas a saber do frio da noite
sem ouvir a voz mecânica que assalta os sonhos.
Dizem que há profetas que ocupam um lugar.
Devem ser invisíveis
ou puros fantasmas
o porvir continua a desafiar as probabilidades
arquiteto da sua gramática
insensível às sensibilidades que se entrecruzam
dos luditas que trazem em si
as ansiedades ilícitas.
Os campos atravessam os rios
e somos nós
marinheiros despojados
que arrefecemos o aquecimento patológico.
Às vezes
damos as mãos por cima das redes
é quando os sobressaltos fazem alpinismo
e nos esquecemos do arnês.
Não importam
os apocalipses prometidos com solenidade;
os curadores que juram curas a eito;
os mercadores de sonhos que começam pelo telhado,
as vozes surdamente cegas em delírios sintomáticos;
a desbeleza a concurso, a banalização da fealdade;
todos os embaraços à sofreguidão da vida:
em mil páginas de inventário
cobram-se honorários usurários
e já não há doutores das almas que cheguem
na invasão das águas mordazes
que contaminam o dia constante.
Abertos os envelopes
sobravam em salvos-condutos
o que fazia falta em senadores.
Uma terra não é ninguém
se não estiver habilitada
com a sua reserva
de senadores.
É um pouco
como catedráticos sem catedral
mas do avesso;
como não há lugares sem gente
(perguntem ao Bodin)
não se ocupam sinecuras
se desertos houverem ficado
os concursos.
Ao demais
morda-se nos costumes
traga-se a terra desossada de notáveis
que do conceito se faz palavra vã.
Em vão
terá sido a passagem do ano a vau:
finge-se um parêntesis do tempo
como fingem as lápides
antes de serem ensaboadas com elegias.
Prometam antes epitáfios
que os deuses solares andam extraviados
e fazem do Outono uma mordaz encenação
– tal como funciona
com as senatoriais sumidades
à espera de um honoris causa,
à falta de melhor.