22.3.24

Injustiças indocumentadas (317)

A literatura

não rima

com ditadura.

#3099

Ajeita-se a podridão precoce

a espuma pútrida na boca do peixe

um certo odor a apocalipse.

21.3.24

Vate (absolvição)

O poema

é as nossas mãos

que se fundem 

na véspera da loucura. 

 

O poema

é o silêncio que colonizou 

estrofes. 

 

O poema 

é a rua inaugurada

no despontar da cidade. 

 

O poema

é a manhã que levita

sobre os sonhos limítrofes. 

 

O poema

é um verso singular

tatuado no coração amplo. 

 

O poema

é o piano que ensinamos

a quatro mãos. 

 

O poema

é a escultura

em que nos tornamos

o marco geodésico adivinhado

o cais terminal sem gramática por baixo

a entardecida jarra onde nadam

as flores robustas. 

 

O poema

é matéria-prima 

constante

um sinal sem trânsito

dieta que não pede regras

o poema armilar

a esbracejar a alma combustível

no parapeito do amanhã. 

 

O poema

não precisa de poeta

só precisa

dos nossos olhares impuros

alfaiates da métrica em desuso

pátria maternal das manhãs ateadas

no incenso sussurrado 

pelas nossas bocas. 

 

O poema

não precisa

de poetas

se nós lhe demos

corpo.

#3098

O poema que fala

através da fala

que se emudece no poema.

20.3.24

Injustiças indocumentadas (316)

Tirou nabos da púcara

e não foi

para cozinhar um caldo.

Injustiças indocumentadas (315)

Disse:

a liberdade tem de ser regada.

Não disse

a liberdade tem de ser regrada.

#3097

As palavras

tinham a cor da mentira

o desporto nacional favorito

a seguir  

à fraude com dinheiro dos outros.

19.3.24

O país eu

A janela efémera

olha por dentro das veias

cicatriza a carne aberta 

pelo tempo estouvado. 

 

As linhas cosidas sobre a pele

arrefecem o ardor

os novelos do ocaso dão-se à combustão

e os sentidos hibernam 

entre as estrelas avulsas. 

 

Olho pelas fogueiras que hasteiam refúgios

é esta atalaia que redijo em forma de lei

mesmo que seja baldio o pensamento

e em vez de cortinas veja o luar caiado. 

 

Corro pelos miradouros

corro como se não precisasse do sono

a maré alta de meu peito desdoído

a fala que se intromete no silêncio.

Injustiças indocumentadas (314)

Por este andar

num destes dias vindouros

os elegíveis serão ilegíveis.

#3096

Mergulhados na tômbola

ficamos à espera

que ora se ria connosco

ora se ria de sermos seu infortúnio.

18.3.24

Seiva

Peguei nas miragens todas

respirei dentro da escotilha

soube dizer as sílabas da ousadia

e na véspera do medo

arrastei a coragem em nome dos pés

até que de um fôlego só

atirei as nuvens para cima do horizonte

e pude ser do sol a alma gémea. 

#3095

De cada vez 

que se acanha o luar

é tirada a prova dos nove 

à redenção que se fabrica 

num lampejo.  

17.3.24

#3094

“Vaughan Gething, de 50 anos, foi ministro da Saúde do País de Gales (...).” (Das notícias)

 

A mania 

de usar a idade

como passaporte.

#3093

Um braço de prata

a aprender a ser 

ouro.

 

[Entardecer]

16.3.24

#3092

Atravessas a vau

os espelhos abotoados

que fogem da memória.

15.3.24

Oficina

Retificação de motores

era a placa à porta da oficina

e lá dentro

pude espreitar

carcaças desnudarás

cilindros e correias

quase todas untadas em óleo negro e gasto

blocos de motor esventrados

uns em cima de estrados

outros, os pobres, jazendo pelo chão

desenfeitando o chão

e não percebi

os motores que estavam para cirurgia

e os outros

à espera de autópsia

depois de por eles terem assinado

testamento vital

e a trasfega de peças úteis acontecer

para motores outros então ainda mutilados. 

E fiquei sem perceber

se os olhos tinham passado

por uma oficina chamada retificação de motores

ou se era uma metáfora em maiúsculas

um sonho remediado.

Injustiças indocumentadas (313)

As bestas

não precisam

de ser quadradas.

 

(Se forem

elevadas ao quadrado

é caso para pensar)

Injustiças indocumentadas (312)

Os outros

não somos nós

por mais que tentemos.

#3091

O eclipse acorda os medos

às sombras regressa o império.

14.3.24

Simetria

Tiro desta fala

o testemunho maior

cobro

às varas que contam o futuro

os olhos embaciados

que se passeiam nas livrarias. 

 

Desejo o estatuto decaído

os telhados contrabandeados

as bocas teatrais e desemudecidas

um espartano anoitecer

na margem da loucura. 

 

Apago as luzes do dia

as cortinas baças abatem-se no equinócio

e sinto o aroma da Primavera

o corpo que nu se entrega

aos dedos que exaltam fantasias

o sentado sentir por dentro do sangue

enquanto as respostas se encomendam

ao próximo apeadeiro 

sem nome.

#3090

Um salto em altura 

até chegar

ao sonho cristalizado.

13.3.24

Deu-la-deu

Ana-ina-não

Tão-tão

Parlatão

Charlatão não

Um-dó-li-tá

Escabeche

Taran-tan-tan

Chelique

Ora bora

Borra 

Pim-pam-pum

Pin

Plin

Atchim

Cof cof

Psiu

Chiu

Ufa

Ala

Trim trim

Splash

Vruuuum

Miau.

Injustiças indocumentadas (311)

Um contratempo é uma dádiva

pois investe contra o tempo

não o deixa envelhecer.

#3089

Descubra-se o amanhã

mal se transforme em hoje

mas não se antecipem oráculos

não queiram

apanhar o futuro pelos colarinhos.

12.3.24

Floresta (a prazo)

Estendemos os dedos

acreditamos

que por eles as bocas tocam na lua. 

Não trocamos a luz clara do dia

pela noite postiça

dedilhamos os postais arrematados

de cidades forasteiras

onde vendemos diademas

e das ruas trouxemos as melodias dos idiomas. 

Deixamos tempestades por conta do ontem

brindámos aos dias consecutivos

não quisemos a abundância estéril

ou a indigência de palcos fátuos:

somos inventores do encanto

à medida que revelamos os negativos do dia

e juramos

na furtiva despedida do entardecer

não sermos dádivas da indigência

ou astrolábios das florestas desencantadas.

#3088

Movia-se a planetas

o ânimo à altura

das estrelas.

11.3.24

O véu da ignorância

Tu não sabes 

que as miragens escondem a carne submersa

os carris rombos que desassossegam os párias

que é pelas praias ermas

que se juntam os denunciantes do ouro

a matéria vaga em que amanhecem os olhos. 

Tu não sabes

que as vésperas albergam a gramática impopular

que os destinos se confundem com o dia abastado

e as sombras medram em folhas roubadas. 

Tu não sabes

que há idiomas sem verbo

e outros que recusam bandeiras

ou que se levantam poetas de uma casta rara

que escolhem estrofes singulares

e falam com a usura de figuras de estilo

devolvendo ao leitor 

a liberdade que antes não havia. 

Tu não sabes

dos punhos caiados pelo luar expoente

das marés caídas sobre os rochedos gratuitos

das costas das ondas 

que guardam segredos dos marinheiros

e dos mares que empenham os segredos

dos demais. 

Tu não sabes

e não queres saber

que há lugar na geografia do tempo

para não saber destes saberes.

Injustiças indocumentadas (310)

Não há

ideias feitas

só há

ideias por fazer.

Injustiças indocumentadas (309)

Não há nada tão gratuito

como o relógio da igreja

que dá as horas.

#3087

Os braços

rasavam o sol a eito

no alpendre ermo.