O embaixador
roeu a corda
mostrando
que para chegar a rato
não é preciso ser rato.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Os apóstolos do ambiente
calados
estranhamente calados
não acusam a cocaína
que polui as águas do Porto.
A alma vestida a rigor
dança só quando chove
abraçada ao vento iracundo
remexendo entre as nuvens gastas
prometendo o anoitecer em forma de verso.
A alma
vestida a rigor
não desmente o estremecimento
quando o rio combina com o luar
e um prateado braço de água escorrega
até à foz
onde se confirmam os pesadelos arrematados.
A alma
vestida
a rigor
no exato testamento
das flores colhidas
dos entes a caminho de queridos
da frugalidade
que ensina a ver depois do espelho baço
adormecendo com o murmúrio do entardecer
adormecendo
abraçando aos sonhos exilados
na exaltação que se cola à pele desadormecida.
Porque
a alma
está
vestida
a rigor.
O poema
é as nossas mãos
que se fundem
na véspera da loucura.
O poema
é o silêncio que colonizou
estrofes.
O poema
é a rua inaugurada
no despontar da cidade.
O poema
é a manhã que levita
sobre os sonhos limítrofes.
O poema
é um verso singular
tatuado no coração amplo.
O poema
é o piano que ensinamos
a quatro mãos.
O poema
é a escultura
em que nos tornamos
o marco geodésico adivinhado
o cais terminal sem gramática por baixo
a entardecida jarra onde nadam
as flores robustas.
O poema
é matéria-prima
constante
um sinal sem trânsito
dieta que não pede regras
o poema armilar
a esbracejar a alma combustível
no parapeito do amanhã.
O poema
não precisa de poeta
só precisa
dos nossos olhares impuros
alfaiates da métrica em desuso
pátria maternal das manhãs ateadas
no incenso sussurrado
pelas nossas bocas.
O poema
não precisa
de poetas
se nós lhe demos
corpo.
Disse:
a liberdade tem de ser regada.
Não disse
a liberdade tem de ser regrada.
As palavras
tinham a cor da mentira
o desporto nacional favorito
a seguir
à fraude com dinheiro dos outros.
A janela efémera
olha por dentro das veias
cicatriza a carne aberta
pelo tempo estouvado.
As linhas cosidas sobre a pele
arrefecem o ardor
os novelos do ocaso dão-se à combustão
e os sentidos hibernam
entre as estrelas avulsas.
Olho pelas fogueiras que hasteiam refúgios
é esta atalaia que redijo em forma de lei
mesmo que seja baldio o pensamento
e em vez de cortinas veja o luar caiado.
Corro pelos miradouros
corro como se não precisasse do sono
a maré alta de meu peito desdoído
a fala que se intromete no silêncio.
Por este andar
num destes dias vindouros
os elegíveis serão ilegíveis.
Mergulhados na tômbola
ficamos à espera
que ora se ria connosco
ora se ria de sermos seu infortúnio.
Peguei nas miragens todas
respirei dentro da escotilha
soube dizer as sílabas da ousadia
e na véspera do medo
arrastei a coragem em nome dos pés
até que de um fôlego só
atirei as nuvens para cima do horizonte
e pude ser do sol a alma gémea.
De cada vez
que se acanha o luar
é tirada a prova dos nove
à redenção que se fabrica
num lampejo.
Retificação de motores
era a placa à porta da oficina
e lá dentro
pude espreitar
carcaças desnudarás
cilindros e correias
quase todas untadas em óleo negro e gasto
blocos de motor esventrados
uns em cima de estrados
outros, os pobres, jazendo pelo chão
desenfeitando o chão
e não percebi
os motores que estavam para cirurgia
e os outros
à espera de autópsia
depois de por eles terem assinado
testamento vital
e a trasfega de peças úteis acontecer
para motores outros então ainda mutilados.
E fiquei sem perceber
se os olhos tinham passado
por uma oficina chamada retificação de motores
ou se era uma metáfora em maiúsculas
um sonho remediado.
As bestas
não precisam
de ser quadradas.
(Se forem
elevadas ao quadrado
é caso para pensar)
Tiro desta fala
o testemunho maior
cobro
às varas que contam o futuro
os olhos embaciados
que se passeiam nas livrarias.
Desejo o estatuto decaído
os telhados contrabandeados
as bocas teatrais e desemudecidas
um espartano anoitecer
na margem da loucura.
Apago as luzes do dia
as cortinas baças abatem-se no equinócio
e sinto o aroma da Primavera
o corpo que nu se entrega
aos dedos que exaltam fantasias
o sentado sentir por dentro do sangue
enquanto as respostas se encomendam
ao próximo apeadeiro
sem nome.
Ana-ina-não
Tão-tão
Parlatão
Charlatão não
Um-dó-li-tá
Escabeche
Taran-tan-tan
Chelique
Ora bora
Borra
Pim-pam-pum
Pin
Plin
Atchim
Cof cof
Psiu
Chiu
Ufa
Ala
Trim trim
Splash
Vruuuum
Miau.
Um contratempo é uma dádiva
pois investe contra o tempo
não o deixa envelhecer.
Descubra-se o amanhã
mal se transforme em hoje
mas não se antecipem oráculos
não queiram
apanhar o futuro pelos colarinhos.
Estendemos os dedos
acreditamos
que por eles as bocas tocam na lua.
Não trocamos a luz clara do dia
pela noite postiça
dedilhamos os postais arrematados
de cidades forasteiras
onde vendemos diademas
e das ruas trouxemos as melodias dos idiomas.
Deixamos tempestades por conta do ontem
brindámos aos dias consecutivos
não quisemos a abundância estéril
ou a indigência de palcos fátuos:
somos inventores do encanto
à medida que revelamos os negativos do dia
e juramos
na furtiva despedida do entardecer
não sermos dádivas da indigência
ou astrolábios das florestas desencantadas.
Tu não sabes
que as miragens escondem a carne submersa
os carris rombos que desassossegam os párias
que é pelas praias ermas
que se juntam os denunciantes do ouro
a matéria vaga em que amanhecem os olhos.
Tu não sabes
que as vésperas albergam a gramática impopular
que os destinos se confundem com o dia abastado
e as sombras medram em folhas roubadas.
Tu não sabes
que há idiomas sem verbo
e outros que recusam bandeiras
ou que se levantam poetas de uma casta rara
que escolhem estrofes singulares
e falam com a usura de figuras de estilo
devolvendo ao leitor
a liberdade que antes não havia.
Tu não sabes
dos punhos caiados pelo luar expoente
das marés caídas sobre os rochedos gratuitos
das costas das ondas
que guardam segredos dos marinheiros
e dos mares que empenham os segredos
dos demais.
Tu não sabes
e não queres saber
que há lugar na geografia do tempo
para não saber destes saberes.