8.7.24

Involuntário

Corta o mato:

os muros ladeados por urze

combinam os espinhos que ferem a boca:

não se costuram os dedos no céu da boca

o modo do medo amoeda-se no murcho dia

e as espadas são arrumadas na página pretérita.

 

Cortas o mato:

e depois de cotiado

o chão pedregoso à mostra

chora por um tapete

protesta contra a nudez.

 

Assim é com as coisas involuntárias 

– ou melhor dizendo: 

as coisas impostas à vontade;

 

a elas 

não aderem os modos fáceis

nem se espere que sejam tribunas

de altares sumptuosos e seguimento numeroso.

 

Se deixasses estar o mato 

não desautorizavas a natureza.

#3207

Em pequeno 

queria ser pirata 

mas foi antes de descobrir 

que enjoa em mar alto.

7.7.24

#3206

Sobreviver 

está três quilómetros acima 

de simples viver.

6.7.24

#3205

Se não fosse unicórnio 

talvez tivesse sido 

guarda florestal.

Injustiças indocumentadas (385)

Ai

Portugal

(Portugal)

põe os corninhos 

ao sal.

5.7.24

Injustiças indocumentadas (384)

São senhores, 

ó Rosas, 

senhores. 

#3204

O decadente 

é (sempre)

o último 

a saber.

4.7.24

Destroços

O tímido veio avança pelos carris

rateia as intenções por ordem de chegada

e devolve ao mundo o magma sobrante

despojado que foi pela maré limítrofe.

 

Não se distinguem os bravos dos demais.

 

Não há de ter importância:

a lava que vem em bicos dos pés

estende-se vagarosamente

como lençol freático 

arrancando toda a vida à passagem

sem tempo de funerais. 

 

Se é pela ordem de chegada

ninguém cumpre a pontualidade 

 

(enfim justificada).

Injustiças indocumentadas (383)

Acusou a responsabilidade.

Mas a responsabilidade 

não tinha culpa.

#3203

Uma silhueta de fogo

dança na boca pendida

uma herança, 

seguida de mar.

3.7.24

Corrige-me se estiver certo

Corrige-me se estiver certo:

os gelados também se comem no Inverno

como os verbos admitem 

um passado pela frente

e árvores há 

que teimam numa folhagem frondosa

ainda que o calendário traduza o Outono. 

Corrige-me se estiver certo

que posso nem estar

certo de precisar de um corretivo. 

E se achares que estou errado

deixa estar

que deve ser quando mais perto estou

de estar correto. 

#3202

Incrédulo,

agitava o leque

podia ser

que esconjurasse o Verão

com essa demão.

2.7.24

Desentulho

Desfaz 

o espelho embaciado 

com a doce voz dos teus dedos. 

Fabrica 

o sol ancião

enquanto o dia terça 

um lampejo de luz. 

Embebe 

no nome da manhã 

a força bruta da lava arrancada 

ao espírito dos deuses. 

Anota 

em papel requintado

o paradeiro da vontade 

e mente 

(se preciso for)

aos tribunos que se apessoam 

na frivolidade limítrofe. 

Traz ao areal 

a espuma hasteada pela maré 

e amansa a angústia acastelada 

na trovoada amordaçada. 

Ferve 

com os dentes em ebulição 

as ofensas em banho-maria 

e devolve as suas matriarcas 

à casa da partida. 

E prepara 

a bebida na véspera do anoitecer 

para fingir os pesadelos amarelecidos.

#3201

Tudo era estaleiro

provisório e inacabado

domínio da obra nunca feita.

1.7.24

Injustiças indocumentadas (382)

Estar mortinho por 

é como andar 

em tronco nu 

no Inverno.

#3200

A chuva 

que não dorme

e adia este Inverno

que inferniza.

30.6.24

#3199

Encontro marcado com o marasmo: 

o destino em forma de abreviatura.

#3198

Há 

na ausência de um ponto final 

o entusiasmo galopante 

do infinito.

29.6.24

#3197

Há mudança 

(plural); 

à mudança 

(singular).

28.6.24

Afurada, S. João

 

Não me deito na luz desmaiada. Tenho dentro de mim o crepúsculo que se dá a verter na falésia sem nome. O avesso da claridade avulsa no relógio perdido, uma jura de memória cumprida. Um estuário intemporal.

Loja

Corpos em lágrimas

navegam nos dias sem sombra

conspiram contra as conspirações

em dialetos escondidos dos dicionários.

 

Abraçam as árvores crepusculares

poemas que ficaram por escrever

usam a didascália para adivinhar o sol

na métrica rebelde que fica por cuidar.

 

Lágrimas de corpos

desenham mapas na custódia do sol

convertem as convergências em dissidência

em idiomas à mostra nas mãos abertas.

#3196

De lés a lés 

a vergonha ao léu. 

27.6.24

Medalha de comportamento assim-assim

Um curso de mercurocromo

pois da velha radiação

sobram os esqueletos gastos

e das dores não somos reféns 

– e a carne não precisa 

de negras nódoas.

 

Um qualquer estoico

bebendo na fonte original helénica

compensaria

a amalucada insensibilidade ao sofrimento

com um vinho de tasca

um comprimido lisérgico

e um lampejo de ópio para arrefecer a febre.

 

Mas isso somos nós

ausentes da medicina

verdes em substâncias

 

(ou seja: a-substanciados).

#3195

Sem o dolo da farsa 

sobe a palco a maresia 

dos mecenas sem nome.

26.6.24

Trovoada de Verão

Eram todas estas contradições

a trovejarem 

sobre todos os ontem de que és feito:

um pião a rodar ao acaso

a ementa por gastar

ao longe um uivar de cães sem sono

as artes talvez de pesca deixadas para trás 

um diplomata perdido na conspiração da tarde

e tu, 

tão melancolicamente jovem,

convencido do passado

empenhado

até à medula mais funda das pobres moedas. 

Não encontravas 

o mel que dizias rimar com as palavras

mas só as que tinham a tutela da tua boca;

em vão

sobre o vau em que giravam os rostos avivados

uma serenata sem musa ocupava o som,

deletéria,

arrematando os nós da alma 

contra as tempestades

no atroz medo que não te pedia licença 

à mostra do vento

em incontáveis esgares que disfarçavam 

o rosto. 

 

Ouvias dizer que o luar tudo curava. 

 

E falavas com a lua

noites a eito

sem perceberes 

que não eras curador de um diálogo. 

De cada vez 

que o teu peito esbarrava no lodo do cais

subias as muralhas

outrora inacessíveis

só para dizeres

com a voz inteira com que foste criado

que podiam tirar a argamassa do medo

coar o colostro dos demónios

para te declares dono do estuário todo. 

 

E ainda que desmentissem 

a posse desse império

não te importavas:

esse foi um usufruto apenas declarado

nas tuas interiores áleas 

feitas de sangue dourado.

#3194

Dos bastidores 

ecoa a opacidade 

e os vultos transgridem 

a transparência. 

25.6.24

Se fosse radialista nunca passava Ana Lua Caiano

Se fosse radialista

nunca passava Ana Lua Caiano. 

 

Se fosse turista

nunca seguia os roteiros. 

 

Se fosse otimista

não apertava a mão ao Costa. 

 

Se fosse tribal

mandava o Ventura à merda. 

 

Se fosse consensual

desmentia os gurus das almas. 

 

Se fosse transparente

não tomava hóstias ecuménicas. 

 

Se fosse teimoso

aconselhava atores canastrões

a serem apenas canastrões. 

 

Se fosse mecenas

subsidiava o silêncio sabático

de uns quantos soi-disant artistas. 

 

Se quisesse reconhecimento

vendia a alma a mercadores de almas. 

 

Se fosse erudito

calava a angústia. 

 

Se fosse criança

era só para poder dizer

quando for grande quero ser. 

 

Se fosse adulto

era para voltar à infância. 

 

Se fosse resistente

só me importava com o porvir. 

 

Se fosse engenheiro

tocava piano. 

 

Se fosse elegante

não enchia a boca de tolos. 

 

Se tivesse frio

não vivia aqui. 

 

Se fosse preguiçoso

não tinha vergonha dos adiamentos. 

 

Se fosse míope

era refém das ideias cristalizadas. 

 

Se sofresse de medo

precisava de meia-dúzia de gatos. 

 

Se não fosse por nada

tinha a mania de muito. 

 

Se não fosse pela cristaleira

era o elegante elefante 

mesmo no meio da sala.

Injustiças indocumentadas (381)

Alegre mente

alegremente

alegre ente.

#3193

Como uma avalanche

avassaladora

a devassa em forma de ritual.

24.6.24

Considerações finais

Queria ser corsário

servir às árvores as lágrimas

sentar no miradouro o vinco da noite

e segredar

só ao teu ouvido

o paradeiro das quimeras sem noite. 

 

Queria

que de mim soubesses o amor

em estrofes imunes a regras

até deitarmos ao luar vigilante

as candeias que acedemos com as bocas

nós

periscópios de nada

mecenas em nossa posse

imperadores.