12.7.24

Blandícia

Forjado a ferro 

no anátema dos insubmissos

um nome ganha nome,

desamarradas as algemas. 

Nos despojos onde não há santos

as palavras cruas tatuadas na carne

bem fundo 

onde a carne se junta aos ossos.

Depois de consagrada

embebe-se no vinho floral

propositadamente aberto para a solenidade. 

As elegias temperam páginas de xisto

vingam nas bandeiras arrematadas ao cais

sem crime preponderante

sem que haja quem reivindique 

a sua perda. 

Não podíamos 

ornamentar as flores avulsas

diziam:

é uma litania

um gesto do permitido aos deuses

e não somos deuses

não somos premeditados. 

 

Fossem outros 

os tempos e o modo

e seríamos derrotados pelo sobressalto

de não conseguirmos ser deuses. 

 

Agora

o mel ferve na boca 

que cresce no perímetro das palavras

costuramos os bolsos puídos 

porque há amanhã

soltamos as feras domesticadas no adro

onde subimos a palco 

sem o pudor de outrora

entoamos poemas. 

Agora

não somos vítimas da nostalgia

não obedecemos se não às desregras

aos murmúrios que emprestam musgo à noite

e pelas mãos perenes

deixamos paredes untadas 

com as lágrimas de outrora,

 

que agora perdemos o pudor

e sabemos que as lágrimas 

também embelezam epitáfios. 

 

Digo

para que possam ouvir

que não sou presa do medo

e que dele me apoderei

para o desfazer em mil pequenos seixos

anónimos e indiferentes. 

 

Povoo o dia com centelhas 

com a ajuda da maré

e baixo a cota das árvores

para a elas subirmos

só para sabermos como o nosso domínio

não nos é submisso. 

#3211

As ruas não fogem do dia

no idioma da madrugada itinerante.

11.7.24

Lisnave e hélices

Quando era pequeno 

fiz uma visita de estudo 

aos estaleiros da Lisnave 

e um engenheiro, 

em jeito pedagógico,

disse aos curiosos e aos não curiosos

que hélice é uma palavra masculina. 

Anos mais tarde, 

depois de ter ensinado alguma gente 

que se dizia 

o hélice, 

espreitei no dicionário: 

hélice 

é uma palavra feminina. 

Já não fui a tempo 

de corrigir o erro: 

não consegui inventariar 

as pessoas que burlei. 

Amorteci o desencanto interior: 

a culpa 

foi do engenheiro 

e minha, 

que confiei na diligência do engenheiro. 

Nunca mais confiei em engenheiros 

(como a História política 

tratou de demonstrar).

#3210

A corda dança 

acossada pelo vento 

e os pés que a percorrem 

estipulam a vertigem.

Injustiças indocumentadas (391)

Não há direito.

Se também

não houver

esquerdo.

10.7.24

Injustiças indocumentadas (390)

Cair no goto 

é melhor 

do que cair no esgoto.

Sobre as coisas mundanas

Começo por uma metáfora;

um estaleiro

a imagem periférica da desarrumação

e todavia os operários aninham-se

num cais organizado

entre o cais em escombros

e a maré que beija os destroços

a lamber as feridas deixadas em legado. 

O fósforo acende os acrónimos do dia

desmata 

as estrofes coibidas por mastins esfomeados 

mastins que arrumam as bainhas da ordem

para o anátema da remissão. 

Não

não peçam a cor do perdão

a espuma demorada 

que amarra no canto da boca

não arranjem desculpas

nem arrematem os mais generosos de todos:

os olhos répteis mergulham na floresta

esconjuram os cruéis mandantes da dissidia

terçando o florete contra os indefesos

arrumando nas mãos as vitórias fáceis 

– as vitórias por falta de comparência. 

No banquete dos indigentes

o que falta é modéstia

um verbete de temporalidade

e um pouco de voz apessoada:

fazem-se passar por mártires

dando-se à coreografia surda 

que se prende à maresia:

o ocasional bocejo sublinha 

a continência imperatriz

e as palmas troam em surdina

como metáteses do aplauso:

não lhes falem em medo

os ouvidos fingem o esquecimento

e o futuro apalavra o fingimento do tempo

exatamente como se uma divindade

tivesse ordenado a suspensão dos relógios. 

Que sejam ateadas as estrofes mundanas

os profetas em barda 

ficando nas filas terceiras

os eruditos sem microfone já de garganta puída

e todo o clero pavoneando as fátuas fatiotas

numa procissão de falhados. 

 

Se não fossem as vozes guturais

o silêncio era a marca registada. 

 

Vozes improfícuas

adoçando as folhas do calendário

assim como um pai adoça o rosto da filha

avançam destemidas contra o mar cavado 

e prometem:

um dia destes

 

(é sempre um destes, inseguros, dias)

 

voltaremos a ser a grandeza que esquecemos. 

E ninguém 

percutiu os lábios amansados

só para perguntar 

o que importa 

a grandeza.

Injustiças indocumentadas (389)

O pagamento pontual 

não é um pagamento pontual.

#3209

Instaurámos hunos 

na corda ideal 

de auroras boreais 

insondáveis. 

9.7.24

Colonização

As paredes tinham o musgo inglês. 

Aquele lugar era trespassado pela humidade. 

Os ossos desdoíam quando contemplavam 

a colonização dos degraus pelo musgo, 

como formava socalcos improvisados.

 

Há colonizações apreciáveis.

Injustiças indocumentadas (388)

Ao cuidado de todas as cidades 

que se chamam vilas: 

por que não deixaram de ser chamar vilas

quando foram promovidas de patente?

Injustiças indocumentadas (387)

Ó que estrada, 

orquestrada.

Injustiças indocumentadas (386)

A boia de salvação, 

não o boi de salvação.

#3208

Diz onomatopeias, 

para ver se entendo, 

em vez de palavras 

gongóricas.

8.7.24

Involuntário

Corta o mato:

os muros ladeados por urze

combinam os espinhos que ferem a boca:

não se costuram os dedos no céu da boca

o modo do medo amoeda-se no murcho dia

e as espadas são arrumadas na página pretérita.

 

Cortas o mato:

e depois de cotiado

o chão pedregoso à mostra

chora por um tapete

protesta contra a nudez.

 

Assim é com as coisas involuntárias 

– ou melhor dizendo: 

as coisas impostas à vontade;

 

a elas 

não aderem os modos fáceis

nem se espere que sejam tribunas

de altares sumptuosos e seguimento numeroso.

 

Se deixasses estar o mato 

não desautorizavas a natureza.

#3207

Em pequeno 

queria ser pirata 

mas foi antes de descobrir 

que enjoa em mar alto.

7.7.24

#3206

Sobreviver 

está três quilómetros acima 

de simples viver.

6.7.24

#3205

Se não fosse unicórnio 

talvez tivesse sido 

guarda florestal.

Injustiças indocumentadas (385)

Ai

Portugal

(Portugal)

põe os corninhos 

ao sal.

5.7.24

Injustiças indocumentadas (384)

São senhores, 

ó Rosas, 

senhores. 

#3204

O decadente 

é (sempre)

o último 

a saber.

4.7.24

Destroços

O tímido veio avança pelos carris

rateia as intenções por ordem de chegada

e devolve ao mundo o magma sobrante

despojado que foi pela maré limítrofe.

 

Não se distinguem os bravos dos demais.

 

Não há de ter importância:

a lava que vem em bicos dos pés

estende-se vagarosamente

como lençol freático 

arrancando toda a vida à passagem

sem tempo de funerais. 

 

Se é pela ordem de chegada

ninguém cumpre a pontualidade 

 

(enfim justificada).

Injustiças indocumentadas (383)

Acusou a responsabilidade.

Mas a responsabilidade 

não tinha culpa.

#3203

Uma silhueta de fogo

dança na boca pendida

uma herança, 

seguida de mar.

3.7.24

Corrige-me se estiver certo

Corrige-me se estiver certo:

os gelados também se comem no Inverno

como os verbos admitem 

um passado pela frente

e árvores há 

que teimam numa folhagem frondosa

ainda que o calendário traduza o Outono. 

Corrige-me se estiver certo

que posso nem estar

certo de precisar de um corretivo. 

E se achares que estou errado

deixa estar

que deve ser quando mais perto estou

de estar correto. 

#3202

Incrédulo,

agitava o leque

podia ser

que esconjurasse o Verão

com essa demão.

2.7.24

Desentulho

Desfaz 

o espelho embaciado 

com a doce voz dos teus dedos. 

Fabrica 

o sol ancião

enquanto o dia terça 

um lampejo de luz. 

Embebe 

no nome da manhã 

a força bruta da lava arrancada 

ao espírito dos deuses. 

Anota 

em papel requintado

o paradeiro da vontade 

e mente 

(se preciso for)

aos tribunos que se apessoam 

na frivolidade limítrofe. 

Traz ao areal 

a espuma hasteada pela maré 

e amansa a angústia acastelada 

na trovoada amordaçada. 

Ferve 

com os dentes em ebulição 

as ofensas em banho-maria 

e devolve as suas matriarcas 

à casa da partida. 

E prepara 

a bebida na véspera do anoitecer 

para fingir os pesadelos amarelecidos.

#3201

Tudo era estaleiro

provisório e inacabado

domínio da obra nunca feita.

1.7.24

Injustiças indocumentadas (382)

Estar mortinho por 

é como andar 

em tronco nu 

no Inverno.

#3200

A chuva 

que não dorme

e adia este Inverno

que inferniza.