Opíparas
devem ser as botas
para haver quem as lamba aos pares.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Uma coleção de monos
que tanto cheiram a naftalina
e nem assim
previnem o caruncho.
[Instruções para uma vista de pássaro sobre as instituições à sua volta]
Os cães
estão sempre de atalaia
ladram repetidamente
estilhaçando o silêncio da noite.
Dizem
que não mordem
se calhar
porque de tanto ladrarem
ficam doídos os maxilares
e anestesiados os dentes,
ou então é só para provar
que o muito ladrar não quadra
com as mandíbulas certeiras
que despedaçam carne exposta
de gente alheia
que ao perímetro dos cães vier.
Ou então
é só para confirmar
que os cães se inspiram nos homens
e as gongóricas vozes de protesto
depressa são amansadas
com a acepipe certo.
Sem remorsos por contar
os dias fazem-se feridas abertas
e o tempo mastiga o sangue à mostra
como mosto de um ódio fermentado.
Forjado a ferro
no anátema dos insubmissos
um nome ganha nome,
desamarradas as algemas.
Nos despojos onde não há santos
as palavras cruas tatuadas na carne
bem fundo
onde a carne se junta aos ossos.
Depois de consagrada
embebe-se no vinho floral
propositadamente aberto para a solenidade.
As elegias temperam páginas de xisto
vingam nas bandeiras arrematadas ao cais
sem crime preponderante
sem que haja quem reivindique
a sua perda.
Não podíamos
ornamentar as flores avulsas
diziam:
é uma litania
um gesto do permitido aos deuses
e não somos deuses
não somos premeditados.
Fossem outros
os tempos e o modo
e seríamos derrotados pelo sobressalto
de não conseguirmos ser deuses.
Agora
o mel ferve na boca
que cresce no perímetro das palavras
costuramos os bolsos puídos
porque há amanhã
soltamos as feras domesticadas no adro
onde subimos a palco
e
sem o pudor de outrora
entoamos poemas.
Agora
não somos vítimas da nostalgia
não obedecemos se não às desregras
aos murmúrios que emprestam musgo à noite
e pelas mãos perenes
deixamos paredes untadas
com as lágrimas de outrora,
que agora perdemos o pudor
e sabemos que as lágrimas
também embelezam epitáfios.
Digo
para que possam ouvir
que não sou presa do medo
e que dele me apoderei
para o desfazer em mil pequenos seixos
anónimos e indiferentes.
Povoo o dia com centelhas
com a ajuda da maré
e baixo a cota das árvores
para a elas subirmos
só para sabermos como o nosso domínio
não nos é submisso.
Quando era pequeno
fiz uma visita de estudo
aos estaleiros da Lisnave
e um engenheiro,
em jeito pedagógico,
disse aos curiosos e aos não curiosos
que hélice é uma palavra masculina.
Anos mais tarde,
depois de ter ensinado alguma gente
que se dizia
o hélice,
espreitei no dicionário:
hélice
é uma palavra feminina.
Já não fui a tempo
de corrigir o erro:
não consegui inventariar
as pessoas que burlei.
Amorteci o desencanto interior:
a culpa
foi do engenheiro
e minha,
que confiei na diligência do engenheiro.
Nunca mais confiei em engenheiros
(como a História política
tratou de demonstrar).
Começo por uma metáfora;
um estaleiro
a imagem periférica da desarrumação
e todavia os operários aninham-se
num cais organizado
entre o cais em escombros
e a maré que beija os destroços
a lamber as feridas deixadas em legado.
O fósforo acende os acrónimos do dia
desmata
as estrofes coibidas por mastins esfomeados
mastins que arrumam as bainhas da ordem
para o anátema da remissão.
Não
não peçam a cor do perdão
a espuma demorada
que amarra no canto da boca
não arranjem desculpas
nem arrematem os mais generosos de todos:
os olhos répteis mergulham na floresta
esconjuram os cruéis mandantes da dissidia
terçando o florete contra os indefesos
arrumando nas mãos as vitórias fáceis
– as vitórias por falta de comparência.
No banquete dos indigentes
o que falta é modéstia
um verbete de temporalidade
e um pouco de voz apessoada:
fazem-se passar por mártires
dando-se à coreografia surda
que se prende à maresia:
o ocasional bocejo sublinha
a continência imperatriz
e as palmas troam em surdina
como metáteses do aplauso:
não lhes falem em medo
os ouvidos fingem o esquecimento
e o futuro apalavra o fingimento do tempo
exatamente como se uma divindade
tivesse ordenado a suspensão dos relógios.
Que sejam ateadas as estrofes mundanas
os profetas em barda
ficando nas filas terceiras
os eruditos sem microfone já de garganta puída
e todo o clero pavoneando as fátuas fatiotas
numa procissão de falhados.
Se não fossem as vozes guturais
o silêncio era a marca registada.
Vozes improfícuas
adoçando as folhas do calendário
assim como um pai adoça o rosto da filha
avançam destemidas contra o mar cavado
e prometem:
um dia destes
(é sempre um destes, inseguros, dias)
voltaremos a ser a grandeza que esquecemos.
E ninguém
percutiu os lábios amansados
só para perguntar
o que importa
a grandeza.
As paredes tinham o musgo inglês.
Aquele lugar era trespassado pela humidade.
Os ossos desdoíam quando contemplavam
a colonização dos degraus pelo musgo,
como formava socalcos improvisados.
Há colonizações apreciáveis.
Ao cuidado de todas as cidades
que se chamam vilas:
por que não deixaram de ser chamar vilas
quando foram promovidas de patente?
Corta o mato:
os muros ladeados por urze
combinam os espinhos que ferem a boca:
não se costuram os dedos no céu da boca
o modo do medo amoeda-se no murcho dia
e as espadas são arrumadas na página pretérita.
Cortas o mato:
e depois de cotiado
o chão pedregoso à mostra
chora por um tapete
protesta contra a nudez.
Assim é com as coisas involuntárias
– ou melhor dizendo:
as coisas impostas à vontade;
a elas
não aderem os modos fáceis
nem se espere que sejam tribunas
de altares sumptuosos e seguimento numeroso.
Se deixasses estar o mato
não desautorizavas a natureza.