11.12.24

Injustiças indocumentadas (469)

Se o bom entendedor 

fica sempre sem saber 

metade das palavras 

não passa de meio entendedor. 

Injustiças indocumentadas (468)

Ter o coração na boca

(deve dar) 

muito mau gosto. 

#3347

Poder acender a noite 

as mãos devolvidas ao rosto dormente

e um sonho

amanhecendo a destempo.

10.12.24

Flor de lótus

Bebo

pela flor de lótus

o beijo caritativo

que adia o ocaso da pele.

 

Pelos meus cálculos

ainda é setembro

mesmo que dezembre 

no calendário que tatua a parede.

 

O que bebo da flor de lótus

não sei dizer.

 

Não importa saber:

a pele adia a decadência

e tenho o dia inteiro para arrancar 

uma folha do calendário

só para mim.

#3346

O sabor delido 

contrafação ao alto 

no palco 

onde se afeiçoam as farsas.

9.12.24

Semibreve

Vejo

pelos olhos da aurora

o respirar do dia pródigo

um homónimo da luz quente

que se abraça ao corpo preparado.

#3345

Os braços que abraçam 

não são os mesmos 

que lutam.

8.12.24

Não confies nos tradutores

Ainda está por decifrar porque 

a tradução de motherfucker é

filho da puta 

se o primeiro copula 

e o segundo resulta da cópula.

#3344

Mente e mente 

a mente 

que passa rente.

7.12.24

#3343

De um vário metido no singular, 

o plural maior que reveste a pele.

6.12.24

Angariação

O arnês 

em vez da vertigem

 

o pecado

em vez da obediência

 

o luar

em vez da reverência

 

o beijo

em vez da indiferença

 

o gasto

em vez do monástico

 

a mentira

em vez da imensidão

 

a tolerância

em vez da modernidade

 

a percussão

em vez do tédio

 

a voz

em vez da prisão

 

a ponte

em vez da razão

 

a cura

em vez da ordem

 

o fogo

em vez do oculto

 

o silêncio

em vez das mãos

 

o azulejo

em vez das cores

 

a partida

em vez da audácia

 

o verbo

em vez da fantasia

 

o vulcão

em vez do estertor

 

a janela

em vez da flor

 

a cortesia

em vez da armadilha

 

uma vez

em vez das juras.

 

#3342

Um litro de cortesia por dia 

não faz mal nem arrepia.

5.12.24

Frágil

O fogo bebe-se 

na língua boreal do estuário.

Aviva a cal que avisa o tempo

e todas as dádivas indivisíveis

no penhor da fala arrematada.

Às vezes

o relógio tosse

e as ruas estremecem

tão frágeis

como frágeis são 

as crias deixadas sós

no ninho à mercê dos predadores.

Há de vir 

a voz cordata

a mão que pousa serena

um olhar que se oferece integral

e da lua retiro a moldura da noite

um lampejo de luz

atravessando todas as cordilheiras

como se fossem 

corpos frágeis.

Injustiças indocumentadas (467)

Fora de lei, 

faro de lei.

#3341

Às ondas encolerizadas

fica o mar a dever 

a genealogia.

4.12.24

Tempestade sem nome

Dizia

as tempestades medem 

a força da ira sem freio

os rostos plúmbeos 

sentados sobre as nuvens

alugando a chuva abastada 

que se precipita 

democraticamente. 

Dizia

não se encolhe o medo 

perante os disfarces

deitando em cima da gramática 

a sua contingência

desapalavrando os dicionários

até que as pessoas 

não saibam dar sentido

ao que ouvem

e deixem de saber 

como inteligíveis são 

as palavras que das suas bocas ecoam. 

As tempestades salivam

uma amostra de caos

a imagem organizada 

de um lugar de Babel.

Injustiças indocumentadas (466)

Com os fala-barato

não há inflação que valha.

Injustiças indocumentadas (465)

Mar da palha: 

a moldura 

para os frequentes fala-barato;

eufemismo dos gongóricos.

#3340

Dou-te o escudo 

para à penumbra te remeteres 

em refúgio do mundo tonitruante.

3.12.24

Longitude e latitude (fundação)

Não uses a volumetria da inércia

para sacerdotisar os desterrados

os que por voluntário bocejo

se retiraram das regalias da pertença

e ficaram à mercê 

dos mastins habituais. 

 

Não conspires

que ainda te apanham as meças 

como se houvesse uma Meca diferente

e os mais diligentes subissem com o arpão 

para desfazerem as tiranias 

que nunca adormecem. 

 

E todos 

depois de desarrumados por sonhos escanções

seriam páginas em branco

baldios sem ordem para arrematar

o pensamento deslumbrante

átomos de poesia à prova de coletâneas 

no insensato rumor que morde os ouvidos

e dispara a discordância.

 

Não são tuas 

as lágrimas perecidas no labirinto

e tuas não são as palavras magoadas

colhidas no úbere da solidão. 

 

No apeadeiro

combinas as formas nítidas da lua

com as estrofes sem métrica 

e sabes

que de ti não esperam feitos

pois tua 

é a arte da desfeita.

#3339

A lua nova

é o seu rosto interino, 

à espera de vaga.

2.12.24

Chamamento (Inverno)

O degelo que marca a ferro

a cortina derruída atrás do sol

e um punhado de gente

sóbria

caminha no fino fio do dia haurido.

 

São os profetas sem causa

sócios correspondentes de nada

um estatuto intumescido na fibra meã

contando por suas 

as efémeras raízes dos outros.

 

Lá fora

está tudo pronto para invernar.

 

Esperamos pelo pleito

os mantimentos reunidos

para o exílio no labirinto do destempo.

 

A paisagem

sob a tutela da penumbra

deita a noite larga sobre a testa impaciente.

 

Quando chegar o Verão

vamos sentir a falta 

do invernadeiro.

Injustiças indocumentadas (464)

Para chegar à tenra idade, 

Fecunda-se no choque térmico 

a que se sujeita o polvo 

em sua pré-cozedura.

#3338

O salvo conduto 

a diplomacia 

que dispensa palavras.

1.12.24

#3337

Somos 

a amálgama dos tempos 

chãos de diferente cepa

passageiros de almas furtivas

olhares habitados na fenda dos lugares.

30.11.24

#3336

A bandeira desbotada 

desmente o dia madrigal 

– as máscaras derruídas 

deixam rostos macilentos 

à mostra.

29.11.24

Amanhecer

À boca torno

sinto o dia sem avesso

a maresia que habita as veias

este sangue puro

poema sem paradeiro

que habilita o teu corpo transido.

#3335

Veto 

a redenção fingida 

sem a venda que veda 

o válido viver.

28.11.24

Manifesto a favor dos dias visíveis e da esquadria sem arestas

Não digas nada à escolástica

os segredos só contam

se não tiverem avesso

e de nós há de constar

nos manuais do passado

que fingimos heresias

só para termos direito

a indulgências. 

 

Não digas

mesmo nada

nada

às santas alistadas no halo do tempo

guardemos todas as mentiras

as que reservamos para as entrelinhas

e as outras

piedosas

que pouparam sobressaltos 

a exércitos de gente. 

 

Diremos

façam como os avestruzes

olhem para dentro de um poço

fundo

mesmo lá no fundo

onde as trevas escondem despojos. 

 

Dir-lhes-emos

sejam o avesso do que julgam ser

para assim chegarem

ao compassado, espontâneo eu,

lembrem-se da irresolvida pendência

de uma mentira contada à mentira

e de como os notáveis divergem

em tê-la como mentira ao quadrado

ou anulação da mentira primeva. 

 

Juntemos

as angústias que passam gratuitas 

de corpo em corpo

as maleitas sem cura 

que desenfeitam os cidadãos em grupo

a contrafação registada

a morosidade dos sonhos empenhados

as atribulações 

maquinadas pelos deuses sem túmulo

e não nos deixemos à mercê de acasos

não sejamos a porta de entrada 

de ventos contaminados

ou a persiana desbotada por entra 

o sol desmaiado. 

 

Dá última vez que demos conta

as horas vinham com atraso 

e deixamos de saber 

se os mapas eram adulterados

e nós

todavia

imunes à orfandade por falta de astrolábio

assim redimidos

no esconderijos a que demos a pele. 

#3334

São reversas

as histórias contadas 

talvez 

o ponto da situação 

sobre o princípio geral da mentira.