22.5.25

#4098

A absolvição das musas, 

por defeito de omissão.

21.5.25

Injustiças documentadas (537)

É preciso 

voltar à vaca fria 

antes que fique 

congelada.

Trezentos e sessenta e cinco dias depois

Fui às costas dos estilhaços 

sem angariar feridas tatuadas 

ou promessas de angústia.

 

Concebi

sob os auspícios do entardecer

o regaço onde se deita o luar.

 

E eu

do miradouro à espera de vez

tomei as rédeas das distinções

até o crepúsculo enfeitar o céu

e o dia ficar preso como véspera.

#4097

As vozes dançam 

corrompem o silêncio 

na madurez das mãos estendidas.

20.5.25

Pleno

Quisemos 

que uníssonas fossem as mãos 

e demos à gramática 

uma voz. 

Hoje sabemos

pela quimera de que somos mecenas

que uns olhos aprendem a ser 

pelos olhos outros. 

Assintomático

A batata não anda à procura de lógica

tal como devia ser dispensável 

corrigir a ortografia àqueles que escrevem

á

entre anda e procura. 

Pois são aqueles

(aqui sem acento)

que procuram assento entre os notáveis

e se notabilizam pela manha 

(sem til)

que disfarça outras fragilidades. 

Se fossem pela silhueta da manhã

saberiam que a lucidez 

não se entrega aos pedagogos da abastança

nem se demitem 

ao primeiro abanão mefistofélico. 

E se abanam

os lúgubres anciãos disfarçados de viço

quando se escondem 

na indumentária gongórica

e, apressados e palavrosos,

engolem mais de metade 

do que dizem.

#4096

Repensar códigos exaustos,

que a humildade não é canónica.

19.5.25

Latitude zero

Nascido ermo

um aríete por esquina

enquanto os cotovelos

sentados no trono dos astutos

afocinhavam no pão seco 

que estava mesmo a pedir

um fungo e não um fungicida

(por artes do cansaço

que o seco pão também se cansa

de esperar).

Assobiando em mofo menor

os boémios apreciavam a estultícia enraizada:

se ao menos não se ensinasse inteligência

ou as escolas teimassem em não ser povoadas

os estetas da indigência deixavam de ser 

perseguidos. 

São coisas menores

que os maestros da igualdade omitem

deixando pela metade 

as suas impecáveis empreitadas. 

Se fossem empreiteiros sem testas-de-ferro

se emprestassem as suas delirantes bocas

ao erário público

e depois fossem todos enfatuados

(visivelmente não cabendo dentro de si)

diriam que molharam a sopa dos apóstatas

só para saberem do sabor de saber 

dos prados erráticos. 

Porque 

até os mapas contêm erros

e nem assim há notícia

de mortes por gula de latitudes.

#4095

As bocas esfaimadas 

devoram os inocentes 

os reféns da bondade imprudente. 

18.5.25

Injustiças documentadas (536)

O custo marginal 

da marginalidade 

não é marginal.

#4094

Votar é desenterrar a cabeça da areia.

 

[Desavestruzar, ou o dia após o dia da reflexão – manual do eleitor em versão improvável]

17.5.25

#4093

Os nós 

que em nós se emaranham 

a odisseia amestrada 

num frágil ermo.

15.5.25

#4092

Não se adia 

o pretérito

refém da memória.

14.5.25

Averbamento

Sentinela 

no salitre do sono

arrumo os revés

no restolho enraizado

e lembro do lastro

que se lamina na lâmpada

sem o fundo 

que ferve em farto fardamento

fendendo os fundamentos.

Cobro 

o cobre acostumado

que cabe no cais 

e acalenta as cores caiadas.

#4091

A floresta mergulhada na bruma 

como se as árvores se dissolvessem 

na mudez.

13.5.25

Deus-dará

Deus

foi um problema 

meu. 

 

O erro

também. 

 

No açaime arreigado

reduzi as algemas

a pó. 

 

Logo fui

embaixador 

e deixei no bolor tardio

a convenção em órfão estado. 

 

Do resto do estatuto:

em diligente atalaia

reforcei a deserção 

sem medo nem força 

para juntar os erros 

em força motriz. 

 

Amanhã 

vou voltar a palco

e dizer 

com a alma por segredar

o meu problema

não foi deus. 

Injustiças documentadas (535)

O produto interno 

(não é) bruto.

#4090

[Quase haiku]

 

A usura 

não se encomenda 

de véspera.

12.5.25

Exilo(-me)

No fino engodo da justiça

onde se desembaraçam os teares enquistados

soluçam pesares contra loas sem destino

e à mesa dos rudimentares desejos

tomam lugar 

os figurantes apessoados a ouro. 

Desmanchados 

os prazeres restringidos

por enfurecidos tutores dos costumes

sobram as bocas sem freio

já não se escondem contumazes

encantadas 

com as figuras de estilo que dispensam máscara

numa tonitruante coreografia à prova de regras

exatamente 

como os comensais que se agigantam

num miradouro cercado pelos ventos 

que apenas sabem murmurar 

palavras outrora proscritas. 

Anos à frente

em frente da melancolia 

prosperam desenfreados ofensores de costumes

na antítese todavia simétrica

dos zeladores que mal disfarçam 

os constantes torniquetes que beijam

também

o ardor do proibido. 

Esta é a mesa proverbial

o espetáculo corrosivo dos opostos

síndicos de uma coisa e do seu contrário

abraçados na voracidade das restrições

dos verbos amputados por condições intermináveis

os abomináveis míopes que não se reconhecem

quando um espelho

propositadamente desembaciado

lhes conta por que linhagem se contam

à conta do sangue em que de enredam. 

#4089

Sangra 

em funda voz de protesto 

a tua dissidência maior.

11.5.25

#4088

Não apagues o dia 

com tinta-da-china:

o dia não abraça 

a tua vergonha.

10.5.25

#4087

O refúgio que o olhar procura 

para saber que não se purifica.

9.5.25

Nuvens de desenvolvimento vertical (ou o presságio da tempestade)

O rosto impassível

trava o silêncio na dobra da noite

sabe que o luar não é linguagem

nem os pesadelos são idioma.

 

Se houvesse vultos sem freio

e as sombras avinagrassem a pele

seríamos apenas parcas silhuetas

à mercê da primeira tempestade.

 

Mas não é disso que nos compomos:

 

singulares embaixadores da estética

povoamos palavras com metáforas

como se fosse preciso disfarçá-las

antes que sejam hipotecadas

pelos mastins que roubam os dias às pessoas.

#4086

Vamos juntos à medula do dia 

e o dia espera que por ele 

sejamos tutores das coisas maiores.

8.5.25

#4085

Junto ao estuário 

os braços admirados; 

a bondade começa 

nos lugares bucólicos.

7.5.25

Serviçal

Não é do descongelar das almas 

que precisamos;

é de subir ao promontório 

colher a maresia distante

e não fica sitiado pela indiferença

pelo regime estéril dos rostos sem nome

ou dos lugares demandados

como se estivéssemos em hibernação.

Precisamos

de poemas sem regras

sem temermos os juízos implacáveis

dos eruditos que a si chamam a chancela.

Precisamos disso mesmo 

um módico de manhã que se insinua

com a luz clara

um curativo para o olhar

tão embaciado depois dos contratempos

que acham nome no estatuto do mundo.

#4084

A pele porosa

procura um arnês 

tem medo 

que o dia seja um precipício.

6.5.25

Fracos e orações (e a História)

A rota dos fracos

os que fraquejam sem medo

e de si se dão à fúria do tempo

e das pessoas

matérias válidas 

no esplendor de bibliotecas ajardinadas

eles 

que não se emancipam da multidão

e levam os vultos em trelas distantes

enquanto a noite se assenhoreia dos baldios

e os transforma em vestimentas dignas

de príncipes. 

 

E dizem:

os outros estão gastos

e essa fraqueza ninguém convoca

como se os flocos de neve 

metamorfoseassem o chão sujo

tão célere a precisar do disfarce da neve

sobre si.

 

Os outros estão gastos:

ou então somos nós 

puídos da cabeça aos pés

em poses arrevesadas

ensebando a sela onde lugar têm

as palavras arrancadas a dicionários. 

Servem-se os chapéus

como gare para que o mundo,

se desabar com fragor,

caia ao lado deles. 

 

Talvez acreditem em acasos. 

 

Ou 

na boa fortuna dos lugares em decadência 

e sabemos então

que a decadência 

não contraria o despojamento.

Injustiças documentadas (534)

Vendo bem, 

(até) vendo bem.

#4083

A manhã grisalha 

demora-se 

no vazio do tempo.