23.6.25

#4128

O fado que destoa 

um pano negro que se hasteia 

o lamento murmurado.

22.6.25

#4127

Este 

é o licor das palavras 

que se embebem 

na estética da alma.

21.6.25

#4126

Os ossos coçados 

encostam-se num parapeito 

e protestam: 

tardia vai a vida para mudar.

20.6.25

Hospitalidade

Por cada lampejo de vaidade 

a inflação dos seres acompanhava 

os estouvados.

 

As mãos escorregavam no abismo

e as sílabas voavam mais depressa 

que a fala.

 

Antes que fosse noite

folheava as páginas da véspera

à procura de perguntas.

 

Por muito que suspeitasse

a reparação da pele

antecipava-se à mentira.

 

Este era um lugar hospitaleiro

um feixe de portas abertas

à prova de espantalhos.

 

Se as almas tivessem asas

eram de toda a parte

ao acaso.

#4125

As bandeiras agitadas 

sabem ao sangue corrompido 

dos modernos atávicos.

19.6.25

Injustiças documentadas (548)

Também existe uma ética 

para a roupa anterior.

#4124

As palavras desatadas 

são como vulcões noturnos 

nas bocas agitadas que matam 

o silêncio.

18.6.25

Escombros

Por vezes 

os escombros 

são como vinhos 

de colheita tardia.

Injustiças documentadas (547)

Até tirava o chapéu, 

fosse dar-se o caso 

de envergar o mesmo.

Injustiças documentadas (546)

Está tudo pela hora da morte.

E qual é a hora 

a que a morte se faz anunciar?

#4123

Suam 

as palavras apertadas 

pelo estio impiedoso

como se gotas fossem

as sílabas que as compõem.

17.6.25

Manual de instruções das rugas

As rugas 

desenham a assimetria do tempo. 

São como cicatrizes dos sismos havidos

fraturas dantes expostas

traduzidas para tatuagens salientes. 

As rugas 

não falam pelo tempo pretérito

só falam no presente cheio de melancolia;

ou então

no terrível desamparo do tempo urgente:

nem sequer há tempo 

para o olhar se deter no espelho

e cortejar as rugas que não escondem 

a antiguidade. 

As rugas 

emprestam um consolo subvencionado

admitem no portal do tempo

a sua usura com os corpos. 

Não é por conta de milagres

que são adiadas na nomenclatura 

da idade. 

São como catedrais:

credoras de estatuto

no cansaço do corpo compensado

pela lucidez montada na sela da quietude.

#4122

Em noite de somas

colhe os vestígios 

no estuário onde a lua 

se retrata.

16.6.25

Uma espécie de Torre Eiffel

Alvíssaras

das boas

daquelas com o baixo patrocínio

de uma alta patente

ilegível

com o beneplácito dos que usam cabeção 

– nunca se desprezem as cabeças à solta

e o erário privado

e as desengonçadas danças

de imprevidentes aprendentes. 

 

Que sejam roídas as unhas

mas sem ser de inveja:

antes 

um opúsculo impecavelmente encadernado

do que um vinho do Porto de olhos em bico

 

(se me é consentida

a expressão talvez levemente racista,

mas em todo o caso

protetora da DOP respetiva 

– costelas durienses noblesse oblige). 

 

Antes 

a chave perdida 

ou a fechadura por abrir

um druida ancião 

na posse de segredos de Estado

do outro putativo,

sósia do seu tutor em fala e raciocínio,

aspirante a nivelar por baixo

ou um mediador de seguros

desamado até por filisteus correligionários. 

 

Os que estiverem virados para esta moda

montem-se em tamancos:

muita será a água metida

sem submarinos por perto

um bibe para aparar a baba

ou uma cautela para amparar desditas.

 

Antes o simulacro

de uma Torre Eiffel

“tipo”.

#4121

De partida em partida 

o lenço hasteado 

a semente da saudade.

15.6.25

#4120

Um t comprido 

estiolado no entardecer 

com as sílabas encostadas

e o vinho fresco a calar a boca. 

13.6.25

#4119

A máquina recorta o tempo

com um tricotar relampejado 

que o fere de inveja.

12.6.25

Injustiças documentadas (545)

Estou empenhado 

e isso é bom:

sou engenheiro e operário

ao mesmo tempo.

Estou empenhado 

e isso é mau:

já só sobram os dedos.

Injustiças documentadas (544)

A palavra dada 

é a menos gratuita.

Injustiças documentadas (543)

Eis 

os bolbos 

da corte.

Injustiças documentadas (542)

Que iguaria 

serão as botas 

para haver quem se dedique 

a lambê-las com deleite.

#4118

Remexe o sal do dia 

e no garfo amoedado 

limpa a ferrugem 

que teimar.

11.6.25

Múltiplos

Não havia tempo

para todas as personalidades interiores

se as batinas adejavam 

com o seu ar inquisitivo

como se lhes devemos a pira da vida.

A tempo do tempo maldito

acostumavam-se as diferentes personalidades

em socalcos com lugar marcado

à espera do entardecer

agarrados ao vinho possível.

Diziam:

os mártires são como mercados fantasmas

com uma correspondência gramatical

a aliviar a consciência condenada a provações.

Com o aval das feiticeiras sem rosto

apanhei o céu com as mãos inteiras

e guardei-o junto ao peito.

Não haveria de precisar do céu

outra vez

para ler os estados animados

e rejeitar as farsas animosas. 

#4117

Lesiva 

a corrente que desembala 

o ar mutilado que mata 

a respiração.

10.6.25

#4116

O que vemos 

pelo olho cego 

do poeta?

9.6.25

Aprendiz

Sem saber o que saber

atirei os dados ao seu sortilégio.

não sei se sairia um amanhã

ou a repetição de passados

intermináveis;

se seria amnistiado por um fado elevado 

ou por uma estrada inclinada e sinuosa;

se haveria de vir à fala 

ou ficaria aprisionado ao silêncio;

se seria eu a varrer as cinzas de antanho

ou a admirar o poente ao entardecer;

ainda hoje

já não sei quantas luas depois

ainda estou à espera 

de saber pelo saber

o que o saber tem 

para eu aprender.

Injustiças documentadas (541)

Os assessores 

transformam o assessorado 

um acessório.

#4115

Não há ideias caducas.

O tempo é que não se atrasa.

8.6.25

Vindimado

Mando-me às mangas arregaçadas 

destapo o mapa sísmico 

onde a força se admite

ganho o corpo de ametista

e deixo em legado um léxico frutado

no promontório por onde entram as marés. 

 

Cuido dos sentidos 

na procuração da luz clara

contando os dias na aritmética nua. 

 

Às vezes tusso para fingir o medo

ou para fugir dos fretes avezados na rotina

para depois escolher o exílio

e de mim esconder o espectro assanhado. 

 

Outras vezes

só me apetece não saber dos dias

beber do vinho fecundo que atrasa o tempo

e deixar por conta das folhas caducas

o remoço que ascende da corrente funda

que pertence ao caudal intransigente.

#4114

Às vezes 

apetece agarrar o vento 

e ver onde ele me leva.