Dobro a noite
a escuridão
não deixa de segredar
segredos improváveis.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
No vagar das luas demoradas
chamo pelo teu nome.
Espero
na empreitada de generais sem arsenal
os braços nus;
eis a herança que deixo
para memória futura.
Escolho os baldios como pátria
prefiro às cidades onde
puídas
habitam as pessoas que jogam ao acaso
e se perdem num labirinto de incenso
atiradas à sua decadência.
Pelos ombros da tarde
vigio as janelas arrumadas
que esperam pelo ocaso.
Não pedimos lume à noite
as ramagens adormeceram sob os auspícios
do vento entretanto omisso.
Digo o teu nome
e o teu rosto
o teu corpo dádiva
sobem ao promontório destemido
e as estrofes vulneráveis
tornam-se o idioma que nos faz falar.
É este desembaraço
o vento que leva o rosto livre
o silêncio emudecido pelo avesso
o apogeu sem fronteiras.
Falsete no avesso de um dia arrefecido
os escombros ainda válidos
murmuram nos ouvidos não precatados.
O vinho anestesia o sangue:
é disso que precisa
uma providência cautelar ao dia constante
como se atrás viesse uma espada apurada
e o sangue se derramasse nas provetas do medo.
O mosto ainda quente alisa o chão sinuoso
e da pele tingida sobram as pétalas matinais
estrofes avivadas nas tatuagens sem sono.
Da hibernação voluntária
amadurece o desamanhã que importa:
um forte tumulto abraçado à carne suada.
Um sabre propedêutico
a descer sobre a indigência atrevida
para dela se dizer
que está em vias de extinção.
Arranco as páginas
como os dedos se emprestam ao afago.
Revejo nos lábios
a usura dos corpos extáticos
a água por dentro
a salivar numa corrida desenfreada.
Insisto
na redenção pelo silêncio
nesta habilitação de palavras intuídas
palavras adivinhadas no estuário amanhecido
e na glosa do dia entronizado.
Trago à tua mão desamparada
o destino havido na desautorização da angústia.
Depois
se formos ao lado do sortilégio
não somos reféns do medo
e sabemos
que a madrugada se demora
enquanto adivinharmos o corpo cúmplice
que se deita ao lado.
Ser asceta
causa umas dores lancinantes
dantes é que o pio dos dias era viável
e todavia
por voluntária corrupção
desabitei os hábitos estroinas
desabituei-me de distribuir impropérios avulsos
e de amanhecer com a cabeça virada do avesso
como se o norte fosse sul
a manhã noite funda
e de dia houvesse lua a sondar os poemas
(amadores,
como este)
e no fundo
as mãos descessem para apalpar o céu.
Assim passam os dias
no exílio necessário
eu
nem metade do que fui
aspiração a ser todo e outro tanto
quando a mão se deita ao elixir prometido
a menos
que as promessas sem paradeiro
sejam um logro
e eu
pacientemente
vá mesmo a caminho
da decadência.
A gabardina enjoada
percebe o sibilar das marmotas.
A corda estilhaça-se
ao ser atropelada pelo navio.
Depois da noite,
as juras de véspera são testadas.
Assim como as aves murmuram,
como se fossem
ancilares motores de combustão
no processo de aquecimento,
balbuciando sílabas errantes.
Se ainda for a tempo
prometo mostrar o estirador
de onde as ideias fogem em pânico.
Os escrúpulos
(no plural, para avivar)
voavam como aves de migração
irradiando lugares tão díspares.
Hoje é dia de pleonasmos.
As citações aformoseiam as frases feitas.
Os ogres saem à rua
disfarçados de emblemáticas figuras
cativando a admiração dos ingénuos
que também saíram à rua.
Hoje também é dia de estultícia;
quem pode dispensar um módico
de estultícia
para afinar a bússola por que se comanda?
Afinal
hoje é dia do que quisermos que seja
na adoração da liberdade
– mas daquela que não tem fronteiras.
À noite
diremos que há contas por acertar.
Mas isso fica
para um dia sucessivo
à escolha da nossa vontade.
A sombra que se acende na pele
transgride o sono.
Murmuro um punhado de palavras
e elas embaciam o remorso.
Agora somos nós
a nadar entre a angústia que soubemos gastar.
Agora
somos nós
apenas
no domínio dos nossos olhos.
Até adormecermos
e em nós transfigurarmos os sonhos
o idioma que só nós
falamos.
Ó delicada fonte
que salivas gota a gota
o teu soberano desdém
pelas heresias escoltadas
pelos nenúfares sublimes
dos códigos de conduta
auto-validados.
Ó
do teu peito geográfico
toda a cidadania perfumada
com o sabre da opinião fácil
e eu
daqui modestamente te digo
que adoro habitar nos antípodas
amassando a massa-mãe dos pecados,
ou lá o que isso é,
limpando com o guardanapo do almoço
os restos dos dias desaproveitados
por gente assim fiel às suas fidelidades.
Ai de vós
avós do pueril escafandro
que vos protege do mundo lá fora
que ensina a roda a rodar ao contrário.
Pois assim que se arrependerem
e de mim se colarem
juro logo ser outro ainda diferente
no compasso sem regras
que habilita os que se esqueceram
de causas
por causas (absolutamente) naturais.
Os dentes de fora
rabeiam a saliva colérica
os dentes querem sangue
sangue
e vítimas –
ou não é a História
um inventário de vítimas
e quase sempre perfumadas
pela inocência profanada?
Não há maestro
e ninguém sabe do paradeiro
das batutas.
Ninguém se empresta
à escuridão
como uma assinatura em branco
num contrato por revelar.
Ninguém confia
na palavra dada
quanto mais
na palavra vendável.
Assim vamos
fingidos e motivados
nesta Terra
de terra e mel e sangue
e todo o mar
para nele encontrar
refúgio.