15.7.19

#1115

Atiro-me à maré
no património de uma frase solta
e de volta trago o dia arrebatado.

14.7.19

#1114

Perdido por mil
é mal menor
do que perdido por dez mil.

Cemitério

“Is there life before death?” (Numa exposição no Museu de Serralves)

Código genético:
o desperdício
das dádivas que vêm às mãos.
O desgaste dos olhos
em vidraças mundanas
venais
que postergam o festim da vida
e aproximam o tempo da morte.
Na encruzilhada do pensamento
uma interrogação desmente a maré:
não é saber da vida depois da morte

(a mais espúria das interrogações,
com negação na sua própria formulação),

mas se houve vida
antes de ela ser negada pela morte.
A hipótese de um palimpsesto de morte
não está de parte:
a vida como farsa
ocultando um sentido antecipatório da morte
e a vida,
mera lantejoula 
onde a morte se passeia.

13.7.19

#1113

Uma excentricidade depois
continuava a mesma pessoa.

12.7.19

Fora do tempo

Não tinha noção do tempo
na contabilidade desassisada dos válidos,
se aos válidos fosse pedida noção.
Preferia outra moção:
faria do tempo
a enseada por onde,
gota a gota,
ao mar seria dada entrada,
sem o apressar nem dilatar
(o tempo).

Uma clepsidra disfarçada de sereia
quis repudiar a hipótese
procurando alternativa no roteiro 
das meãs possibilidades.
Ocultavam,
tais possibilidades,
um tempo que era um enredo em forma de farsa
com um palco sedutor
narrativa solenemente hasteada
o idioma nunca lesado em seu domínio 
muito ouro ungido dos dedos
– tal como o disfarce envergado pela clepsidra.
Mas era um tempo farsante,
um logro de um tempo vazio
sobrepondo-se ao tempo não avarento.
Rejeitei os solilóquios encenados
na bela fazenda arroteada com cores de néon.

Fui a tempo
de não me achar
fora do tempo.

Fiquei com a impressão
de saber da medida certa do tempo.

#1112

No magma sem rota
o sedimento
contra o perjúrio do tempo.

11.7.19

#1111

Queria ser o dia altímetro
para do meu corpo
cordilheiras inteiras irromperem,
vulcânicas.

Extravio

Esta é a pior estrada possível.
A recauchutagem desqualificada
penhor dos piores instintos
a sublimação de todos os males
o correio que não se espera.

Esta é a pior estrada possível.
O degredo metaforizado.
O inalcançável vulcão que respira o enxofre 
– e se alimenta de enxofre – 
no biliar enxovalho das palavras
que descem a sub-idioma
a decadência que se não esconde
sem lugar para esconderijo.

Um extravio,
Esta que é a pior estrada possível.
e, contudo,
é a estrada com mais trânsito
a estrada que apetece parafrasear
saciando as vírgulas e os parágrafos
a pontuação inteira em seu melífluo pesar
por anacoretas fingidos de aristocratas.

A estrada.
A pior possível.
Um desfiladeiro sem opção
no ermo lugar a que se aconchega
nas varandas escancaradas ao luar
onde não sobem lobos esfaimados
nem criminosos do pior jaez:
só os persistentes viandantes usam a estrada 
– a pior estrada possível – 
em estados lastimosos
nauseabundos
o pensamento sem paradeiro
húbrisdesapalavrado nas esteiras sem sol
em movimentos sísmicos
convulsivos
e choros de lágrimas fluentes
que são afluentes de rios caudalosos.

Esta é a pior estrada possível.
A pior possível.

A barreira sobreposta ao olhar
algema que aprisiona as mãos intimidadas
verbo proibido no cancioneiro das falsas fadas
uma espada sem comiseração
crispada sobre o dorso condoído
a punção perene das angústias sem finalidade.

A pior estrada possível.
A inevitável estrada.
Comum.

#1110

O medo
é uma dinastia
à prova de república.

10.7.19

#1109

Devolvo
ao mar cansado
a lágrima doce da bonomia.

Cortina de espelhos

Esconjuro 
as rodas encravadas
na engrenagem que congemino.

Um sussurro
desvenda as cortinas vetustas
no solitário bocejo da noite.

Antevejo
nas escadas íngremes
o absoluto encantamento do verbo.

Revejo
as páginas idas
no mirífico campo do silêncio.

Entardeço
no irreprimível movimento do tempo
sem capitular aos demónios invisíveis.

Arroteio
uma montanha milenar
no refúgio que se intui exigível.

Escondo
a matéria pútrida
dos olhos vivos que são juízes.

Perdoo
ao tempo contumaz
as cicatrizes legadas à pele.

Preparo
o chão gasto
para os pés nunca cansados.

Não corrijo
os contratempos de que fui tutor
por do arrependimento não ter saber.

Não escondo
as mágoas enquistadas
sob o esquecimento armado.

Não resisto
ao ocaso sibilino
a página-entrelinha que dita o segredo.

Não me oponho
ao verdugo da fala
se por ele se desmatar a fala mundana.

Não digo não
se o não for o cais sereno
onde repousa o rosto exangue.

#1108

(Cefaleia)

Um eco persistente
o mais audaz dos punhais
coloniza as veias pungentes.

9.7.19

A manhã e a maré

Deixei que a manhã 
tomasse conta da maresia
em sucessivas camadas de nuvens 
– diademas graciosos sem epílogo.
E nas contas da manhã
entre equações sem paradeiro
e vozes sem nome
dela tomei as rédeas
e somei-me
à aventura do mapa por desenhar.
Talvez fosse a manhã
a arquiteta do mapa por congeminar;
ou talvez a manhã
estivesse à espera de instruções
de um fogo por atear
na maré nascente que se parecia purificar
nas arcadas da paisagem
ela, 
por sua vez, 
debruçada 
sobre o leito seco do mar.
Deixei que a manhã fosse aviso
a cautela por vezes remediada
e resgatei do peito
os versos que ficam sempre por acabar.
Dei-os de volta à manhã
que se fundiu com a maré
e juntos partiram,
as suas silhuetas sumidas 
no ténue fio do horizonte,
sem mapa que os desenhasse
sem nada
a não ser o sangue siamês
que passou a ser uníssono. 

#1107

Depois da ponte
atrás de mim,
as ruínas que me precederam.

8.7.19

Concordância verbal

Passavam juntos
no cais sobranceiro 
de onde estava hasteava o odor à maré baixa.
Havia pegadas no lodo
alguém que não se intimidou
com a brisa pútrida e o chão enlameado. 
Um barco
(possivelmente abandonado)
estava ancorado sobre o lodo
inclinado sobre o lado direito,
como se começasse a ser inaceitável
o peso do seu casco deitado sobre terra. 
Podiam especular
sobre o proprietário da embarcação
ou sobre se aquele
era o retrato do melancólico fado do barco.
Seguiram o caminho
sem pararem do dorso da especulação. 
Ali à frente
já era o mar;
o rio entrava pelo mar
sem se dar conta,
fundindo-se em seu estuário largo. 
Ao menos,
do mar não sobrava um odor pestilento,
que cedeu lugar à mirífica maresia. 
Era toda uma metáfora,
em seu pleno acabamento:
o outrora rio,
indomável por milhas a eito,
quando se esculpia 
entre o granito do desfiladeiro contínuo,
fundia-se nas águas majestosas do mar,
devolvido ao anonimato. 

#1106

Ganho o segredo
e deposito-o em cofre tão forte
que depressa me esqueço dele.

7.7.19

Verbete

Arrumo a paz
no desassossego do tojo selvagem
régulo do perímetro onde cicia
a luz clara,
matinal.

Não é preciso coragem
para destas armas terçar: 
no solilóquio contumaz
salivam as palavras sibilinas
em verbos mendazes
pelas bocas dos capatazes marítimos,
os que andam em profissão de paz.

Suas são as barcas impecáveis
em imagináveis laudos
um remo que deixou de ser baço
no braço formoso que derrota
o bélico rosto dos assim pederastas.

#1105

A venda dos descobrimentos:
entre opacidade dos heróis
e aviltamento por conta dos antepassados.

6.7.19

#1104

Referendei a voz passiva.
Preferiram o verbo acutilante.

5.7.19

Doença crónica

Misericórdia pedida
em formulário encharcado de lágrimas
tentativa de superar empreitada
com o préstimo da preguiça
disfarçada no úbere da piedade. 
Arrastam os corpos poltrões
na indigna condição dos comiserados
em vez de decaírem na vergonha própria
e recusarem
a si mesmos
o opróbrio do requerimento da comiseração. 
Neste impudor
consomem-se num canibalismo interior;
ou talvez não estejam equivocados
já cientes dos arranjos disputados
da corrupção das almas
dos prantos que porfiam e alcançam
num epítome dos medíocres mal fingidos 
– dos medíocres entronizados.
Dizem os incréus
que os milagres são a abstémia condição
dos impreparados.
Quem quer melhor prova,
com requintes de amadorismo
(a condizer com as qualidades
dos profissionais da comiseração),
que as proezas destes descamisados
entram no panteão dos milagres?

Quem falou de anátemas?

#1103

(Sugestão de política fiscal)

Tribute-se o vernáculo
para termos um petróleo em triplo.

4.7.19

Moeda fraca

Dou de troco
a moeda fraca. 

Há quem a aceita. 

Ao longe
desconfio que é fraca,
a moeda. 
Rejeito-a
se for troco em volta
e prefiro que malogre
a transação. 

E, todavia,
há alturas que em mim
a forte moeda cobra sua metamorfose
em fraca se tornando.
Desconheço
por que misterioso trâmite
se transfigura a moeda,
como se 
por ação de contágio com minha pele
ela perdesse valor. 

Considero sempre
que melhor fico ao dar à troca
o pecúlio de moeda tornada fraca
por uma modesta compensação:
não há fortuna maior
do que não ser contaminado pela moeda fraca
e nela se tornar. 

#1102

Amuralhadas,
as palavras esvaziam-se.

3.7.19

Sal

Naqueles loucos tempos
fugíamos dos guarda-freios
os corpos 
dependurados na retaguarda dos elétricos
enquanto os rostos eram corridos
pelo vento contrário.
Sem darmos conta de tão frágil condição
desaprendemos
que na adulta idade nem sempre assim é:
a ilegalidade fica tantas vezes na sombra
e os seus fautores não perdem o garbo
e ensinam probidade a quem os escutar
(muito certamente para as atenções desviarem).
Desaprendemos a loucura,
também,
na exata medida da legalidade. 
Perdemos um certo sal
que a irresponsabilidade impedia de notar. 
Hoje
continuamos no cálice da retidão
às vezes esperando por um acesso de loucura
ou apenas que o corpo dê conta
de uma salina.

#1101

Junto as palavras gradas
numa equação
e bebo desta matemática quimérica.

2.7.19

#1100

(Atualidade política, 2019)

Catch me
if you PAN.

Irradiação

I
As coisas sem nome
projetos inválidos da boca pálida
um trajeto emudecido
na sombra das árvores. 

II
Os nomes não demandam as coisas
não sabem os seus nomes
no paradeiro incógnito que as mareja
na simbiose dos frutos. 

III
Os nomes não querem nomes outros 
se não a macieza da pele abraseada
e o dorso onde cavalgam os verbos
sem o despeito da angústia. 

IV
Dizem das coisas apalavradas a um nome:
são um santuário proibido
a fantasia turvada num sonho
um pedestal sem deuses. 

V
São os nomes próprios
onomatopeia que se densifica fora do desenho
num atropelo da gramática 
fusão inverosímil dos ascetas e dos boémios. 

VI
Os nomes e as coisas são ímpares
na matemática hermética do desconhecido
em circulares convulsões
nos estereótipos à procura de lugar. 

VII
Quadrassem as coisas todas com nomes
os sortilégios deixavam de estar ao vocabulário
e os homens adormeciam sob a monotonia
enquanto o jogo se fazia fora do tabuleiro. 

VIII
Não há verdadeiramente coisas sem nome
menos as que estão por descobrir
que os nomes são sempre ávidos
de serem apóstolos à procura de enredo. 

IX
As coisas sem nome
são metáfora excruciante
o logotipo encerado dos apóstatas
submersos numa apneia.

#1099

Não dar troco
é pior
do que não deixar gorjeta.

1.7.19

Espera

A varanda
sem parapeito.
O amanhecer
como um feito.
A contestação
sem pleito.
A voz muda
com um suspeito.
A linha a destempo
sem efeito.
O ocaso
com a espada ao peito.
Os espelhos
sem medo do trejeito.
Os corredores
com as mãos a eito.
Os nomes
sem idioma perfeito.

#1098

A escravidão nunca acaba
nem quando oficialmente terminada
nem quando balbucia, 
involuntária.