10.12.19

#1297

A pálida, murcha magnólia. 
Uma promessa de devir.

9.12.19

Contrato

Apostava tudo
na moeda pagã. 
Não tinha 
se não uma leve ideia
das flores havidas em instâncias anteriores
e das lentes ilegíveis
sobrava a presunção do dia esperado. 
As vozes voavam mais rápidas
do que as marés exibidas. 
Era o tabuleiro
de demónios sagrados
e números ao acaso
infundamentados
sem qualquer mnemónica
ou o travesseiro 
onde se agigantavam
os sonhos. 
Demónios sagrados, dizia. 
Não sabia o que queria dizer
aquela combinação de termos
e dizia-o
com a mesma perseverança
com que abjurava os dias pretéritos. 
Julgava-se 
um colóquio de si mesmo
o abastardado impropério 
que era a deserção interior,
involúvel. 
Ouviu falar nos deuses pagãos. 
Podia ser um farol 
onde podia proceder 
ao levantamento
da nova versão do eu. 
Mas os medos intemporais
levavam a melhor
num braço de ferro
em que seu era o braço molestado
e de ferro o braço dos medos. 
O que podia perder
se apostasse na moeda pagã?
Nunca se sentira bem
na floresta da incerteza. 
Não se intimidou. 
Os medos 
podiam hipotecar o tempo
mas era vez
de ser a sua vez 
de torcer o braço
ao código do porvir.

#1296

Lágrimas vencidas,
o lamento gorado.

8.12.19

#1295

Tirocínio. 
Tiro o sino. 
Tiro ao siso.

#1294

A escumadeira ocasional 
quando é preciso
coar as impurezas.

7.12.19

Vacina contra os mastins

Sob a asa de uma estrela
nado nas águas frias
do rio sem rédea. 

Sob os auspícios de uma candeia
falo no entardecer 
às crianças cansadas. 

Sob o remédio da vida farta
colho a boémia que me condiz
com os atores da minha escolha. 

Sob a jura da noite tépida
conduzo pelas estradas sem nome
à espera da toponímia certa. 

Sob o patrocínio de uma ideia
fujo das pedras arregimentadas
em elegante golpe de asa.

#1293

Gera a dor.
Refrigera a dor.
Refrigerador.

6.12.19

#1292

Um grito mudo,
que a coragem
ficou para segundas núpcias.

Hábito

De árvores refúgio
antes dos quandos que interrogam,
ou a clareira
as árvores sem lugar
ou as árvores surdas,
e das bagas recolhidas do chão
o sumo que se bebe,
no inverso da sede.
Das árvores desenhadas
nos contornos das nuvens
sobram páginas mudas:
alturas há
em que o silêncio 
se acastela nas fundações da fala
e fala mais alto
do que páginas mudas.
Deixam-se as palavras
para as árvores alinhadas
no dorso do rio.
Amanhã
uma distância depois
apanham-se as palavras
infladas, 
adubadas pelo rio vagaroso,
antes que o rio se perca no mar.

#1291

As preces e os prantos,
eles são tantos.

5.12.19

Monástico


https://www.youtube.com/watch?v=XyFIIUKAOE8
[Tricky, “Makes Me Wanna Die”]

De si dizia
“sou 
apenas 
um ismo”.
Matéria infecunda
improvável decantação
inoportuna candeia,
sem combustível.
Um ismo:
mas não
feminismo
oportunismo
malabarismo
calculismo
fascismo
facciosismo.
Um ismo
outro qualquer
ainda por sondar,
mas um ismo.
Talvez
só mesmo o ismo
sem partícula precedente.
E de si concluía,
com o fartote de um seguro de vida
“creio ser esta
a minha maior grandeza”.

#1290

Abraço os sonhos
em pétalas de fala 
abertas ao epílogo da manhã.

4.12.19

Discurso

Dos bichos
disse frases comovidas
o lustro onde têm cabimento
na visibilidade do empenho
o ferro e o fogo virados contra os Homens.

Disse
aos demais
não tudo o que fosse apetite
que de embargar palavras somos instruídos
nos empenhados pactos assinados sem tinta.

Disse
o que de dizer era válido
e guardei outros dizeres
penhorados pelo buço do segredo,
à espera da maré a preceito
à espera de uma vontade sem freio.

Disse
em horas tardias
o que tinha lugar em vésperas havidas
e não pude se não 
arrematar o arrependimento contra as lágrimas
e desse arrependimento me arrepender,
ato contínuo,
à boca de um vulcão em letargo.

Disse
as metáforas que carecem de erudição
onomatopeias vestidas em simplicidade
os sons guturais, 
prescritíveis,
que sobem 
desde a medula até à voz desembargada
e sossegam a manada perdida nas ruas.

Direi
se o porvir for minha caução
de outros estamentos o que for de dizer
entre os benfeitores cuidados de almas
poemas em voz alta ao deitar
e outros poemas em tempo avulso
a espada embainhada
no cobertor que se agasalha na alma.

Direi
enquanto for minha a fala
e de sua tutela 
guardar o mapa.  

#1289

Quando começa o jogo a contar.
Quando conta o jogo começado.

#1288

A inacabada vozearia,
e eu
emudeço.

3.12.19

Manual do desejo

[Thurston Moore, “Leave Me Alone”]

Deixo a lanterna
deixo-a 
no propósito da luz
em maceração
contínua, 
vívida,
sem o bojo do engodo das palavras
das palavras malsãs
das palavras equívocas
nem que seja das palavras meãs.

Desta paternidade 
as ideias sem maré
entre a convulsão das memórias
e o império da adulteração,
sabendo apenas o que não sei
contendo dentro do peito
as palavras em forma de bala 
– o regicídio inacabado.

Destravo as costuras atadas
no caiado céu na véspera dos pássaros
e as flores polinizam os verbos desencontrados
contra a vertigem do apetite
a combustão da carne desenfreada
nas ilhas feitas à volta dos parágrafos,
as linhas a eito deixando espaço
para as pontas soltas
ainda soltas.

E se ao fogo ávido
a boca sedenta se atira
é por o desejo tatuado na pele
e as palavras nunca são erradas,
as palavras são sorrisos largos
e os dentes desenham os versos improváveis.

Contenho a cinza mercadejada
em santuários à margem de tudo
e sei
de antevéspera
que depois de amanhã será calendário
contra as probabilidades de o não ser.

Não desaproveito o dia e a noite.
Apetece estar de atalaia
todo o tempo
no veio do tempo
o sono encomendado ao olvido
e da pele sedosa sílabas incansáveis salivar
na gramática do alvo mais forte
a gramática do que é
o desejo de ti.

#1287

Presépio social,
ou casa dos horrores.

[Marxismo do avesso]

2.12.19

Outridão

Que é feito das maldições
da abreviatura da vida
da espuma em vez de verbo
da diagonal que entronca no mar
do tecido baço no coldre dos puristas?

Que é feito do mosto quente
dos poros suados
das barragens de medo
dos almirantes sem espada
das entranhas em tira-teimas?

Que é feito dos sábios sem manual
dos protótipos dos loucos
das desonras a desoras
das fumarolas expiatórias
do magma que vem às pontas dos dedos?

Não sou feito da mesma massa
e, todavia, vejo os antípodas do centrípeto
como a casa central
a peça do xadrez movida sem consentimento
diadema extravagante pousado no canto,
escondido.

Não tenho apostas no mais vão de mim
e das cordas apertadas cobro meu arnês
antes que o ocaso seja um logro
e das mãos suba aos pesares
o arrependimento contumaz,
escusado.

Não sou da mesma massa feito
e da ossatura retenho o fio de prumo
o aplauso sem peias às proezas guiadas
sem a escusa da chuva
sem o amparo das preces,
retiradas.

#1286

Pólvora seca
que seca
a artilharia pesada.

1.12.19

#1285

No teatro da consciência
deixo o meu singular tesouro.

30.11.19

Águas profundas

Águas profundas
meneio o leme no avesso do vento
sondo a medula do mar
naquele lugar estranhamente inóspito
e futuro. 
O pico da maré
encobre os segredos da maresia
enquanto aposta com a noite
quem chega em primeiro lugar
às águas profundas. 
Nem um escafandro
conseguiria a avença do segredo. 
É como um ritual,
desaprendido,
e de sereias desenhadas
sobram silhuetas baças
e o sal do mar,
em verso.

#1284

Espalhar a palavra.
Vê-la a ficar espigadota.

29.11.19

Fundamento

O menos
o armeiro sem arsenal
a sua riqueza singular.

Ao menos
a gentileza em semente
em minimalismo decente.

De somenos
a fartura dúbia
no pedestal da argúcia.

Do menos
as garridas formas
a fecunda, prolixa deriva.

A menos
que um beijo sitiado
a emulsão do desejo.

#1283

Sobre a vertigem
o bafo obstinado
cobrindo as probabilidades.

28.11.19

Fronteiras em saldo

Fronteiras em saldo
fronteiras sem saldo.

Sem fronteiras
contrabando hasteado
na contradição de termos:
não há contrabando:
as fronteiras 
passaram à história. 

Sem fronteiras,
jogos assisados
lantejoulas descendo sobre a liberdade
para grande ira dos penhores dos limites
arvorados 
na hermética divisão de castas. 

À procura de fronteiras, 
com sede de as desmatar 
sobrando a sede do conhecimento
a fome de experimentar o dantes estranho,
caução da emancipação. 

À procura de fronteiras
em seu desnatar
soprando aos ventos ligeiros
a nova boa da terraplanagem dos limites
e agora
apenas a serventia dos deslimites
a fecunda faca cravada 
na medula do arbítrio, 
o donativo súpero.

Fronteiras: 
curiosidade arqueológica
no miradouro 
onde o Homem
se avença com grandeza,
a grandeza outrora amesquinhada
pelo espartilho,
artificial e arbitrário,
das fronteiras
em desenho avulso de Homens 
que gostam
de ser domados.

#1282

Não é catástrofe
a cal que abraseia 
a ferida aberta.

#1281

Guardo as bagas das romãs
como penhor do outono
e sei-as vívidas,
incandescentemente perenes.

27.11.19

As armas benignas

Estas são as armas
no amparo da varanda válida
sob uma luz apenas ténue:

uma orquídea decadente
o piano gasto
o ocaso ritual
o “poema contínuo”
as botas cardadas do despudor
a homenagem às homenagens sem rostos
o sentimento loquaz
o pudim de azeite
a leitura vagarosa
o dia sem relógio
o terno beijo da mulher amada
o doce sobressalto consequente
o notário dos feitos
os arbustos montanheses
o ribeiro tenaz
a lua sem medo
as páginas caiadas, à espera
a doméstica profusão de gatos
as palavras (sem adjetivo)
o feitiço embuçado
o fingimento levado a palco
o cais desembaraçado
a flor de lótus na lapela mental
a provocação aos facciosos
a militância de nada
o desenho do presente
o parágrafo do passado
a espera, intensa
o espreitar sobre o ombro da manhã
a lua caiada sobre o dia sobrante.

Estas são as armas
munições sem dor nem desprazer
miríade de vírgulas separando ideias
e as ideias sobrepostas, 
na harmonia invisível. 

#1280

Imparáveis
sobre os adereços frívolos
em terraços embebidos em flores.

26.11.19

Farol

Um farol
na embocadura
da fala.

Desenha a luz
só com as mãos
o farol sentado.

Lilás é a cor
antes que mude de ideias
e bolce um expediente.

O farol
sem luvas
remexe nas algas túrgidas.

Perfumado
continua no tabuleiro
sem a opressão da desvantagem.

O farol
tem nome
quer ver escrito o seu nome.

Na miragem da manhã
desconfia de um navio
parece um fantasma.

Ao caldeirão sinérgico
traz os vestígios da alma
apanhados do vento tardio.

O vento
desce as escadas do farol
amuralha as paredes sem remorso.

No contrabando das palavras
uma pauta impura
acasala o sentir.

O pescador
retoma a estrada
no serpentear da dúvida.

Interroga o farol,
a pescaria ausente
e a proeza soará a mentira.

O farol
só sabe o que quer
na abundância que vem às mãos.

Diz estrofes avulsas
amanhecendo,
sozinho.

Sacia-se
nas palavras fecundas
e nas outras também.

Dizem
que o farol se candidatou
a um perene lugar no mapa.

Ninguém desmentiu o farol
na ousadia infante
da luz que o questiona.