[Crónicas do vírus, DCCLX]
Legados da peste (76):
não na boca do lobo
na pele do lobo
(outra vez).
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCLX]
Legados da peste (76):
não na boca do lobo
na pele do lobo
(outra vez).
Dizia:
a eternidade
o lance venal que se deita
nos segredos improcedentes
de um rio que se não sustém
na demanda do estuário
onde visitado é pelo anúncio
do estertor.
[Crónicas do vírus, DCCLIX]
Legados da peste (75):
a corruptela da altivez
no venal esquecimento.
O outono falava.
A desarrumação do chão
(folhas caducas já sem lugar nos ramos)
o céu antagonista
o mar que queria transbordar
transportando no seu azimute
uma ira mal calculada
a chuva arrastada pelo vento insubmisso;
as pessoas mal-humoradas
de tão mal-habituadas a um outono severo.
[Crónicas do vírus, DCCLVIII]
Legados da peste (74):
agora
é a voz da cacofonia
pois dantes
foi a vez da mordaça.
Como somos:
se não a réplica
do que julgamos ser
feriado enxertado em página baça
intransigência com o avesso recusado
turno onde nós desafeiçoamos do dia.
Somos
o contrário do avesso
em que juramos não habitar.
Somos
a indiferença
por dentro de nós.
Nestes preparos
de que serve
o bestiário de nos vestirmos
tão solenemente importantes
se nem por dentro de nós
disso retiramos importância?
[Crónicas do vírus, DCCLVII]
Legados da peste (73):
a deserção
do deserto interior
em retaliação
contra a misantropia forçada.
A absolvição
não se abraça à lucidez.
Toma-se
em doses homeopáticas
antes que seja do tempo irado
a safra restante.
As escamas puem a pele aturdida
num opúsculo de decadência
que não estava no programa.
Fala-se da senescência
e as mãos furtivas
procuram um outro mapa
desencantadas
com o augúrio do tempo presente
que parece conspirar com um porvir belicoso.
Fogem os dedos trémulos
(decantados numa miríade crepuscular)
das estrofes aprisionadas em labirintos
gastas em fogos noturnos
como se andassem à candeia
no chamamento de uma lua embaciada.
Os corpos adiantam-se ao tempo
(diz-se, com angústia sentida).
Aos altares sem paradeiro
responde-se com a contumácia indiscreta
antes que sejam tardios
os murmúrios que se emaranham nos sonhos.
A ferrugem das ideias
não parece ter sido vertida no estuário
enquanto o corpo extático se arrasta
na marca da usura
(ou com a usura das marcas hasteadas,
quem sabe?).
[Crónicas do vírus, DCCLVI]
Legados da peste (72):
das juras desandadas
às bandeiras por arrematar.
Chamamos os diamantes por grosso
um lápis assentando no xisto
a tentar fazer a diferença.
O fortuito pesar não pesa nas olheiras
que antes de serem um acaso
fruem das varandas deitadas
sobre as luzes varonis.
Sedentos de labirintos escondidos
os moradores das almas gastas
todavia
desencomendavam-se da decadência
atribuindo-a vizinho primeiro.
Antes que viesse a noite
que desse lugar ao luar furtivo
deixando a ossatura bem composta,
desistindo do empalidecido dia insistente
na vertigem de um beijo ajuramentado,
juntámos as páginas num sobressalto sem nome.
Sempre dissemos
que não tínhamos medo de aeroportos
e as avenidas fartas à mercê de idiomas tantos
disso fizeram prova.
O testamento dar-se-á a conhecer
em memória futura.
A espera é o que nos espera
enquanto não nos debatemos
com a exaustão da lisura.
[Crónicas do vírus, DCCLIV]
Legados da peste (70):
voltamos,
ao que parece,
a escrever a fala
a tinta-da-china.
[Crónicas do vírus, DCCLIII]
Legados da peste (69):
as bandeiras que bordam uma fala,
porta-vozes da vingança.
No nome de um rio
um fingimento:
quanto do caudal
leva os pergaminhos dos afluentes
e aquela água é um espelho cosmopolita
até esmaecer no lugar remoto
onde se metamorfoseia em mar.
No rio centrípeto
os caudais afluentes
dissolvem-se num nome sem petição.
E no mar
quanto do seu nome
é feito de rios
que nele perderam voz.
A boca que dança no fojo
não é aquela que estropeia palavras.
Os lábios são o aval do desejo
e diz-se
à boca pequena
que dela sobra uma combustão demorada.
Ao deus-dará
a boca a que chamaram quimera
arremata a doação singular
e as sílabas sopesadas são a sua iguaria.
[Crónicas do vírus, DCCLI]
Legados da peste (67):
a alvorada de novos oráculos
em demanda
da peste que se reanima.
Se em vez de juras
houvesse madrigais.
Se em vez de colheitas
houvesse um sinal dos céus.
Sem em vez de preces
houvesse palavras dedilhadas.
Se em vez de consolos
houvesse uma imagem avivada.
Se em vez de prantos
houvesse poemas.
Se em vez de amanhãs
houvesse uma claraboia.
Se em vez de achados
houvesse em ermo por habitar.
Se em vez de altivez
acabássemos na morada da modéstia.
Se em vez da avareza
morássemos no mapa do desprendimento.
E se em vez da ambição
desprendidos fôssemos pela mão do simples existir.
[Crónicas do vírus, DCCL]
Legados da peste (66):
aceso o rastilho
mil vulcões outrora reprimidos
coligam-se numa ode à violência.
Tirando a nostalgia
e os degraus corrompidos
que tiravam a seriedade à escada
qualquer medida se sobrepunha
ao começo de um começo
só porque havia o medo da finitude.
Em vez da cura
olhavam com suspeição para a doença.
Só por serem ateus
não entravam nas contas dos condecorados
nem os campos fartos se compunham
para reunir o seu pirronismo.
Deus
o tal que não existe
é muito democrático
na distribuição das maleitas.
(E disse-o sem dar pela contradição de termos.)
[Crónicas do vírus, DCCXLIX]
Legados da peste (65):
encurralados num vendaval
no vento que hasteia os espantalhos.
O colibri orquestra o oceano.
Ele não sabe que seu parto
deu-o o mar imensurável.
Não sabe
que de tão imenso
o mar se esconde com medo
de o tomarem como exíguo.
As vozes protestam:
vivemos todos num enclave
sitiados por paradoxos que nos consomem
sem sabemos a autoria das noites medonhas
das comendas que se advertem
contra o chão puído que nos não quer.
O colibri vigia o oceano.
Ele não sabe do seu pranto
do mar hercúleo
desfeito nos estilhaços da sua fragilidade.
Não sabe que armas precisa de terçar
para libertar os farsantes do seu pecúlio
e para da madrugada sobrante erguer estátuas
poemas válidos que substituam a gramática
devolvendo aos matriciais arquitetos
as regras deixadas a apodrecer.
O colibri pergunta ao oceano
o que o traz iracundo.
O oceano deixa o silêncio a levitar
uma coreografia que se subleva
contra os feitores de tanta coerência.
E o oceano
vulcanicamente atirado contra os cais
que dele protegem alguém
não desiste do sufrágio das almas:
quer que elas venham às janelas
espreitar o oceano temerário,
que mais parece um foragido a sair de si mesmo
na colonização da terra que não é seu domínio.
O colibri não desiste do oceano.
Amanhece ao seu lado,
como se um mago afagasse o seu rosto
numa tentativa de temperança
e das suas veias
retirasse todo o veneno que o consome
que consome as pessoas vestidas na sua humildade.
Mas o oceano contraria os vates que o desenharam
bucólico;
sitiado na sua agitação insolente
imita o alpinista e cresce por cima das dunas
ocupa o chão empedrado da alameda vizinha
deixando para memória futura
um restolho que não finge o desacato.
O colibri não se inquieta.
As mealhas da História conhecem os ciclos
e da destruição episódica
que reverte a favor da povoação das almas.
[Crónicas do vírus, DCCXLVII]
Legados da peste (63):
um exército de mercenários
a soldo
de conspirações
e de dogmas.
Ostenta-se
a cilada
no remoto gesto
da palavra.
No alpendre
as ruínas ascendem
no olhar túrgido
dos idosos.
Não é a decadência
o antídoto
se em páginas gastas
se apaga a dança.
O resto
tem a tutela do luar
e em nós as mãos caldeadas
adiam a tirania do tempo.
Era vê-lo
todo ufano
em comentário indiscretamente marialva
admitir:
“não percebo nada da poda
mas percebo tudo de foda”.