[Crónicas do vírus, CMXXV]
Legados da peste (236):
Sem o medo
como verbo de fundo
podemos ser corsários
como dantes não fomos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMXXV]
Legados da peste (236):
Sem o medo
como verbo de fundo
podemos ser corsários
como dantes não fomos.
A manhã
era o farol que se juntava
no bordo da janela
e murmurava verbos válidos
aos nossos ouvidos.
Não eram os sentidos em alvíssaras
a combinar com os lugares vazios
e os dedos entrelaçados
fugiam ao penhor do tempo.
Dávamos à manhã
o que nos pedia
e em troca
a manhã anunciava-se
luminosa
um viveiro de bocas suadas
corpos hasteados na vertigem
fazendo em seus refúgios
publicidade ao lugar desocupado
que dantes fora uma jura falsa
de desamor.
Éramos curadores da manhã
ou a manhã
como se fosse nossa porteira
e da portaria atirássemos ao futuro
o sortilégio
que vinha nos versos que as bocas entoavam
e nós
portadores do atlas escondido
desenhávamos a geografia
na simetria dos corpos alinhados.
Se dissessem
que éramos loucos
acreditávamos.
E nós
falávamos os idiomas avulsos
até os que não sabíamos ser conhecedores
só para darmos asilo ao vocabulário reservado
e em jura solene
contássemos as sílabas da confiança.
Não partíamos de dados com números
e também éramos capazes
de poemas escondidos das palavras
a celebração do silêncio abastado
que dispensava o logro das palavras.
De nós
subia ao resto do dia
o sangue sem provações
a terra que partia no convés de um navio sem nome
a toponímia que era a que nos quiséssemos
a cada instante.
Desatámos os nós inteiros
com a destreza de marinheiros
e as cordas ficaram à espera das mãos
o mar inteiro sob a nossa tutela.
Da geografia sem adiamentos
colhemos os violinos que ciciam nas paredes.
Hoje
sabemos que o tempo não é uma dilação
e o coabitar numa medida sem avesso
é a quimera que soletramos
sílaba a sílaba
enquanto dizemos ao mundo
como deve desenhar a fala
como não pode respirar as preces.
Em contemplação do horizonte
no miradouro que se afivela no olhar
abotoamos os centímetros de um vulcão
e toda a lava vertida
é a fecunda prova dos versos
que soubemos ser.
Pois em nós
os verbos não têm tempo
e o olhar funde-se na matéria funda,
a maresia de que somos feitos.
[Crónicas do vírus, CMXXIV]
Legados da peste (235):
O elixir
para memória futura
– estava escrito
no habitual lodo antropológico –
era uma (má) distração.
O trinta e um
é um cabo dos trabalhos
um adamastor que cega o caminho
o lídimo assarapantado
que não sabe como desfazer
os equívocos em barda.
O treze,
segundo os melhores peritos
em cabalística
e os afonsos de variadas superstições,
é a personificação do azar.
Talvez não seja por acaso
que o trinta e um é anagrama do treze.
Inquiram-se
os peritos em cabalística
e os afonsos de variadas superstições.
[Crónicas do vírus, CMXXIII]
Legados da peste (234):
A metamorfose
do sangue,
depois da maré
de veneno.
A fita adesiva conspira
na sudação das palavras havidas
entre um resgate soporífero
e o latir de um cão de fila.
Dizem que são mastins
nas eu povoo-os
no lagar da indiferença:
as suas vozes tonitruantes
só esgaçam
as suas gargantas aturdidas.
Mandam as convenções
– diz-se, à lapela sem flor
do passo que,
em passando,
o ardina reformado murmura
as rimas que se sublevam contra
o silêncio.
Ah!
a fita adesiva
contra-ardósia militante
no vulgar bocejo dos lugares-comuns
que ainda ninguém determinou serem
não-lugares.
[Crónicas do vírus, CMXXII]
Legados da peste (233):
Uma guerra faz esquecer
outra (anterior) guerra?
Lisérgico
o perigo parteiro do medo
desarruma o arnês
e somos todos lançados
no precipício do mundo coabitado.
Salgado o substantivo coevo
admite-se a concurso
uma coroa de espinhos como cama
e um vinho avinagrado
como arma dos admirados.
Por este andar
é noite
e ainda não sabemos
da missa pela metade.
Desde a matéria sensível
a ousada faca que se espeta
no dorso cínico da
(assim dita)
verdade.
E depois
há os que se investem numa missão:
não dar tréguas aos párias
por delito flagrante
contra a
(assim dita)
verdade,
eles, párias,
monstros que são o rastilho dos contratempos
da descompostura da gente
(assim vista, em autorretrato)
decente.
E a ninguém é dado interrogar
se as cores das peças dispostas no tabuleiro
não estão do avesso.
A corda mansa
amacia o corte na carne,
assoreado na corte malsã.
A corda amansa
e na mansão acobreada,
açorado amanho a curva do dia.
Acorda mansa
na mansarda recortada
e na coorte marca o covil.
A boca muda
sílaba forte do silêncio
bandeira apessoada
no lugar de um gangue de palavras
ou apenas
o azimute do pensamento peregrino
instrumento da demorada demanda
pelo magma fundente.
A boca muda:
prescinde do silêncio estrutural
deitada sobre cadeiras de verbos
prolixa procuradora da fala
que muda a mudez centrípeta
agora orbital
num, talvez,
arroubo de despensamento
que caduca.
[Crónicas do vírus, CMXVI]
Legados da peste (227):
Um cortejo de sombras
sitia a memória do futuro.
O cortejo a esmo
sísmico mear
aproveitado pela maresia
que aos homens meãos
não se imputa cuidado mapear.
Os pesares arrumados
calam lamentos pendidos
pelas mãos caiadas de audácia
desprendida dos apesares e dos poréns
que dantes tingiam o olhar com sombras.
[Crónicas do vírus, CMXV]
Legados da peste (226):
A ferrugem
arrancada à boca,
o mosto indesejável
dos anos sem cortina.
Considere-se a varanda estendida sobre o ocaso.
De cada vez que o vento cicia
os arbustos pendem sobre o precipício
e isso faz-me lembrar vidas várias
que se convidam para o palco deletério.
Os braços não sossegam no sopé da maré-cheia
convidam os vultos a serem pagãos
sob a égide da bravura de um guerreiro limítrofe.
Se ao menos
os desensinados não povoassem o medo
e os verbos não subissem nos poros das sílabas
a madurez das folhas não as faria outonais
e seria a escotilha a avisar da chegada.
De mangas arregaçadas
os pescadores mentem as preces que os protegem
dos mares não lúcidos e das marés assanhadas.
É um pouco como devia ser com os demais,
protestam curas militantes
e crentes de variegadas cepas,
peticionando a usura das sotainas apessoadas
sem contar com os desalinhados
uns
que não se aninham a deuses e seus mandatários
e outros
que distraidamente povoam a indiferença.
Em vez dos mapas derruídos
os novos profetas convocam
as lentes desembaciadas
e desenham,
a tinta-da-china,
os olhos açorados de desempoeirados anciãos.
Já outrora se dizia
que a antiguidade é um posto.
Ninguém cuidou de inaugurar a manhã
desconvocando a penumbra ensonada
para deslembrar
que a antiguidade é só um passo
e decidido
para a decadência.
Os seniores acatam sem resistência.
Sabem do exaurido da carne
dos ossos escombros
e o despensamento atraiçoa em desfavor da maré.
Suas
são as varandas arqueadas sobre o precipício.
Despenham-se numa maresia inspiradora
enquanto resgatam
em precipitada cadência
os fragmentos representativos do estatuto
vigente.
São eles que atendem a porta
quando os demónios amedrontam os pueris.
Desmentido o posto da antiguidade
que seja consagrada
como matéria-prima que debita a estabilidade
que participa dos corsários
em tribunais sumários
contra o passado habitado
por fantasmas e medos.
A tiracolo
os velhos trazem os olhos cansados
de quem soube colher
as costuras do mundo inteiro.
Até que nas grutas da memória
sobre o vocabulário minimalista
em defesa dos sucessores que se habilitam
na vertigem de quem desacredita da senescência
os velhos aparem as unhas da mentira
e acertem contas com a anestesia geral
dos demais.
[Crónicas do vírus, CMXIV]
Legados da peste (225):
Vindimados
os anos plúmbeos
conseguimos ser o que éramos
antes dos escombros?
A aritmética da morte
é isso mesmo
aritmética
a tradição dos corpos inertes
cadáveres que fermentam
no mosto das elegias prometidas
falésias onde se despenham
vidas
vidas extintas no vendaval precoce
um passaporte crepuscular
sem visto selado por embaixada
nem requerimento à espera de ser deferido
uma aritmética
fria e banal
como banais deviam ser
as irremediáveis coisas
no andar mais fundo que a ossatura permite.
Uma aritmética
sem mais
contabilidade lutuosa
vociferação dos vivos
que protestam
em lugar antecipado
a morte que há de ser
seu paradeiro.
[Crónicas do vírus, CMXIII]
Legados da peste (224):
Corremos
atrás do tempo perdido
ou dizemos aos relógios
para repetirem a contagem?
[Crónicas do vírus, CMXII]
Legados da peste (223):
A peste ainda não partiu
e a selvajaria vem recordar
que somos o nosso próprio algoz.
O oráculo dos feiticeiros
atira o dia solitário
para o templo sem morada
e os escombros do futuro
juram que não juram nada
depois de esconjurados em devido tempo.
Se o fingimento
é arrematado à indulgência
não cuidem os prometidos escansões
de dirimir os medos
com poções enfeitadas pelos magos;
um destes dias
será o tira-teimas
e não é de esperar
que os teimosos saldem o pleito
com a coroa atribuída aos laureados.
Quanto ao demais
ficava deleitado na plateia
a assistir
ao cortejo dos adivinhadores do reino
vendo-os assoberbados
a tirar as bainhas do futuro
a partir de seus puídos oráculos.
[Crónicas do vírus, CMXI]
Legados da peste (222):
Liberdade sitiada
por os rostos
ainda não desalfandegados
de seus açaimes.
O sangue
à porta subindo
e toda a lama
portadora de almas
ou as almas
abraseadas pelo medo
extintas pelo sangue
combustível.
[Crónicas do vírus, CMX]
Legados da peste (221):
Quem fica a cuidar
das cicatrizes
da desliberdade?