A algaraviada
não precisa de sol
só precisa
de um módico
de sangue em ebulição.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A algaraviada
não precisa de sol
só precisa
de um módico
de sangue em ebulição.
Epifania no fundo do prato
sável ao engano
escabeche sem cebola “adstringente”
os talheres trocados
mas não para os canhotos
que somos contra discriminações
e deus
se existisse
(oh! lugar-comum
tão banal
que as próprias banalidades
se esgotam
num esgoto de banalidades)
apedrejam os mastins da discriminação
que ganhou lugar de moda
a discriminação positiva
positiva
palavra benquista
louvor a prazo
crédito sem juros
contra os agiotas que açambarcam as almas
ingénuas
dir-se-ia
das que acreditam em deus
não fosse esta arrogância
um auto-de-fé contra quem a vocifera
ou
epifania do avesso
como se os hereges
e os ateus
(não necessariamente por esta ordem)
se perdessem no pântano das suas aleivosias
e deus
afinal
não se tivesse perdido
na transição.
Se o trinta e um
é apenas trinta e um,
por que há de ser
um trinta-e-um?
Penso rápido
no penso rápido
que o rápido dispenso
no rápido dá que pensar.
Um bocado de carvão
atirado à patibular infância:
dizemos sempre
que ficou tanto por dizer
e ninguém se acusa
na cacofonia insurgente,
o chilrear doentio de falas sobrepostas.
Um bocado
talvez
de silêncio:
a bonomia que se congraça
nas entrelinhas da ausência:
ao silêncio,
a sua suserania
que de palavras banais
estamos cheios.
Perguntaram
o que queria ser
quando tivesse idade
para uma profissão:
alimentador de sonhos,
respondeu.
Seguimos pelas avenidas vãs
aquelas onde a poeira sente-se nas veias
e as palavras desassossegam os anjos.
Vamos às avenidas malsãs
aquelas onde a poesia é insulto
e a fala se polui com deuses.
Saímos das avenidas repletas
aquelas em que somos corpos estranhos
e ao exílio pedimos franquia.
Se os corpos fossem mapas
seríamos atlas sedentos
danças sem paradeiro
um luar à espera de vez.
[Sigur Rós, “Fjögur Piano]
A pedra que repousa no miradouro
dita a sentença boreal
a armadura desfeita
que revela a nudez,
simplicidade sem cilada
o mosto inteiro
que fala na vez da voz gongórica
o rosto incindível
que não tergiversa diante dos lobos
matéria fundida de ouro e lágrimas
os versos como âncora certificada
no improvável vinho servido em xisto.
Os socalcos descem às mãos
e das estrofes empunhadas sobra o mel
o dorso desimpedido
contra os embaraços de mastins por aí,
avulsos e estultos.
Não capitularemos
– diz-se em coro
desembainhando a alvura
que caia a pele, os ossos, o corpo inteiro,
a garantia perene das coisas
na sua verosimilhança insuspeita.
Somos os esteios que não precisam de esteios
e ao espelho não contamos gramas de pudor
nem perfilhamos sermões não encomendados.
O indulto
abate-se sobre o dia finito
a jeito da indigência,
o princípio geral de tudo
a confusão entre arbustos baldios
e folhagem extravagante da selva.
Dizia-se:
é por estas desconclusões
que se arremata a desconfiança:
uns olham para os outros
de pé atrás
(caso, único,
que os que partem atrás
estão em vantagem)
para serem retribuídos
com a mesma indiferença.
Ao menos,
não há assimetrias
no escrutínio de um mínimo denominador comum.
O indulto
diz mais de quem perdoa
do que do perdão
(o perdoado é o que menos interessava).
Esta é a terra de ninguém
em que o indultado desconfia da piedade
e o indultor pratica generosidade
de que é usufrutuário.
Os bons espíritos
de tanta bondade que a si convocam
nunca se descomprometeram dos padrões válidos:
a bondade é um reflexivo ato,
no inconfessável pressentimento
das indulgências provadas
por mercê da bondade.
Dava o corpo ao manifesto
sem ser importar se o manifesto
estava interessado
no corpo dado.
Corpos
como mares,
imensos,
e imensas são as marés
que derruem a sua sede.
Ficam à mercê das mãos
que os esculpem
sem remorsos
enquanto a tabuada do tempo
se pressente
imóvel
como se a dança fosse uma gramática
e a coreografia
a sua tradução.
Se os pesares
pesarem no vento cortante
e formos o chão em que se deitam
não se espere
uma centelha do dia consecutivo
a diligência sobre nós como dádiva
que nada é perene
e os danos de que somos culpados
interrompem o mel que cicia de longe.
Um canto do corpo
a pele arrancada ao sono
pauta que se adia no luar fundente
e um sinal
o travo doce de uma boca
à espera de um lugar
do vulcão que não se demora.
Em luz
insinuada
entre sombras
o exorcismo
o futuro devolvido
ao lugar distante.
A matéria
diadema embaciado
dia constante nas veias
ocaso
juro sem regra
a jura contumaz.
O rio
dobrado sobre si
sol hirsuto do estio
o açúcar nas uvas
o vinho promitente
à sombra do descanso
as mãos vincadas
suadas
à espera do tempo.
O xisto
ao acaso atapetando o chão
orvalho nascente
e o rio
profundamente longe
contagiando
o perfume das uvas
o som do sangue
o troar do anoitecer
vago
o murmurar vago
e sobrante.
A luz
abraçada ao dia
dando ramos às árvores
tirando frutos às bocas
as bocas que se saciam
umas às outras
arrancam às raízes fundas
o mosto primacial
o magma centrípeto.