[Crónicas do vírus, CCCXC]
A cortina
teimosamente vertida
às costas dos humanamente
frágeis.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]
A dissimulação
deixou de ser perseguida
pelos que pastoreiam
os bons costumes.
Não é
a erma vindima
o magma furtivo
o emblema da ira
a seráfica encenação.
Não é
o adiamento provisório
as colcheias desamestradas
o vínculo sem furor
os degraus sem destino.
Não é
a compensação sem paradeiro
a eira banal
o verbo defenestrado
o rosto desfardado.
Não é
o tiro avulso
o penhor prometido
a pulsão meteórica
a justaposição de termos.
Não é
o não saber na casa
o não despojar o medo
o não fugir sem delação
o não arrumar as candeias gastas.
Não é
desaproveitar o ontem
reter a lágrima no peito
insultar o próprio nome
legar um nada cheio de tudo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]
Tão bem lançados íamos
veio este freio luciferino
trazer o mosto do retrocesso.
Que papel regido
serve ao obstáculo penhor?
As juras avessam o lugar
em servis comendas
que não têm cabimento.
Às manhãs consentidas
devolve-se a argamassa
o solene filamento que atravessa
o sangue apurado.
Se ao menos
a chuva viesse temporã
e as matilhas não angariassem
o medo
a maré seria sementeira
da filigrana avivada nos dedos.
O que sabemos
das entrelinhas:
os nós invisíveis
que azedam a boca
e nós,
seus possíveis hermeneutas,
um vesúvio inteiro
a aguardar por exploração.
O que tiramos
das entrelinhas:
o mosto indecifrável
semântica partida nas vírgulas
como se fosse fratura exposta
e do osso se visse apenas
o gesso.
O que devemos
às entrelinhas:
o cofre forte da alma
o penteado maiêutico da palavra
a recusa do lugar-comum
no lugar reinventado
onde reinventadas
se lobrigam as palavras.
Por dentro
das entrelinhas.
Afundo,
perdido,
o fundo perdido
antes que,
no fundo,
perdido seja o fundo
nos fundilhos
de um outro qualquer.
O fundo pedido
somado à funda tutelar
fundeia na pedra perdida
sem fundo à vista
na perdição da avareza
no sem fundo do pedinte perdido.
O fundo
perdido
em fundo,
pano de fundo,
autópsia de um caso
perdido.
Pois
aos casos em perdição
amestra-se o fundo sem fundo
perdido em tangente
com os de perdida linhagem.
Acerca da polémica:
estava divinal
o vinho servido
e os preparos amesendados
assim como a companhia.
Falou-se
da imprevisibilidade
da contingência em auge
contra os epílogos sedutores
da arte reduzida a um escol
dos beneplácitos dos serventuários
e de como estes se tornam
invisíveis suseranos
(oh! virtudes do regime magnânimo).
E sobre a polémica:
divagamos sob o peso da maresia
até que o ocaso abriu as pestanas
e sob as flores sentadas à mesa
fizemos um poema.
[Crónicas do vírus, CCCLXXVII]
Na enseada da impaciência
onde se esgotaram
os sonhos de que perdemos memória.
Na charneca dos provérbios
mando calafetar o país
só para perceber
se consigo descolonizar
o lugar-comum.
No provérbio desalmado
extingue-se
a alma do dizedor
desfeita a um xis com valor de zero.
Falta saber
se no país dos provérbios
a alcatifa é medida bastante
para balbuciar os versos,
recanto existencial
onde úbere tem provimento.
Na charneira entre duas fronteiras
abonado o inverosímil esteta
no esgotamento dos provérbios.
Até que sobre
a nova gramática
que dispensa bandeira a tiracolo.
[Crónicas do vírus, CCCLXXII]
(Desaprendizagem)
Deixámos
de saber fazer
com o que está
a acontecer?
Mandatário das privações
cozinhava em lume brando
a branda água do deserto
e sentia-se o coração do oásis
um feixe de luz
nas entrelinhas da aridez.
Povoava as arestas insubmissas.
Talvez
um eufemismo para outra coisa
à falta de bravura para galvanizar o verbo
e fraturar o marasmo da pudicícia.
Afinal
as privações eram pretexto.
Uma lança furtiva
na argamassa dos óbices
o contraditório do antagonismo
surfando
em velas arrevesadas que se estreitavam
contra o vento estrepitoso.
A vau
atravessava a intempérie
e dava-se o milagre
de entrar no cais e seca estar a roupa.
Falava-se de um entretenimento:
fingia-se,
fingia-se a rodos
e até o fingimento entrava na aura
do fingimento,
sobretudo aos domingos.
Que se desembaraçassem os lugares-comuns
os oitentas em metamorfose de oitos
a verbena ao luar a seguir à alvorada
o patine em letra morta
à espera de preenchimento dos espaços
a coisa iletrada enxertada ao balcão.
Que fujam para os japões
os funcionários diligentes
(que odeiam que lhes chamem
colaboradores)
e lá ensaquem,
com a mestria dos puros,
a melancolia sem geografia a preceito.
Às vezes
o inventário começa
nos limites que somos.
Imprevisível
o ocaso antecipa-se numa data
indeterminada.
De que adianta
assobiar para o ar
se o ar já está perdido?
“Um jackpot”,
dizias.
Pelo meio
o nevoeiro assobiava
adiando a manhã
enquanto no banco do jardim
as esperas dançavam nos rostos
melancólicos.
Tu não esperavas:
teu era o amanhã
que nunca deixavas chegar a sê-lo.
“Se tivesse conta-quilómetros
andava sempre em excesso de velocidade”,
rasuravas as costuras do tempo poltrão
vertendo nele a tua bravura
um sentido próprio de boémia
que fazia do tempo uma raridade.
(Outros disso diriam
ser a extinção da lucidez.)
“Um jackpot”,
dizias:
e combinavas com os tutores do amanhã
a aposta de como o contarias,
amanhã,
ao ontem desapalavrado.
“Para mim
os minutos têm
mesmo
sessenta segundos”.
Azedou
o dia azedo
e no seu avesso
tirámos à sorte uma cor
a sintaxe da heurística manhã
derramando o verbo
cingindo o rosto
e no seu lugar
o peito pleno
amou.
Desenho o perímetro da costa
com os dedos entrelaçados
ao vento de estibordo.
Contenho os limites da paisagem
no rebordo das mãos.
O vento alisa,
superficialmente,
o cabelo testemunha.
Não sei das artes de navegar.
Alguém cuida da função
por mim.
Não lhe sei do rosto
nem sei se as mãos são confiáveis.
Não importa.
Suspeito que o mapa
sairá paradigmático
um portentoso achado na cartografia
enquanto a da alma se treslê
em figuras disformes
que se enxertam numa banda desenhada
enquanto estrofes sem vinagre
se derramam nas páginas
que só existem nas varandas do pensamento.
Um sobressalto bule com o barco
e mal me disponho para a simetria.
Oxalá não fosse a validade das almas
o altar menosprezado
onde nem as marés se arpoam.
De mim dou o possível
que aos da argamassa da ufania
deixo o díodo do impossível.
De mim
há de vir ao mundo
a maresia retratada nos mapas
cinzelados por meus dedos desaprisionados.
[Crónicas do vírus, CCCLXVII]
A cidade despida
num domingo vespertino;
ou: o oráculo do apocalipse.
Here is where
the lie lies
whereas
all lies lie
amongst
the lies laying
under the mist
of a broad lie that lies
against the odds.
O soalho suado
recebe os corpos em sede;
deles fará sua sede
no exato momento frondoso
o campo das framboesas
que fermentam na chuva diurna.
Não posso saber do crepúsculo
que em seu sal desmaia;
habitaria nas levadas bucólicas
se a lua não se escondesse do dia
e as palmas das mãos sangrassem
a urze desmaiada.
Os óbitos vêm no fundo de página.
Não se encomendam elegias
e os oradores oficiais do reino
já andam à procura de ofício.
Fossem prematuros
os demónios encastrados no trivial remoço:
sob o verniz dos notáveis
está o seu incenso boçal
no singular desprezo pelos pergaminhos
e os cantos não canoros que destoam.
Ah, se só soubesse nadar
no improvável desgosto das marés,
se soubesse desenhar os contornos da maresia
se ao menos fosse a minha melhor companhia
não precisava de tirar os dados à sorte
só para não calhar o azar.
Demando ao sangue domado
a contradição de termos
o rol das personagens afastadas
o hidrogénio que alisa o dia
as verbenas de viúvos atiçados
e todo o falatório gratuito
no sopesar das invetivas que se desarrumam.
Não interessam as competições bolorentas
as juras feitas na véspera de Baco
os gatos que uns querem como cães
os dentes à mostra no sorriso emaciado.
Devolvam as cartas viáveis
ao tabuleiro onde dançam as presas
façam o concurso dos estetas
na comparação dos paradoxos
sim senhor.
Bebo o vinho de ontem
e urdo conspirações olímpicas
só por desporto
só porque sim.
Senhor.
Desenganem-se os esperançados de última hora:
não é desse senhor que faz constar
a prece sem métrica admitida.
Os olhos cansados
não se arrumam no sono.
Continuam a remar
teimosamente
nos mares imensos
que se atravessam num espaço de um sono.
A alma caótica
trato-a
com a morfina dos livros
a coreografia dos anjos adiados
a pornográfica demanda dos quesitos
um perfume inadiável do querer
os palcos abertos pelos dedos insaciáveis.
A alma caótica
não a quero curada:
como poderia
com a curada alma
deitar mão
a todos aqueles prazeres
sem preço nem mercado?
As ruas amargas
com suas vozes puídas
como decadentes estão as mãos
viradas do avesso pela severidade
os campos de sal
ardendo sob os auspícios do sol.
Um bocejo
a garganta à mostra
como se o beneplácito assomasse
ao inferno
e dele se soubesse
por interposta entidade
as letras em ebulição a destempo.
A pistola
doada à ferrugem
angústia emancipada do coldre
e os vetustos cowboys
esquecidos na vespertina alusão
ao atlas arcaico.
As máscaras
contrariados açaimes
na reinvenção do tempo e do modo
pesadelo vivo na varanda dos viventes
castração
e
ao mesmo tempo
contrafeita báscula da incolumidade.
[Crónicas do vírus, CCCLIX]
Já não é só poesia
ou filme de ficção:
a noite foi colonizada
pela ausência.
Não é a matilha
que comanda o Norte
é, que se saiba, a anilha
a desencomendar a morte.
Podes desaprovar a pandilha
antes que ela do chá aborte
e devolvê-la à erma ilha
onde o litigar tem um corte.
Sobra um rosto na vasilha
e no muro uma palavra em transporte
para então silenciarmos a cavilha
e às mãos darmos aquela cor forte.
E se nos olhos da filha
alcanças um grande porte
não feches a escotilha
abraça essa grande sorte.
Um Calígula
disfarçado de rosto
estampado no peito dos jovens
de herói fazendo de conta
apascenta a maré de ilusões.
Um Calígula
que se desce à praia
mouchão de verbo pantanoso
cancioneiro que paredes envenena
nos sonhos perdidos
de adolescentes.
Um dia
serei dança
no nevoeiro da floresta.
Um dia
serei poema
em aberta maresia.
Um dia
serei arguto
em vinho eflúvio.
Um dia
serei manhã
à espera de seres noite.
Um dia
serei espada
a trespassar o desejo.
Um dia
serei voz
no segredo da tua fala.
Um dia
serei mãos
em desatada corda.
Um dia
serei vetusto
em teu invulnerável regaço.
Um dia
não serei morte
no penhor do teu imorredoiro rosto.
[Crónicas do vírus, CCCLXI]
Somos remidos do parentesco
estranhos uns dos outros
ou imersos no seu esquecimento.
[Crónicas do vírus, CCCLX]
Quem nos protege
de quem nos quer
proteger?
(Inspirado numa crónica de António Roma Torres no Público, e adaptado às circunstâncias)
Um esboço de ideia
interino
a dádiva jogada contra a dúvida
no quartel destronado
por pajens arrependidos.
As costuras da ideia
levantam-se
de um chão enlodaçado
dão vivas à janela que é um peito
descarnado.
Já vai o tempo
em que destemidos figurantes do verbo
se agigantavam
entre o código amuralhado
e a apatia semântica
estilhaçando-o
em víveres de indiferença.
Não se cobre já a nostalgia
que os relógios ainda não estão a destempo.
As juras juram a juras precedentes
que não voltarão a jurar.
É o retrato ideal
da humanidade,
o erro grosseiro
escapando entre os dedos
à medida
que uma certa estultícia
retira do passado o seu paradeiro.
Código morse:
recriam a linguagem
os anões apoderados
sob o olhar tétrico
das fadistas mudas
deserdadas de estrofes.
Código morse:
ciciam as viúvas
desoladamente desamparadas
nos murais onde se acertam as lágrimas
alijadas de seus consortes
em juras eternas
de amores nunca acontecidos.
Do código morse
sobram os vestígios de sons
uma remota eloquência em hipótese
a linguagem por cifrar.
Dei a fala ao gatilho
e ele empunhou miosótis
as suas pétalas
um poema contra
a decadência.
É o amanhã!
(Alguém exclamou)
Está a morder as bainhas
do todo-impoderoso saber
os destroços embainhados
no projeto de passado
sem as juras por inventariar
e os projetos por sair do estirador,
para não falhar.