11.1.16

A sete chaves

A neblina temporã
mistura-se com os olhos estremunhados.
O tempo levanta-se devagar.
Devagar
como as gotas do orvalho
que pendem da janela.
Pudera uma moldura da memória
guardar este sortilégio.
Pudera que as palavras conseguissem
emoldurar a quimera.
Os violinos sopram ao longe
sussurram às veias a inteireza de nós.
E nós
tomamos por moldura
a janela de onde temos o mar por nosso.
Somos gotas de orvalho
que se deitam no oceano majestoso.
Vamos ao mar
e recolhemos nas mãos os seixos vistosos
as portas douradas
o nutriente vitaminado
os beijos-alimento.
Sabemos que as ondas iracundas
acalmam o sangue fervente,
ao sermos tutelados pelo mar imenso.
É como se nos deitássemos no mar
e nele houvesse
em todas as suas moléculas
um pedaço de nós.
Um pedaço maximizado de nós.
Para sermos colonizadores do mar
e dele bebermos as doces gotas
do nevoeiro matinal.
Diremos aos navios e seus marinheiros
aos capitães de todas as embarcações
aos apoderados das ondas
aos que se ajoelham diante da grandeza do mar
ou apenas à gente indiferente;
diremos:
que somos ímpares
depositários de uma pureza singular
timoneiros do futuro
olhos de água por onde os outros olhos vêm
uma força sem tréguas
poetas mesmo sem palavras
enlaçados no tempo inteiro
na evocação de um tempo pretérito
que decretamos nosso
e
deuses de nós mesmos.
Diremos:
cuidar das destemperanças
erguer alvoradas despejadas
dançar coreografias desassisadas
espreitar nas fechaduras do tempo
deixar os corpos na sua linguagem
limpar as lágrimas que coalham os olhos
enquanto as divindades distraídas
nos deixam ser as nossas próprias divindades.
Deuses de nós mesmos.
É isso que há em nós
é isso que bebemos das palavras
que deitamos no fogo.
É isso que há,
deuses-nós,
nas funduras de nós que se alinham
nas fachadas do tempo.

8.1.16

Orquestra

Os objetos animados.
Cores.
Uma crisálida de palavras.
A clepsidra dá as horas.
A voz radiofónica proclama as novas
(as boas, as más e as outras).
Não é em vão que as mãos se dão.
E, ainda assim, é o olhar que diz tudo.
Substitui as palavras.
Que o olhar não se esconda
atrás de um biombo.

Os ângulos diferentes.
E os objetos inanimados.
Palcos onde se movem
enquanto nuvens esparsas
dançam acima do olhar.
As cores transfiguradas ornamentam o cenário.
Os dedos tecem-se entre as texturas
entrelaçam-se no calor estival dos corpos.
As mãos
as mãos suadas
dizem o que as palavras entretecem.
Os biombos são espinhos pétreos
obra terçada contra a modéstia.
Por isso,
as mãos levantam-se
em preces pagãs que convocam
o fado atilado.
Exoneradas as trevas
mercê dos bons ofícios da purificação.

Os objetos todos
deitados numa pauta
em forma de notas musicais.
Primeiro, rarefeitas.
Depois,
em crescendo
numa orgia de sons que povoam
arrebatamento.
Um piano imaginado.
E um pianista de circunstância
que salta da audiência e oferece préstimos.
A intempérie
esmaga-se contra o parapeito das lágrimas
mistura-se com elas.
E elas
dissolvidas na chuva abundante
encarecem as palavras volúveis.
Pode ser
que as mãos suadas
acabem em volúpia.
E os corpos abraseados
façam subir as montanhas
e os rios caudalosos,
até se deporem no púlpito do deleite.

Na televisão
correm imagens disformes.
Enquanto a penumbra derrota o dia
e os corpos cansados tirocinam vagar
há por todo o lado
rostos sorridentes
rostos sombrios
mãos frias
corpos arqueados
gente triste e gente alegre
e os gatos abrigados que ensinam
o vagar.
Os objetos coreografados pela melodia
deslizam com amenidade;
dir-se-ia
não deixam rasto no chão da sala.
Os olhos prostrados assistem.
Digerem as imagens dos objetos em sua dança
e da dança dos corpos adestrados pela volúpia.

À noite
quando o sono tiver lugar
já nada disto tem império.

7.1.16

Diabos escondidos

Que o diabo tem cauda afiada
e tez vermelha
não é motivo de importunação.
Os demónios assomam
quando menos contamos
e nas formas menos previstas.
Não haja pânico.
Em cada um de nós
habita um demónio
– talvez não rabudo,
talvez não ruborizado na epiderme,
talvez, até, não maldoso.
A páginas tantas
saciamos a comiseração dos diabos
dos que há em potência
e, por contágio,
dos que exercem a inteiro tempo.
No fim da página
as diatribes merecem nova semântica:
não são atos travessos
nem atavismos
malsinados por moralistas conservadores;
são só
provocações mordazes.

E
assim como assim:
quem nunca se sentiu inteiro
ao decair para demónio?

5.1.16

Juramento

Juras maiores
juras menores
e as que deixam de contar.
Juras embelezadas pelo gelo quente.
Juras montadas no dorso de um corcel.
Juras liquefeitas.
Juras debruadas a ouro.
Juras que as juras são bastiões
como juras-esteios que seguram as peias.
Juras que deixarás as lágrimas em vão.
Juras malsãs.
Juras com adiamento aprazado
(e as com prazo adiado).
Mas juras
que continuas a jurar
mesmo que juras ninguém tem peça.
As juras é que pedem meças
aos ajuramentados tocadores de violino
de onde soam as notas em falsete.
A jura que mais importava
continua por ajuramentar:
jura que deixas de jurar
     (não te tomem pela mitómana faceta).

4.1.16

Intenções

Dei de mim
a soberania de tudo.
As raízes fundas
embebidas nas sementes ávidas
ditaram o chamamento.
Não sei se dei
soberania bastante;
sei,
menos ainda,
se a soberania de mim arrancada
teve provimento.
Talvez
nem sequer tenha ideia
(uma ideia aproximada, sequer)
do trato da soberania.

2.1.16

Fermento

Um rosto devolve cinzas,
ruínas que escondem decadência.
Um palco
as sombras todas como pesares.
Mas um rosto decaído
não bolça só melancolia;
esconde os artefactos da manhã
onde estão alinhadas as coisas
que importam. 
Pois um palco
por mais cinzas que sejam seu chão
é a armadura dos esteios da grandeza.
Um rosto tem múltiplos rostos
nas entrelinhas.
Como os palcos
e os estados de alma que neles
se ensaiam.

23.12.15

Alvíssaras

Olhos de gato
atiram esmeraldas pela janela fora
enquanto duendes assaltam o sono.
Um barítono dá consigo sem voz
o que lhe vale é ser uma voz
na imensidão do coro.
O arroz quer-se malandro
não fosse o molho ausente
águas-furtadas do inviável repasto.
Um deus sai do galho da árvore centenária
espreguiça-se ao sol madraço
sob protesto dos seus iguais, ainda escondidos.

Os olhos do gato
ciciam as estrofes sem medo.
Os duendes não contam nas contas
deste rosário.
O barítono acorda lavado no pesadelo
testa a voz para testar o pesadelo.
O coro,
o imenso coro,
dorme um justo sono.
O arroz submerso
sente os pés das operárias
que andam na sua apanha.
O repasto
não se sabe quando terá calendário.
O deus impertinente recebeu admoestação
do coletivo dos deuses outros.
A árvore centenária
não deu conta de nada.

Os faróis da coalescência
figuram entre os mais citados.
Querem para si
toda a luz
a diurna e a noturna.
E deixam aos demais
a escuridão
(tão temida por Göthe).

22.12.15

Da chuva em terra seca

O cheiro a terra molhada
entra pela língua.
Remexe os sentidos
que rumorejam,
em alvoroço.
Meto as mãos na terra
levo os dedos ao nariz,
como se fosse escanção
na diligência da imensidão.
Os dedos sujos
perfumam as árvores tingidas
pelas imberbes gotas de chuva.

Húmidos,
atiram incenso
contra as paredes de papel.

Os braços robustos
decaem na prostração dos sentidos.
Sem saberem onde tomar lugar.
E o odor regressa ao sortilégio
da fresca terra molhada.

21.12.15

Maré falsa

Julgava
que as grossas ondas
traziam muito mar.
Afinal
a espuma abundante
deposta nas areias molhadas
é o desengano.
O mar gigante
filho de uma tempestade em ocaso
não é revólver que atemoriza.
Fica bem
a caiar a paisagem.

20.12.15

Almanaque em branco


Tinha uma rosácea esculpida
no peito aberto.
Era um couraçado
e bebia o sal dos mares
enquanto devolvia árvores
às florestas.
Outras vezes
era um nenúfar principiante
murmurando entre as águas
pardas.
Era como se soubesse tudo
na penumbra das incertezas.
No fim de contas,
apenas tirava a medida
do desconhecimento.

17.12.15

Elipses

As pedras solitárias
são como garfos no meio de uma mesa
abandonada.
As pedras pontiagudas
punhais celestes que tiram o sono
do asfalto.
As pedras desordenadas
corpos férteis, miradouros
estremunhados.
As pedras chãs
comportam-se como lordes ingleses
em pecaminosos desvarios.
Vejo as pedras voadoras
os cilindros quentes enterrados no jardim
as nuvens acobreadas
a vozearia de cantores que se acham cantores
e mais pedras
esventradas ou ancestralmente intactas
e o granulado que delas se solta
a compor as sobrancelhas do ancião.

As pedras
têm muito a dizer.

(Houvesse quem lhes perguntasse.)

14.12.15

Pós-qualquer-coisa

Enquanto lá fora
as folhas ganham vida
despojadas no chão.
Enquanto lá fora
a chuva agride a relva
e o rio ganha volúpia.
Enquanto lá fora
os reis habituais reinarem
na também habitual sobranceria.
Enquanto lá fora
se escondem na consciência
os sótãos da expiação.
Enquanto lá fora
as nuvens correm céleres
na exata medida da preguiça.
Enquanto lá fora
as palavras entoadas
forem pregões vetustos.
Enquanto lá fora
os joelhos tiritam de frio
por o medo subir à boca de cena.

E
enquanto lá fora
houver três dentes de tristeza
lágrimas furtivas de desencanto
punhais espetados à mercê do desamor
cães vadios destratados
velhos e menos velhos corroídos pela solidão
casas lúgubres medonhamente húmidas
o odor fétido das fábricas
ideias comidas pela desonestidade
sapatos rotos que deixam entrar a chuva
rumores transfigurados em certezas
ruas pútridas de gente
e gente órfã de si mesma:
eu encontro refúgio cá dentro
onde se acastelam miragens
doces enovelamentos de ideias por provar
palavras que apetecerem
e sempre,
sempre,
uma desdança sem gente por perto.