14.9.16

Diamante

Em tempos
uma lágrima inspirada
em rosto impassível:
daria fortunas para ser herói.

Mas esses eram tempos
em que não sabia nada
julgando muito ser o meu saber.

Hoje
desautorizo os campos férteis
de onde medram os saberes.
Prefiro as interrogações
colocar pontos de interrogação
em finais de frase
desenhar perguntas sem a ousadia
das respostas
beber dos cálices de onde escorre,
em forma de lágrima,
o seu suor lento.

Ainda não sei
se é isto o saber.

13.9.16

Papel timbrado

I
Arrumados os papéis
que levantaram voo na intempérie
com a autorização de uma distração
que deixou aberta uma janela.
As lajes molhadas soltam um odor quente
e o musgo vertido nas lajes
não tem vastidão no molhado que se deitou.
Um pequeno papel
ficou preso à pedra molhada.
De tanta a chuva que enegreceu o dia
o papel depressa se dissolveu
na indiferença das coisas que perecem.

II
A máquina tosse um fumo intermitente;
o engenheiro consulta o manual de instruções
enquanto o operário ensaia hipóteses:
sugere que a tosse é da ferrugem
o selo da vetusta idade da pobre máquina.
O engenheiro contraria o operário,
sem disfarçar irritação,
à medida que entreolha as páginas do manual
e continua sem saber o que elas ensinam:
o manual estava escrito numa língua arrevesada.

III
O meteorologista advertia:
uma borrasca está para chegar.
Avisos seguintes consequentes com o alarme:
as pessoas deviam fazer como o avestruz
(que esconde a cabeça debaixo do chão)
os marinheiros que olvidassem os mares
os boémios fossem dormir mais cedo
os homens que rondam a noite de perto
abriguem-se do medonho temporal
os homens da terra cuidem das estufas
os pirómanos adiem-se para o estio vindouro.
Quando veio o dia seguinte
todos os cuidados foram em vão
– a borrasca aportara a outras latitudes
e ao homem do tempo descobriram
que era um trapaceiro na matemática.

IV
Se for preciso
se for preciso,
murmurava a mulher jovem
ao ouvido de ninguém.
Cambaleava
enquanto outras vozes suplicavam
uma revoada de nomes.
A mulher não olhava os rostos à volta
rodava sobre a sua cabeça
e atirava os braços ao céu
espetados na vertical do corpo disforme
e gritava,
com voz de ator de teatro
(que dispensa microfones para colocar a voz)
que ninguém fazia tão diligente dança da chuva.

V
O rapaz não sabia a resposta.
Não sabia que horas eram.
Se lhe perguntassem,
não sabia do paradeiro de Aveiro.
Não sabia muitas coisas, o rapaz:
a cor da bandeira da Letónia
o órgão digestivo do tubarão martelo
o nome do subsecretário de Estado das pescas
a fórmula do medicamento para as cefaleias
o aroma do sexo
a trindade que lhe seria subtraída
(quando calhasse)
a raça do cão da vizinha do quarto esquerdo
o nome do pai.
Era o rapaz mais esclarecido da escola.

VI
Palavras ditas como arestas vivas
abusos continuados sobre quem as ouvia
numa incontinência soez que não cabe
num silêncio.
E ficaria melhor fatiota, o silêncio,
de frente para tamanho néscio.
Logicamente
têm os néscios seu lugar
na ordem composta no tabuleiro.
Fosse o contrário,
quem podia determinar 
a identidade de um néscio?
Quem poderia habitar nos seus antípodas?

VII
No interior do quarto o aquecedor crepita.
Deve estar um frio de tiritar os dentes.
O homem deita-se sozinho
aconchega o corpo decadente
na dose considerável de cobertores.
Já não se lembra de outra companhia.
O frio não incomoda
nem tanto a solidão.
O stock de conhaque é farto
e o resto deixou de importar.

VIII
De que era feito o gelado?
O fabricante tinha pergaminhos honestos?
Mentiria nas letras microscópicas descrevendo
os ingredientes do gelado?
Os operários lavam as mãos
antes de fabricarem gelados?
Tiveram uma noite bem dormida?
Algum deles foi de férias para as termas?
Comem gelados à sobremesa?
Deixam que a descendência coma gelados?

IX
Dias inteiros sem saber da chave do cofre.
Dias inteiros sem saber o que continha o cofre.
Dias inteiros sem saber o que era um cofre.
Dias inteiros com o tesouro num bolso.
Dias inteiros enlaçada às lágrimas.
Dias inteiros
na opereta que era a sombra da sombra da vida.
Dias inteiros de leque em riste
em pose fidalga
escondendo o lado oculto
(o de mulher fácil).

X
Montanhas sem pedra
praias sem eco
eruditos sem óculos
estroinas sem licor
sacerdotes sem pudor
ascetas sem estética
lagos sem nenúfares
teatros sem solenidade
varandas sem bainhas
arenas sem suor
velhos sem negrume
batistérios sem raízes
loucos sem estrias
cães sem travões
professores sem voz
crianças sem cheiro
sabores sem remorsos
amores sem lugar
fatiotas sem corpo
heróis sem proezas
homens sem causas
juízes sem juízo.

XI
Noves fora, nada.
Metam-se aspas nas palavras
sequem-nas por dentro
antes que se precipitem sobre os ingénuos.
Juntem-se as cinzas depostas
até se intuir sua origem estática,
antes de bolores de atalaia tomarem,
como colónia,
as paredes frias onde descansam as mãos.
Até que o pano final desça sobre o palco
e os atores nos mandem para casa.

12.9.16

#69

Dirão
os homens afogados em desgraça
que a falta de graça 
provém dos beijos adiados
ou de serem eremitas sem remédio?

O lobo senescente

O lobo ferido vacila.
Lambe incessantemente a ferida na pata
acoitado num ermo fundo
para não se tornar presa.
Não dorme há algumas noites.
Tem tempo para evocar caçadas de antanho
quando era,
entre os da matilha,
o mais desembaraçado
o mais diligente.
O inchaço na pata não recua
e o lobo sente fraquejar.
Caiu no sono.
Sonhou que já não estava ferido
e que tudo se recompusera
nas suas formas originais.
Mas era só um sonho.
O derradeiro.

11.9.16

Simplicidade

Cai uma vez
por dia.
(Não mais.)
Deixa vir à roupa a aspereza do chão.
Sai uma vez
ao calhas.
(Talvez.)
Respira o orvalho no tirocínio da lua.
Vai uma vez
sob anonimato.
(Sem medo.)
Derrota as básculas metálicas que adejam.
Diz uma vez
uma vez só.
(Sem o entardecer.)
Antes que seque a voz.

10.9.16

#68

Só uma vela acesa
o quarto sozinho
cinzas escorrem da parede
no mosto do silêncio, 
um diamante. 

Meia-noite

Sombras diurnas fervem no chão
três horas antes do ocaso.
Sombras a destempo
ou apenas o relento a tomar conta do olhar
tirando água de dentro de um poço frondoso.
Atira-se o corpo contra as ondas
e de dentro do mar vêm polvos agarrados
seixos perdidos na maré
uma garrafa romba enredada em algas.
O âmbar do céu conta histórias perdidas
enredos impensáveis
ecoando no travejamento da casa desocupada.
Por favor
(reza a súplica)
por favor
desembrulha o céu cheio de veias podres
deixa-o medrar
nos abjetos estorvos encaminhados
deixa
os abjetos estorvos
fadados ao descaminho.
Ou podem as viúvas tristonhas sair à rua
com gatos adormecidos a tiracolo
preces repetidas, monocórdicas
vozes condoídas pela desgraça imorredoira
extasiar diademas demoníacos pressagiados.
Não quero ser notário dos inditosos oráculos
ou coveiro das representações da desgraça.
Só quero um banco de jardim
o jardim sem gente
a noite estremunhada
vinho doce
beijos sem dor
árvores como pano de fundo
ao fundo do meu fundo sem fundo.
Que o sangue derramado não seja o meu.
No miradouro escondido da noite
enquanto as candeias cantam seus reparos
tiro as algemas do olhar
e sinto um tremor de terra por dentro
ondas indomáveis trepando o cais
dentes mordazes ferrados na carne
destemidos versos na orla do dia fervente.
Para dar de mim
o todo em que me decomponho
sem vírgulas nem pesares
inteiro
corpóreo
sagaz
o peito farto à espera do que houver
ancoradouro.

9.9.16

#67

Que a pressa toda
somada ao tridente arcaico
detido por um demónio sem dentes
se vire do avesso
e sejam terçados os cuidados a destempo. 

Nada

Perdia o saber ao saber
sem saber ao certo que saber seria.
Mas sem saber
o que o saber sequer seria
como podia saber
que perdia o saber ao saber?
Soube então que nada saberia.
Conclusão tão avisada
(em pernalta altivez)
uma negação de termos comportava:
para essa conclusão atirar para o estirador
teria de saber que nada saberia;
o que já incluiria um módico de saber.

8.9.16

Injustiça

Tesouro talvez putrefacto
um achado na orla do cipreste único.

Revistada a arca em decomposição
o achado de um tesouro intacto.

O cipreste doou a sombra-escudo
e o exato grau de humidade
como se as raízes escondidas no tesouro
macerassem em formol.

Hoje
ergue-se lápide ao achamento do tesouro
(e uma nação inteira extasia-se na abastança).
Ninguém evocou as proezas do cipreste.

7.9.16

#66

Deitados nos braços da árvore maior
bebíamos a cor translúcida das palavras
e tínhamos apenas o tempo nas mãos
como penhor.

Ipso facto

Das formulações limpas em sinfonia de pureza
sem entorses ou viés
tal como se enfeitam as manhãs redondas,
proclamação.
Deixando de fora os frutos apodrecidos
as palavras enegrecidas
o couro carpido por mãos pueris
todas as estradas mal atapetadas
as artes que são desarte.
Recolhendo
no regaço das mãos hospitaleiras
os diademas cinzelados a preceito
os lugares sem conhecimento
os factos arrumados num livro de pedras
com os diamantes em ornamento final
e um beijo quente na boca sedenta.
E sabemos
fazer coro com os factos risíveis
para não sermos dados em penhor
aos sacerdotes da infâmia.

6.9.16

Cabalística

Uma adivinha com acerto.
Dois olhos pensativos juntam as baias do mundo.
Três amigos sentados em pura estarolice.
Quatro limões para a sangria dos desejos.
Cinco dedos no chão travejado por ramos fundos.
Seis lanços de escada a separarem do miradouro.
Sete semanas sem respostas.
Oito apóstolos da religião reinventada.
Nove as vezes que fora a Paris.
Dez sapatos e uma dúvida persistente.
Onze pratos e o farto repasto amesendado.
Doze estradas e um cálice a temperar a decisão.
Treze gatos negros
e nem um clarão supersticioso.
Catorze almas juntas no jardim
jogando à mesa de um jogo que passa o tempo.
Quinze noites seguidas de sono incomodado.
Dezasseis beijos sem interrupção.
Dezassete diamantes em trovas subterrâneas.
Dezoito pernas indistintas
em contorções lúbricas.
Dezanove cães à espera dos mantimentos.
Vinte quadros abertos aos olhos ávidos.
Vinte e um segredos que ninguém quer saber.
Vinte e dois sacerdotes redimem uma multidão.
Vinte e três pecadores não querem redenções.
Vinte e quatro políticos
tomados pelo ardil da corrupção.
Vinte e cinco louvores
depostos em cerimónia solene,
anos depois.
Vinte e seis baraços diligentemente apostos
no pescoço das bestas.
Vinte e sete meses antes
de serem vinte e oito os anos cumpridos
em exílio.

5.9.16

#65

Relógios entediados meteram greve:
as agendas, em desesperado espernear
e o mundo (quase) inteiro com medo
que amanhã não chegue a ser amanhã.

Nomes

Digam os nomes com a lonjura de rosas
digam os nomes esconjurados
em noites desassossegadas
digam os nomes do avesso e sem águas-furtadas
digam,
principalmente,
os nomes proscritos
em maus hábitos sanitários depostos
nas mãos de tutores de tudo o resto.

Digam os nomes.

Digam nomes.

Digam.

Mas não parem de os dizer
em continuadas proclamações solenes
que o pronunciamento dos nomes
restitui a coutada da personalidade.
Digam os nomes todos
sem o temor reverencial perante uns nomes
nem a indiferença que adeja
sobre os nomes anónimos.
Deixem os nomes respirar por si
depois de os elevar a um púlpito sem lugar
e neles ditar a consagração dos nomes
dos nomes todos.
Pois se não somos só
nomes vertidos em documentos
somos, ao menos,
a garantia salada na distinção dos nomes.

Dos nomes que nos dão nome.

4.9.16

#64

A letra ocultada pode ser:
entorse à gramática
distração (ir)resolveu
grave pandemia de manipulação.

Fulgurante

E se o arejamento das ideias
tivesse penhor em máscaras necessárias
transbordando da fogueira acesa
para um chão cheio de gelo
onde tudo se adormece?

Podem os mecanismos que desarticulam o ócio
pender para o lado da lua
e logo se encenam as máquinas compostas
em sucessivas doses de empenho:
renova-se, então,
a fé nas pessoas,
nas coisas,
no mundo quase inteiro
(que subsistem contrariedades indomáveis
e descaminhos sem remédio
– há quem insista em chamar-lhes preconceitos).

Jogam-se os dados tirados da água da manhã
à espera dos números certos.
Sem saber o que são os números certos
a não ser quando estouram nas mãos
num festival de cores que se arqueiam
sobre as palavras
e emprestam iridescência ao dia nascente.

A fórmula não está gasta.
Às vezes,
apenas esquecida
como a poeira nos interstícios das persianas,
a poeira que consome parte da luz do dia.
Mas há sempre um piano sortilégio
desembainhado da fantasia
que cobre o dia com as pétalas convincentes
que tudo o resto deixam em hibernação.

3.9.16

#63

Agora que só há confeitarias
não podia o Césariny
fazer um poema sobre uma pastelaria.