13.9.16

Papel timbrado

I
Arrumados os papéis
que levantaram voo na intempérie
com a autorização de uma distração
que deixou aberta uma janela.
As lajes molhadas soltam um odor quente
e o musgo vertido nas lajes
não tem vastidão no molhado que se deitou.
Um pequeno papel
ficou preso à pedra molhada.
De tanta a chuva que enegreceu o dia
o papel depressa se dissolveu
na indiferença das coisas que perecem.

II
A máquina tosse um fumo intermitente;
o engenheiro consulta o manual de instruções
enquanto o operário ensaia hipóteses:
sugere que a tosse é da ferrugem
o selo da vetusta idade da pobre máquina.
O engenheiro contraria o operário,
sem disfarçar irritação,
à medida que entreolha as páginas do manual
e continua sem saber o que elas ensinam:
o manual estava escrito numa língua arrevesada.

III
O meteorologista advertia:
uma borrasca está para chegar.
Avisos seguintes consequentes com o alarme:
as pessoas deviam fazer como o avestruz
(que esconde a cabeça debaixo do chão)
os marinheiros que olvidassem os mares
os boémios fossem dormir mais cedo
os homens que rondam a noite de perto
abriguem-se do medonho temporal
os homens da terra cuidem das estufas
os pirómanos adiem-se para o estio vindouro.
Quando veio o dia seguinte
todos os cuidados foram em vão
– a borrasca aportara a outras latitudes
e ao homem do tempo descobriram
que era um trapaceiro na matemática.

IV
Se for preciso
se for preciso,
murmurava a mulher jovem
ao ouvido de ninguém.
Cambaleava
enquanto outras vozes suplicavam
uma revoada de nomes.
A mulher não olhava os rostos à volta
rodava sobre a sua cabeça
e atirava os braços ao céu
espetados na vertical do corpo disforme
e gritava,
com voz de ator de teatro
(que dispensa microfones para colocar a voz)
que ninguém fazia tão diligente dança da chuva.

V
O rapaz não sabia a resposta.
Não sabia que horas eram.
Se lhe perguntassem,
não sabia do paradeiro de Aveiro.
Não sabia muitas coisas, o rapaz:
a cor da bandeira da Letónia
o órgão digestivo do tubarão martelo
o nome do subsecretário de Estado das pescas
a fórmula do medicamento para as cefaleias
o aroma do sexo
a trindade que lhe seria subtraída
(quando calhasse)
a raça do cão da vizinha do quarto esquerdo
o nome do pai.
Era o rapaz mais esclarecido da escola.

VI
Palavras ditas como arestas vivas
abusos continuados sobre quem as ouvia
numa incontinência soez que não cabe
num silêncio.
E ficaria melhor fatiota, o silêncio,
de frente para tamanho néscio.
Logicamente
têm os néscios seu lugar
na ordem composta no tabuleiro.
Fosse o contrário,
quem podia determinar 
a identidade de um néscio?
Quem poderia habitar nos seus antípodas?

VII
No interior do quarto o aquecedor crepita.
Deve estar um frio de tiritar os dentes.
O homem deita-se sozinho
aconchega o corpo decadente
na dose considerável de cobertores.
Já não se lembra de outra companhia.
O frio não incomoda
nem tanto a solidão.
O stock de conhaque é farto
e o resto deixou de importar.

VIII
De que era feito o gelado?
O fabricante tinha pergaminhos honestos?
Mentiria nas letras microscópicas descrevendo
os ingredientes do gelado?
Os operários lavam as mãos
antes de fabricarem gelados?
Tiveram uma noite bem dormida?
Algum deles foi de férias para as termas?
Comem gelados à sobremesa?
Deixam que a descendência coma gelados?

IX
Dias inteiros sem saber da chave do cofre.
Dias inteiros sem saber o que continha o cofre.
Dias inteiros sem saber o que era um cofre.
Dias inteiros com o tesouro num bolso.
Dias inteiros enlaçada às lágrimas.
Dias inteiros
na opereta que era a sombra da sombra da vida.
Dias inteiros de leque em riste
em pose fidalga
escondendo o lado oculto
(o de mulher fácil).

X
Montanhas sem pedra
praias sem eco
eruditos sem óculos
estroinas sem licor
sacerdotes sem pudor
ascetas sem estética
lagos sem nenúfares
teatros sem solenidade
varandas sem bainhas
arenas sem suor
velhos sem negrume
batistérios sem raízes
loucos sem estrias
cães sem travões
professores sem voz
crianças sem cheiro
sabores sem remorsos
amores sem lugar
fatiotas sem corpo
heróis sem proezas
homens sem causas
juízes sem juízo.

XI
Noves fora, nada.
Metam-se aspas nas palavras
sequem-nas por dentro
antes que se precipitem sobre os ingénuos.
Juntem-se as cinzas depostas
até se intuir sua origem estática,
antes de bolores de atalaia tomarem,
como colónia,
as paredes frias onde descansam as mãos.
Até que o pano final desça sobre o palco
e os atores nos mandem para casa.

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