22.12.16

Categorias operativas

Odeio ismos. 
Os rótulos adjacentes
as categorias herméticas
as peias por cima dos ombros
a desopulência dos maneirismos binários
o raciocínio ligeiro e cerce
a fantochada de uma esgrima pueril
as desavenças sem chão
as arritmias das oposições gratuitas
os olhos vesgos pela lente baça
os corredores estreitos por onde amesendam
os fartos vilões da mesquinhez. 

Odeio que tenha de ser um ismo qualquer
que me amordaça às frugais paisagens
de quem assim se reduz. 
Odeio ser atirado para os braços de um ismo 
sem ter pedido esse lugar
e depois
aturar os algozes das categorias herméticas
dedilhando as minhas incoerências
quando uma ideia se soergue
contra o ismo em que me meteram. 

Odeio as sindicâncias dos outros
à mercê dos ismos a que me prenderam. 

Odeio não ter liberdade para alojar ideias
no promontório que me apetecer
sem logo aparecerem os mastins dos ismos
a descobrirem um (ou mais) para minha trela. 

Lamento
a estreiteza dos frequentadores de ismos,
imodestos marceneiros das ideias acantonadas
aviltantes de si mesmos na cegueira sua. 

Lamento (e odeio)
que se tenham inventado ismos.

#115

Os cinco sentidos
não ajudam à inteligibilidade das coisas
(ou desajudam à sua inteligibilidade;
o que não vai dar ao mesmo).

21.12.16

Cinzeiro

Uma diligência no oráculo
uma vírgula fora do lugar
a barba fonte de vernáculo
e a roseira sem vagar.

Uma especulação vulgarizada
uma semântica bombardeira
a face fria e vaporizada
e a camélia em viço e costureira.  

Uma clepsidra do avesso
uma exclamação a despropósito
a nuca com olhos de gesso
e a esteva com sabre compósito.

Uma mãe-de-água duradoura
uma frase esboçada a preceito
a orelha patrona da audição dura
e a acácia que desce até ao peito.

20.12.16

#114

A carne que atormenta,
a quente carne nas mãos,
e um vulcão efervescente
à espera de uma centelha. 

Equinócio

Que beijos sábios
enfeitam o meu peito?
Que mãos suadas
se entretecem no meu corpo?
Que olhos fundos
indagam minhas estrelas?
Que cálice poente
aquece o meu devir?
Que luar candente
anoitece o meu lugar?
Que poema ávido
empresta sossego ao meu ser?
Que manhã precoce
tira freio ao desejo?

19.12.16

Imersível

Esplendorosas constelações idosas
desembaraçadas de poeiras estiolantes
adormecem na potente aurora. 
Milhafres vociferantes
irrompem em voos rasantes
contra as carecas que boiam. 
A estufa exala o tempero dos trópicos
para gáudio do ecossistema mendaz. 
Esplendorosas asas que planam
tomando o céu como império
sobre a fazenda capitular de pé curto,
antes que vento vespertino
desmonte a temperança. 
Os pássaros gorjeiam,
num anátema caótico de grasnares mucosos
e a fatia de um bolo
furtada por menino guloso. 
Os todos arrumados a um canto
sem certezas desempoeiradas
nem certidões venais,
alisam o chão agora aprumado. 
Num bloco de notas
desenhos avulsos arrancados à letargia. 
Uma safra diletante
com artesãos cansados, mas diligentes
porque 
“o futuro não pode ficar nas mãos do acaso”. 
Suspensas no céu clareado pelo luar
estrelas difusas falam aos mortais
desprendendo curtos postais ilustrados
que enfeitam a soleira do olhar. 
Os mortais 
talvez esquecendo a mortal condição –
desmentem desperdícios amontoados sob os pés. 
Anestesiados
pelo esplendor de que são ilhas furtivas
não lhes apetecem infortúnios.

#113

Junta
sobre as ruínas do terramoto
o olhar que confere o lugar
do pensamento mestre. 

18.12.16

#112

A vontade sitiada numa alcáçova
não é espécime válido:
sem a sua roda livre
não passa de desvontade, 
refém das suas ameias. 

Medicinal

Os ossos estatutários
não derrotados pelo cansaço cardeal
profetizam:
agentes corrosivos serão
e sem capitulação
dos mais tóxicos elementos.
Ossos-esteio
nos quais as malsãs divindades
não conseguem aportar.
Estatutários
ostentam a sua grandeza imperial.
São a sua própria centelha
essência das essências
onde se bebe a água pura.

17.12.16

Videiras

A fina haste da videira
descai na intempérie. 
A fina haste da videira,
entronização de um caule timorato,
decai na penumbra ditosa. 
Hão de medrar uvas doces
impregnadas de uma escura tez
dizendo aos céus que não as demovem.
Nem que frágeis sejam as hastes
de onde se arqueiam. 

16.12.16

#111

Ecos que se mestiçam
entre duas ondas alterosas
de um mar desbragado. 

Tiro ao alvo

Sob o pejo dos holofotes
mais fácil alvo dos atiradores. 
Não precisam de ser furtivos
que os limos confluem
e as atenções dão sobre si
tonitruantes cambalhotas. 

E, contudo,
reserva-se ao perfil discreto
dos apóstolos que fogem da ribalta.

Não consegue. 
Por mais
que sobre o pensamento
em demanda de um equinócio
as luzes todas desçam sobre o seu rosto. 

Já sabe:
segue-se a artilharia contínua
um esboço bélico
que narra o seu errado postulado da história. 

Não importa. 
Soube ser arquiteto de uma couraça
à prova da pior das balas
e as cicatrizes no que sobra do corpo
são caução para o demais. 

15.12.16

#110

Queria um tabuleiro
com peças sem serem xadrez
queria um manto soalheiro
sem perder a vez. 

Manual de instruções

Sabia
que as escadas adulteravam
a noite.
Que as mãos atadas
eram vistoria
a destempo.
Que os beijos prometidos
rimavam com areias
movediças.
Sabia
que o velho cais
esperava.
Que os ulmeiros desmaiados
desconfiavam do tempo
gasto.
Que as batinas embuçadas
aperfeiçoavam os ardis
militantes.
Sabia
que as rotundas podiam ser
ao contrário.
Que o poente
era um rio
sem horizonte.
Que as árvores outonais
regressavam à opulência
matinal.
Sabia
o que os livros emprestavam
ao olhar.
Que as marés desajeitadas
compunham as costuras
da alma.
Que um triunvirato entronizado
bebia até os sentidos ficarem
embotados.
Sabia
que essa era a melhor
lucidez.
Por saber
que em tais preparos
nada era o saber.

14.12.16

#109

Se não fossem os sonhos
o que seria de nós?
(Levanto o véu do sonho
e sondo matéria tangível.)

A desentronização dos medos


Absorvo a luz lenticular do relâmpago
em duas levas que se sucedem
no estertor da trovoada.
Reponho os predicados da alma no lugar
não vão os demónios tomar-me de assalto.

Já não tenho medo.
Não tenho medo da fuligem
que açambarca a noite comprida.
Não tenho medo das vozes ciciadas
nos intervalos das páginas.
À altura dos meus pesares
soerguem-se velas retesadas
que sulcam a névoa por diante.
As valas são ermos sem serventia
deslugares que não encontram mapa.

Continuo sem medo
na alvorada baça que tira estima ao dia.
Nem os medos de antanho
os que sonhos povoavam
ganham lugar no deserto que ganhou.
Atiro-me como cão esfaimado
às deliciosas fontes do conhecimento
à volúpia das artes
dos lugares dantes não visitados
às páginas em desassossego
à matéria combustível que acende o tempo
à perene mansidão do olhar.

Não me importunam
as fazendas inoportunas
as águas impróprias
os mapas obscurecidos.

Já não tenho medo.
É tão simples quanto isso.

13.12.16

#108

As pontes urdidas
nas margens desatadas
serão precipícios do outro lado?

Invasão

Espasmos fermentam
nos nós do cérebro
um carregamento de cultura desliza na tela
à medida que se imagina o poema em alemão.
As cruzes do vento vadio
invadem as esquinas ardilosas das ruas
estão de atalaia aos mastins
que se passeiam, disfarçados.
Colhem as sementes da noite
mendigos curvados ao frio epistolar
sem darem conta que há contas a acertar
no diadema guardado na pedra tumular.
Os ascetas cínicos fingem que cantam
fingem que sentem os fingimentos venais
sem olharem aos cordéis de antanho
sem se importarem com as marés levantadas.
Os rochedos proeminentes em forma imperatriz
levantam-se do chão turgido pelo nevoeiro
gritando em forma de vento
consumições evaporadas nas nuvens torrenciais.
Um murmúrio de algures
atravessado nas ruas claras
cristaliza os medos rombos
das furiosas damas recusadas.
E, depois do lauto manjar,
pitonisas e escandalosos servidores do reino
oferecem seus préstimos malsãos
à espera que a luz do dia não seja timorata.
Os maus modos servem-se em danças destiladas
com maus costumes invasores das boas almas
sem sobrar um vestígio de decência
nos alvores de nova decência desensinada.
Os lobos e as outras más bestas
levantam âncora e suplicam poupança
destes novos preparos que os afligem
no solene anúncio de um lugar reinventado.
Desaprovados os ardis em grosso compêndio
à tona apenas os genuínos sentires
redesenhando as bissetrizes de tudo
em identidade com a nova maré que se pôs.

12.12.16

Círculos concêntricos

Caminhava em círculos. 
Com o jornal 
como anteparo do braço direito
(não fossem escapulir as notícias do dia). 
Uma só nuvem tingindo o céu
e o sol desembaciado
enquanto a paisagem se fazia,
paisagem. 

Os círculos andados
não seriam andadura recomendada,
não fossem enquistados pelos passos meus. 

Num momento irrepreensível
(parecia uma epifania,
mas não podia
atenta a minha descrença)
uma centelha caiu dos céus
aterrando à frente dos meus sapatos. 
Abriu-se uma fenda medonha,
funda
exalando um cheiro pestífero. 
Certamente,
convite
para desimpedir os círculos demandados
na antecâmara de uma possível mensagem
subliminarmente deificada
(não fosse a impossibilidade
vertida pelas descrenças). 

Percebi tudo. 
Não podia continuar a caminhar em círculos. 
As ruminações
pertencem a bestas de outro jaez. 

#107

Too many threes.
Too many trees. 
Treating threads
on trivial thrones. 

10.12.16

Fácil

Não vai o verso fácil
no dorso da alma.
Nem que nuvens embaciem o céu
não esmaecem as cores
que são o corpo da vida
um copo cheio de águas cheias.
O verso fácil
devolve a intensidade
em volteios que hasteiam púlpitos
à medida que as cores emergem
veementes.
E a vida fica como o verso,
fácil.