14.8.17

Quimera

No microscópio ávido
olhos e cores e desejos
formas sem forma
um desenho do mundo
na bissetriz do desabrigo.
Não sei se é assim
que se congeminam as coisas
ou se devo dizer
às luas viandantes
e aos elfos sonhados
se a monstruosidade é palco
e nos sobra a resignação.

Oxalá tudo fosse
no seu oposto.

Afinal não sei.

Guardo em papel vegetal
os raios quase impercetíveis
de um desenho vitral
antes de o ocaso ter ciciado à janela.
Estimo saber que coisas diversas
se protelam no estirador abandonado.
Mais valia
um promontório ao vento
sem armadura
sem velório tenaz
ou as ondas furiosas de um mar diáfano.

Oxalá
soubesse ao menos
um lugar
um lugar que fosse
meu
património meu (em alternativa)
ou de outrem
e que eu pudesse tomar de empréstimo
só para me saber defenestrado da orfandade
numa torrente de fertilidade pródiga.

Atiro os olhos cansados
aos enredos passados em revista
no microscópio banal.

Não é preciso mais nada.
A não ser
o sono desalfandegado
a epiderme clara da não vergonha
o amor-esteio
e o rosto do amor-esteio
como castelo imperecível
na balaustrada do desejo sem freio
na mercê de um beijo quente.

Não é preciso mais nada.

#284

Consertado o fuso
o marinheiro perseverante
à espera
e um cais de braços abertos. 

13.8.17

Pronto pagamento

Supus as vincadas arcadas
sobre o mosto da maresia
sem contraprova remível
em andares cheios de poeira.

Em visceral rebeldia
desarmadilhada a vetusta janela
trouxe os olhos já não marejados
ao palácio onde esperavam
tenores em silêncio.

Embebi-me no silêncio
enquanto assistia ao rio
em sua marcha
sumptuosa.

12.8.17

Alumínio

Um véu
um vulto
viuvez sem sombra
ou então
prisão sem grades
prisão na mesma
labirinto sem dó
viuvez empenhada
vulto sem rosto
véu denso
e não metáfora.

11.8.17

Remédio

É deste magma
a lava indissolúvel
onde o fogo cospe contra a maré
como se eu fosse vespeiro
e por dentro
nas veias insondáveis e febris
houvesse um frémito virado do avesso
comenda diuturna sem convencimento
e as cinzas debulhadas na caneta mortiça
e eu
emancipado do pesadelo sortido
lavasse o rosto com as mãos secas
olhando no espelho vertical
de onde rosto algum tinha devolução.
As caldeiras aconchegadas ao peito
conferiam o calor singular
e eu
convertido à desimportância das coisas
tirava férias do tempo.

#283

Quinhentas mil vozes
no marmoreado céu
arrancam espinhos
ao orvalho sem data.

10.8.17

Da paciência

Espera
a espera que demora
na demora do tordo anónimo.
Na espera
sem marujo
embarcação fantasma
fundeada na doca-seca.
Como se nadassem em seco
gaiatos desvairados
e os gatos vadios
dançassem em correrias anãs
com medo de perderem os bigodes.
Dado o universo
como medida da pequenez
não importam as esperas
que a espera traz à espera
um módico de consistência.
Ainda há
quem lhe chame
paciência.

#282

A desfronteirização 
das interiores baias:
abraçou-se aos deslimites
sem precipícios por imediação. 

9.8.17

#281

Boca do vulcão
extinto
e no corpo
aluvião voraz.

Quatro mãos

Manifesto:
desando dos luares cerimoniosos
à colheita dos líquenes sofismados
e apadrinho as roças aprumadas
no sul ermo.

Aproveito:
os murais encardidos
e de olhos fechados
arborizo estrofes avulsas
caiando os murais.

Percebo:
quatro são as mãos trémulas
tirando alvura às páginas
em gorjeios militantes
na rosa-dos-ventos.

Concebo:
o estio amordaçado
fadas furtivas vindas do mar
estantes vazias
e um velho inerte de olhar perdido
enquanto bebe o tempo pérfido
à frente do mar
como se esperasse
que as furtivas fadas congeminem novas.

Lembro:
lugares que foram partida
noites sem sono
luzes aspergidas ao acaso
a inverosímil redenção
tempo sem pressa
tempo fugitivo
a imensa constelação de rostos
a as quatro mãos entrelaçadas
fazendo tudo isto naufragar
no repouso do olvido.

8.8.17

#280

O escultor das flores
pose estudada
(tabaco no canto da boca)
à espera dos mandamentos do mundo. 

Friends and foes

Written candles
ebb through the angles of light
following hoax-lighted dawn.
Let me know
the incommensurate pleasure
of carved, shaded tears
while old-fashioned darts fade away.
Pegging
to the never-ending myth of untidy words
cleared from once darkened skies.
I insist:
believers
should heave shoulders against tainted walls
like a deer floats in the autumn mist
melting twisted eyes against fate.
I insist:
forgotten faces
(once not so-forgotten)
washed away in the turf of tears
but tears lie no more
in the edge of adamant eyes.
Candles
spreading ashes as the wind whispers
move away doomed pieces
of once-upon-a-time secrets.
Candles
vivid,
sparkling candles
ending evanescent shame
a bequest of the fresh air:
the inexorable ingredient to be lived with.

#279

No rumorejo da maresia
náufragos ateiam um fogo
esconjurando deuses prometidos.

7.8.17

Xadrez

Primeiro movimento:
armar o paraquedas. 
Evitar tergiversações em vão. 

Segundo movimento:
contemplar as proezas
Imperativa absolvição da humildade. 

Terceiro movimento:
doar as migalhas. 
Aconselhável manobra de generosidade. 

Quarto movimento:
levantar os juros.
Prestar atenção
às letras pequenas do contrato. 

Quinto movimento:
creditar a alma. 
Ajuizar na claridade
do pensamento descomprometido. 

Sexto movimento:
o ataque. 
Sugestão lúdica:
não desguarnecer o flanco. 

Sétimo movimento:
observar a presa. 
Não ceder aos prantos
(da presa, ou os próprios). 

Oitavo movimento:
parêntesis. 
Mãos à fonte
por exigência das forças (alquebradas).

Nono movimento:
vultos sem rosto esvoaçam. 
Deseja-se atenção no essencial. 

Décimo movimento:
xeque-mate. 
Antes que seja tarde. 

Décimo-primeiro movimento:
desce o pano sobre o palco. 
O resultado revelado,
à frente dos olhos
circunspectos. 

#278

A lua esconde-se
na cortina do eclipse
cansada de ser refém 
da multidão de olhos inquisitoriais. 

6.8.17

#277

Estiolam as espadas
vetustas em sua orfandade
no proveito do peito armado. 

5.8.17

Rosa-embrião

Desde a penumbra sem tempo
uma rosa abotoada
grita
surdamente grita
à espera do devir. 
Haverá chave desarvorada
algures ocultada
talvez sepultada no jardim húmido
o segredo que a rosa embrião espera. 
O punhal desafiado
ensanguenta a árvore secular;
folgou a rosa-embrião,
não foi testemunha da carnificina:
haveria de desistir do parto
e preferia ser nado-morto. 
Pelo andar das coisas
e em mantendo-se a teimosia da rosa
que quer ser rosa de nome inteiro
sem saber que fado a espera:
ciclo emprestado às leis da natureza,
em paciente medrar
até ao desprendimento de suas pétalas
decadentes enfim,
ou um algoz colhendo-a prematuramente
mercê das vaidades humanas
que a querem
para frívolo enfeite?

4.8.17

Underdog

Diatribes em desconto
vadiagem em ponto de rebuçado
carteirista amador
eunuco da vontade
primoroso bastardo das colheradas de mofo
em vidraças opacas
deitando os olhos por fora das pálpebras
vomitando alarvidades de sua lavra
incansável apedeuta
esfarrapado mental
destilando a andrajosa diálise do corpo
em contrafeitas reviravoltas
sempre acabadas no lugar de partida.

Reabilitação atempada,
porém,
consagrada pelos estudiosos das igualdades:
metida em ebulição
a desvergonha dos favores e suas pagas
mais um aneurisma
trocando as voltas aos circuitos elétricos
e ei-lo
respeitável senador
ouvido aqui e ali
sabedor de podas todas
(“tudólogo”, como soe dizer)
promitente feitor das verbenas boas
e do crédito que destrava a prosperidade
magnata dos magnatas
mesmo amesendando com os cotovelos
em despreparo.

Belas são as nótulas do compêndio:
que a ninguém seja vedada oportunidade.

#276

Un jeu d'enjeux
mentir aux mensonges 
au bout de la féroce solitude. 

#275

É como desfolhar um malmequer:
binárias alternativas
embaraçam os pesares e seus opostos. 

3.8.17

Palavras-aquário

Palavras
às braçadas
na absoluta recusa do silêncio
estocada certeira
no húmus da solidão. 

Autênticas ou distraídas
sorumbáticas,
talvez,
às vezes alinhadas com o pesar dominante,
vezes outras insubmissas,
sempre frontais
cruas
mas palavras mastros
muralhas do sono justiçado
palavras nuas
com a cor do mar
transparência lídima,
mas palavras. 

Cimento duradouro
tirando as teimas aos fungos timoratos
que cobrem as vidraças com baça cortina
no desencontro do relógio com o tempo. 
O emudecer do rosto
um punhal ilegítimo
que locupleta os serenos desenhos
por onde se deita
o corpo cansado
o corpo
à espera de triunfal desembaraço. 

Nadando num mar de palavras,
tantas
que da fartura não há de sobrar
sobressalto na escolha. 

#274

As plebes amotinadas
na combustão da revolta
a dois passos da miragem.

2.8.17

#273

Fossem chão essas lágrimas
e o mar por sombra
seria o peito descarnado. 

Explosões no céu

Dessa pistola extraviada
balas sem corso
o trono extasiado do céu sem cor
constelações despidas no jardim centrípeto
e as páginas do livro cuspidas à capa.
Sem os medos desapalavrados
nem as demenciais gargalhadas
no ergástulo do mar encapelado
fantasmas denunciados perdem a face
e bolbos encarcerados esperam à porta.
Caminham em movimentos paralelos
loucura e solidão
num archote de preces estouvadas
ardendo nas paredes aluadas
sem os dedos por testemunha
sem infrequentes vulcões por estamento.
Perdem-se os tabuleiros gastos
na imensidão do futuro
e as estrofes desprendem-se da lua baça
em vinhos pedigree
em ruas tingidas pelo sortilégio anónimo.
Em vez de loucura
propõem
a mansidão dos tempos vagarosos
a desleitura das palavras vizinhas
comboios em arrefecida marcha
gente sem rosto
a pele imaculadamente imune ao suor
bíblias e obras semelhantes.
Desagrilhoo os chamamentos assim enquistados:
não quero tibiezas
não admito dissolução da alma repentina
não torno possível
as viagens dentro do mesmo lugar
e as arcadas solícitas que terminam em penhor.
Levantam-se os mastros irrefreáveis
contra a subordinação malsã
temerosos pederastas que se vendem ao desbarato
as páginas e páginas escritas no nada
num nada sem remorso
num nada sem incómodo,
o nada inacabado.
Pois levamos o mar inteiro
abraçado às mãos suadas,
tentaculares
e devemos a nós mesmos
a furiosa sede de tudo querer
sem sabermos dos limites
pois é dos deslimites que somos tutores.
Amanhã pode nem haver
amanhã;
e depois?
as palavras sem vento
as palavras vertidas no ouro mais alto
são-nos creditadas
em ondas imarcescíveis
no estrépito dos campos em silêncio
de onde trazemos flores maduras
a medula da glória embebida na ossatura.
Na noite sem fundo
emprestamos o sono ao fojo de um lobo
e somos como ele
lobo irredentista
apóstolo das franquias por onde se compõe
a gente que adora ser gente.

1.8.17

Autopoiese

Fotografia
para que o tempo não fuja
ou então
pergunta às sombras sucessivas
pelos contornos do rosto.
Faz lembrar
a escuta à voz própria
e ela parece corpo estranho
engastado nos ouvidos.
Passamos a maior parte do tempo
escondidos do rosto
da voz
e
– quem sabe? –  
na contrafação da identidade.

#272

Os números nadam 
na estatutária tirania da exatidão. 
Dos números, nada.