9.11.17

Janela do avesso

Desta janela
o avesso das janelas
espia-se de dentro para fora.
Fome imensa de nudez
aos olhos outros.
Dir-se-ia:
sublime generosidade
toda a nudez
em matriz de transparência.
A cortina aduz um baço chocalhar
e as sinapses juntam-se no ocaso:
é só vaidade sem prumo
voyeurismo ao contrário
e as janelas em sentido adulterado.

#370

Quis-me parecer
a velhinha trouxe da mercearia
demolhado bacalhau
(oh! tentações da modernidade).

8.11.17

Trezentas milhas

Trezentas milhas.
Quanto é isso em quilómetros?
Depende do querosene.
Depende das escolas e seu siso.
E depende se for reta a linha
ou achacada a desatalhos.
Chegamos depressa ao lugar
depois das trezentas milhas?
Depende dos lápis
se afiados estão
e se aceitam o francês como idioma.
As trezentas milhas depois
são em França?
Parece-te que os pássaros
são capazes de ladrar?
O fuso calibrado
será o esperanto dos poliglotas.
Em banho-maria
sem alho francês por condimento
o vinho forte, encorpado
a mostarda de Dijon
e as demais iguarias que te aprouver.
Mas só daqui a trezentas milhas
saltadas por estrada ou pelo ar
(não te digo: é surpresa)
salteadas com o suor da empreitada
semente sóbria dos arbustos estéreis.
      Quando me dirás
      que as trezentas milhas
 se esgotaram?
Quando te disser
que trezentas são as milhas
que faltam
para a casa da partida.

#369

Largado o seis
profana sentença
finda em nove:
chave da volúpia.

#368

LA.
Hell A.
L hey.
El A.

7.11.17

Desembaciado

Uma pétala esbraceja
contra a tirania do vento.
Vai errante
com os humores do vento malsão
sabe-se lá onde terá cais.

Passará
sobre mares medonhos
vulcões desadormecidos
florestas esmagadoramente verdejantes
estepes americanas
glaciares árticos
precipícios insuspeitos
paisagens lunares
paisagens de prospetos turísticos
portos enferrujados
rostos desarmadilhados
gente autómata
paredes caiadas em cidades vetustas
catedrais colossais
lagos fúnebres
navios mercantes em braço-de-ferro com o mar
campos de flores:

com o favor do vento
a pétala aterra num campo de flores
e em osmose
funde-se no caule vicejante;

desabrocha flor mutante.

As histórias
também têm direito
a risonho término.

#367

No dédalo desfeito
a embocadura do rio festivo
leito derradeiro,
enfim.

6.11.17

Continental breakfast

Das orelhudas raízes da terra
o chamamento:
não olhar para trás
e da terra trazer o sabor a ela molhada
passear no fio delgado de uma gota de orvalho
deixar os olhos no peito generoso
da terra composta em paisagem.
Saber o sabor dos frutos
o nome das árvores
o encanto das mãos metidas na terra
humedecida pela chuva vespertina
ou hirsuta,
sujeita ao estio demorado.
A terra sem terra
isto é
a terra sem o penhor de uma bandeira
nem o lastro pesado de uma cultura
a terra sem dono
(mesmo quando se conhece proprietário):
terra como terra
a terra sem idioma
a terra que fala através das pedras pontiagudas
a terra fervente sob o sol posto
a terra demiúrgica.
Som legado outro
se não o seu telúrico pesar
o regaço inteiro
onde se acolhe
o maternal embrião do resto.

#366

Labéu dos fazedores de banda desenhada:
narrativas dos maus derrotados
(quando tudo é sua antítese).

#365

Por crime contra a humanidade
acuso
os argumentistas de desenhos animados
(por logro induzido nos petizes).

5.11.17

Novembro

Lisérgico.
A escotilha fundeada
no sorriso baço dos velhos
poço das águas estornadas.

Demiurgo. 
À espera do vento favorável
entre o mar e o olhar contemplativo
beijo quente nos lábios manancial. 

Adormecido. 
O encanto do sonho
emoldurado nas páginas vitrais
hasteado no promontório do ser. 

Matinal. 
A estremunhada alvorada
farto manjar que se espera
no esquartejar do jogo em liça.

4.11.17

#364

Hoje sou o que vou ser
sem o remorso
do que fiquei por ser.

3.11.17

Um rosto

Espero do rosto visível
o cais aberto
regaço
a coreografia desordenada
os poemas insolentes
a imersão catártica
um chapéu contra a atmosfera
uma incubadora sarcástica
os braços futuros
o furto da minha alma,
consentido
heurístico.

As obras serviçais
desenganam os provectos ascetas
lendo no tempo atávico
os tronos arruinados
que foram seus.
E o que interessa
saber das cinzas levantadas pelo vento
das rochas tomadas pelo limo
das miseráveis que não dormem
das nuvens lisas tomando conta do sol
ou do sol não exuberante
do sol timorato
servil?
Os dentes amparam o frio
fortaleza sediciosa
no desamparo das viúvas sem lágrimas.

No fim das provações
é sempre o rosto soerguido
o mastro centrípeto
esteio de tudo.
Um rosto.

#363

Aprovado o guião
do hoje vestido
em genuínas vitualhas.

2.11.17

#362

Estrada sem chão
no súbito coalhar das lágrimas,
infundadas.

1.11.17

Perdição

Perdido dos antúrios matinais
foragido dos plebeus de fés intensas
contra os estouvados martírios
contra a ocupação das almas
na evocação do vidro sem lâminas
sem esgares do tempo hipotecado.
Não será empreitada tardia
meter as mãos na largueza da alma
torneá-la no desembaraço da simplicidade
e dispensar jesus avulsos
deixá-los a seus implexos trabalhos
no quadrilátero impossível
onde medram
equações sem fim.
Eu
prefiro a perdição.

31.10.17

Gutural

À espuma volúvel
desde as veias transbordadas
sem leito por cumprir,
uma dádiva sem remoçar:
junto os escudos gastos
os mares esperados
as rimas não logradas
os outros lados esmorraçados
os lados lunares
as proverbiais congeminações
as escritas tentadas
sem juras por alinhavo:
nos areais brancos
sem claridade outra por junto
à espuma escamada em sinais vãos
a carne explosiva
insubordinada
não venal
paráfrase das campeãs palavras
não desditas
não treslidas
puras.

#361

Ao entardecer
o tempo estremunhado
na calma vertigem de um canal
(sob a vigilância dos barcos-casa).

30.10.17

Colheita

Declaro:
não obedecer às vistorias
às alinhadas purificações de pensamento
de rodas dançantes em punho
sob ameaça de facas afiadas.

Declaro:
corromper os saudáveis escultores da atualidade
razia abundante entre a aquiescência
sem remorso, nem pesar.

Proclamo:
a independência absoluta
o firmamento desviado do ouro
o desacerto organizado
em sucessivas estórias sem fim
ou no fim desalinhado das estórias ancoradas.

Proclamo:
doze dúzias de dias sem promessas
o corpo extasiado
o vinho em catadupa
torres de babel dissolvidas
abencerragens sepultados
as facas devolvidas ao sangue derramado.

Contraponho:
um chá dançante ao som de heavy metal
poesia desestruturada
deuses descomprometidos
(para os carenciados de divindades)
um corpete desapertado
o despertador sem corda
uma roda panorâmica sem medo
o silêncio em vez da estultícia
lençóis aveludados abraçando os corpos frios
as mãos entrelaçadas, sem suor
o suor em bica, extático
o mundo inteiro à espera
máquinas do tempo congeminando a finitude
o amor formoso guardado dentro da mão
inteiro e sem tamanho
imorredoiro.

#360

No fortuito acaso
a forquilha do infortúnio
em combustão eliminada.

29.10.17

#359

Pelo raiar do sol
condensada a fortuna 
em seu estado colossal.

28.10.17

#358

Os mundos,
muitos e sobrepostos,
camadas intensas
da olímpica vontade.

27.10.17

Limítrofe

Aqui
deste lugar ermo,
deste ao altar incubador
a visibilidade estrinçada
em veludos deitados no dorso
contra os prognósticos vassalos.
E, num golpe de asa,
esbateste a lonjura
desfeita à imensidão das palavras-chão
temperada pelos sinaleiros da coragem.
Diz-se
que o lugar centrípeto perdeu paradeiro:
talvez esteja algures
ancorado num cais
também ermo.
À procura de refeição
à procura de refúgio
em tuas mãos.

#357

Nos arrumos da alma
tomo desse sumo triunfante
à espera da celebração.

26.10.17

Desígnio

No museu da cativa intemporalidade
colhidas as flores secas
desprovidas das sementes cavernosas
celebra-se com vinho a rodos
e a folia pavoneia-se entre os demais
em passo vagaroso;
que não se incomode a fartazana
nem se resgatem os destemperos
os vesúvios da seriedade,
esses maltrapilhos,
costurando perenemente sombrios rostos
enquanto mergulham em poços vetustos.

Às pazadas
a terra atirada para cima da pesporrência
terra queimada
para não ser o risco de fruição tardia
e voltarem ao monólogo enfadonho.
São os candeeiros desabrochados
na fímbria das trevas em estorvo
projetando uma lua desmaiada
imensamente branca
sobre os despojos de tudo
cuspindo os impropérios
sobre as almas todas.

Deixem-se os obséquios sarracenos
para os despeitados
os volúveis garanhões do vazio
os que se debatem com o olhar franzido
sobre o rosto sem contornos.

#356

Do quase a um tudo
a subtração
entre o medo e o sobressalto.

25.10.17

Rumor

Espólio em cavalete
aguarela vivaz,
intacta
cor dos lábios carnudos
erupções em desafio. 
Morro por dentro da vida
em sentinelas orquídeas
tutoras das cores
tribunais sem apelo,
supremos.
As vozes sombrias
(seleção do medo sem medo)
costuram as pueris confianças
no latejar dos olhos envidraçados
no remoço eternamente prometido.
As coisas não valem nada.
A não ser
o valor que têm nas mãos abertas
desenhadas nas palavras cilindradas
em arabescos singulares
indomesticáveis.
Acabe-se
com o pesar sobre as nuvens
a cicuta disfarçada
o vinho estragado
os poros entrapados na estultícia.
Morte à morte
para sabermos
que a vida é efémera.

#355

Antes código Morse
nas varandas do silêncio,
a legítima comunicação.

24.10.17

Ponto e vírgula

De vez em quando
nos preparos da meditação
(elucubrações em erosão)
desalinhava o astrolábio adestrado
e perguntava:
é insondável o santuário da melancolia
onde se guardam
os subsídios do seu oposto?

Os capitães de navios viajados
oferecendo inestimável experiência
subindo ao altar do conhecimento
declaravam nada saber
outros nada dizer
(talvez guardando
egoístas
a quimera para seu alpendre
talvez escondendo-a para memória futura).
Eram tagarelas de um silêncio pungente.

Às vezes
procurava uma mnemónica sem lacunas
a estrada pura
o pano desembaciado de lágrimas
gente sensível em mares lavados
gatos vadios não furtivos
as chaves enferrujadas e,
todavia,
chaves;
a nudez das palavras cruas.
Procurava acasalar as arcadas da noite
e em lúgubres pesares
depor as estrelas infundadas
trevas disfarçadas de estrelas
no equinócio fosco das congeminações tardias.

Afinal
talvez não fosse existente a demanda
e nada fosse a procura,
ou um nada imenso, vago,
mesmo sabendo
do pouco que às certezas era cais.

Fugi
para a lonjura de um tempo cortês
dando a mão a janelas sem vidro
e pasos doble em desajeitado desafio.

Não quis perder.
Não quis
perder-me de mim.

#354

Tirei à sorte
a sorte minha
ou à sorte
deixei a sorte que minha fora
e sobrou o frio suor.