30.5.18

#596

Arregaço o olhar 
para nele abraçar 
toda esta leva 
de talentos insofismáveis.

29.5.18

Os marialvas

A grande previsão:
a astuta arrumação 
dos pedonais varões na estulta sala
com vista para a parede,
para a parede da mesma cor negra 
da sua risível facúndia.
Bravos, 
tais marialvas
cultores de sintomática fiesta
onde passeiam sua virtuosa falta de coragem
colecionadores de damas incautas
maus amantes
egoístas sem remissão
seguidores da azul e branca bandeira pátria
garbosos no cliché de antanho
saudosistas do passado
desconfiados do presente
(e em pânico
quando o porvir se desdobra 
em folheto moderno)
ensimesmados e iletrados
perspicazmente misóginos
(em confissão silenciosa
da sua inferioridade genética)
agricultores sem as mãos imundas.
Definição acabada
da inutilidade.

#595

Anda a porfiar
ser paráfrase de si mesmo.
Não é nem metade do que contém.

28.5.18

Toque de Midas

O lento deitar do dia
servido na maresia 
deixa o ar a levitar nas mãos
enquanto se sopesam os degraus 
entre o sopé do miradouro e a casa da partida.
Não será a estrelar figura deitada
a fazer-se meã
no avesso da noite dormida
a vertigem sem medida na boca do precipício.

Sem os violinos
a música ensurdece
e eu congemino as margens 
de onde se alinhava
a antítese da solidão.

Um fósforo acerta a chama em erupção
furacão promitente
entre a mansidão dos vales
refém do olhar insubmisso;
talvez se arranjem desenhos frágeis
e das fráguas indomáveis
um ciciar constante emoldure os versos capazes,
a cadeira onde se deitam poemas incertos.
Um chamamento audível
ecoa nas nuvens velozes:
não traduzo o idioma
ininteligível
mas soam musicais aquelas palavras
sílaba a sílaba
como se houvessem sido convocadas 
em substituição dos violinos.
As luvas perdidas no chão
pressagiam o inverno 
– ou então,
a finitude do inverno
e a imprestabilidade das luvas,
as mãos carecendo de liberdade
para seus poros respirarem.

O cais não se segreda
na passividade do entardecer.
Deita-se ao tempo fraturado
e dele esvoaçam os espíritos caldeados
de marinheiros datados.
O cais
recebe as águas amansadas
prepara-se para a noite que já é véspera.
Os improdutivos medos
perdem inventário:
já não se abespinham os desassossegados
nem se atemorizam os tementes do porvir
nem se encomendam ao desengano
os novos eleáticos do mapa apresentado:
doravante
em sucessivas camadas de fuligem desaprovada
filiam-se os corpos na sua filigrana
e os dedos percorrem cada milímetro
como se de quilómetros cuidassem.
Os corpos
caudais de rios desemudecidos.

Já não há 
medos transversais
penhores atrasados
espartilhos denodados
espadas dilacerantes adejando sobre as cabeças;
só há o rio 
que se acama em seu estuário
rio descendente de mitológicas figuras
rio
descendo na sua sede de mar.

#594

Esqueci-me
de todos os esquecimentos
e fiquei órfão a meio de um nada.

27.5.18

Ardina

Do pé para a mão
na boca da escuridão
sofre a carpideira
por ausência de choradeira.

Ainda perguntaram ao engenheiro
se não caiu no banheiro
ao que o troglodita desmente
com um sorriso benevolente.

O cavalo velho faz seu pasto
no jardim onde não há um casto
e o edil cavalga no pedestal
sem contar com o sujo avental.

Mais tarde, na cortina do nevoeiro
nas pontas de um ardina besteiro
veio um touro enfezado
desferir feridas no seu conto irado.

A donzela arrepiada
não conteve o seu ar de fada
e bebeu num trago a larga cerveja
desmentindo o pergaminho que a beija.

No poço do inferno
o coreógrafo fraturou o esterno
disse o aspirante a mentiroso
na alvorada do discurso asqueroso.

Não era grande o mal que vinha ao mundo
entre tanto homem infecundo
pois eram lentes embaciadas
que contavam histórias desairadas.

Eram três os juízes encartados
e todavia peritos em serem distraídos:
prouvera quem neles confiou
que o bom juízo se desafiou.

#593

Completamente. 
Completa a mente. 
Completa e mente.

26.5.18

#592

Das flores sangra o pólen
que o vento, iníquo, 
reparte no critério do acaso.

Imperial

Um peito nu
o meu peito nu
cais
o cais de perto
na praia
praia limítrofe
beijo
um beijo na tua boca
fonte
a fonte onde para a sede
a ternura
ternura-fortaleza
poema
o poema que sela as palavras
palavras
estrofes-quimera
as estrofes acesas com as mãos
altar
o altar das pedras inamovíveis
âncora
a âncora que desenha nossos braços
na dança
dança que me ensinas
à madrugada
madrugada crepuscular
a madrugada crepuscular
que desembacia os medos 
e cristaliza as lágrimas
estátua 
a estátua onde nos imortalizamos
mar
o mar
este imenso mar
beijado pela janela
ou a janela a acreditar
a janela a respirar a maresia
e os poros
os poros suados
o suor que é nossa respiração 
os poros
abertos ao mundo inteiro
o suor vertido no amplexo dos corpos
transidos
docemente lúgubres
os corpos guerreiros
feiticeiros das pétalas hasteadas
a varanda
varanda epistolar
os olhos arremetidos ao vazio
e um todo vem às mãos
no entardecer
o entardecer vínico
o canto
canto luminar
poema expoente
o poema expoente dos deslimites
poeira
a poeira arrumada nas catedrais
e as abóbadas ungindo os dedos
em anéis arqueados
anéis arqueados na vontade nossa
à espera da noite
a noite infante
véspera do sono
o sono que industria os sonhos
sonhos acastelados
na pele fria, noturna
na constante entrega
mar adiante
sem a morte por perto
a vida rosácea tatuada no olhar.

25.5.18

Cinto de segurança

As ameias não chegam
não serão altas que cheguem.
Os bolos secos
podem ter serventia:
armas de arremesso
matéria-prima das hortas férteis
engodo para os glutões 
– ou apenas lixo.
Forçam-se sorrisos
na penumbra onde dançam os cavalos
contra as palavras malditas dos anões;
num estreito vão da casa deserta
um louco segue,
sonâmbulo,
à espera de um espada demoníaca;
pode ser que não aconteça nada:
as ameias não chegam
não serão altas que cheguem
mas desaconselham arremetidas.

#591

Tenho as asas que preciso
e um mapa sem limites
dando corpo ao meu voo.

24.5.18

Olhar inquieto

É este olhar inquieto
acometido por madrugadas baças
que levanta âncora à angústia.
O grito que cala fundo
vertido desde o avesso da garganta
as palavras tomadas pela abundância
uma certa soberba sem bainha
o cósmico destravar dos carris fulminantes
na leitura de um livro sem história
nas suas alvas páginas à espera de autor.
Sabia das paredes viés
no navio encalhado
e ouvia o murmúrio do mar em sossego
à espera que se congeminasse a tempestade
e o navio fosse despedaçado 
à mercê das ondas altivas.
Podia ser produto
da fábrica dos pesadelos:
um rumor sem rosto
a máquina de escrever enferrujada
sobre uma mesa apodrecida
a toalha amarrotada e enodoada
as manhãs parecendo o melancólico ocaso
as espingardas 
deitadas nos arbustos ressequidos
a matéria inverosímil dos estroinas
contra a árvore centrípeta
de onde partem 
as bissetrizes no mapa desembrulhado
a voz doída, cansada.
Visitei o lugar onde há romagens
e não entranhei o mito.
O olhar inquieto 
deita-se sobre paredes mais altas
e traz de volta histórias sem fim.
Oxalá sejam dourados 
os dedos assim contados
e as artes não capitulem aos beócios.

#590

As mais dispensáveis palavras
são as de muitas sílabas
e os advérbios. 
(Provavelmente.)

23.5.18

Os valores

Quais eram os mandamentos
na viabilidade do tempo gasto?
Valores” 
– preceituava-se, à boca grande
contra os imperturbáveis agentes
da desordem.

Ninguém sabia enumerar os valores.

As hostes dividiam-se
entre os que não capitulavam
na demanda dos valores
e os que não tinham remédio
se não contemplar a aridez nas imediações.
Um dileto provocador interpelou:

que interessam as fronteiras dos valores
se em cada um se aninha 
o cimento necessário?

Às duas por três
os deslimites antepostos no baraço do porvir
eram o valor 
todavia não reconhecido como valor,
a fina aguarela selando
em tela frágil e ininteligível
o compêndio dos valores.

(Mesmo que se reduzissem a zero.)

#589

Meto as mãos na terra. 
Espinhos vêm aos dedos
e não sobram cicatrizes para contar.

22.5.18

#588

A maré está alta.
Mais alta é a estatura
que trago no peito.

Workshop

O irrepetível troar do desfiladeiro
sem queixumes
sem deletérios adiamentos
a espada inglória no sexto suor
a sobremesa servida no sextante da lua.
Não conspiro nas margens do rio
transpiro no estirador de onde me vejo
e uno as pontas soltas
no estiolar das fogueiras apalavradas.
Juro os juros viáveis
entre véus que dançam no céu madraço
e mãos sucessivas abatendo-se no sinédrio,
secundário motivo da inércia.
Dizem:
é do correio letrado
a ordem da autoridade;
e eu pergunto:
para que serve a autoridade?

(Esboço, 
em silêncio,
resposta:
para ser desaprovada 
– inglório desmando 
arqueado sobre o pobre dorso 
dos zeladores da autoridade.)

junto com as mãos
a chuva vertida nas folhas rasas
e esmaeço as cores sombreadas
para voltarem em sua vivacidade.
Não o será
à conta de autoridade alguma.
Os acasos
continuam a ser voz tonitruante
embebida nos pilares 
das coisas estruturais.

#587

Meteórico,
o desabrochar da urze
daninha erupção de um vulcão
para inveja dos apressados.

21.5.18

Arquitetos do tempo

Pois o dia é breve.
O dia é tudo.
Virginia Woolf, “Orlando”.

Um amontoado de verbos
esgueira-se da manhã
no tirocínio vagaroso do funicular 
onde vem o dia
e sem saber se nuvens são seu leito
ou se um veludo soalheiro lhe empresta húmus.

O dia que se segue
não é este que é sua véspera;
é o dia que canta
no gorjear das pessoas que se encostam à cidade
no dorso leve dos relógios desacertados
no beijo quente 
à frente de relógios sem ponteiros.
Encontrem-se os braços turgidos
as maçãs dos rostos ruborizadas
e não é pela vergonha;
sentimos o pesar do tempo
sentimos a incandescente vela de onde vem luz
e arrasta-se o dia
desapressado
ele próprio esbulhado de dia que é
na imagem retida pelos dedos famintos.

Temos fome
do dia sem interrupções
e, contudo,
o dia emoldura-se na perene textura dos corpos
e deles bebe a mesma imorredoira eloquência.

Somos nós 
que fazemos do tempo 
o tempo que ele é;
somos insubmissos
e não capitulamos no vazio onde se consome
o tempo devorador:
não sabemos o que é
pois sem nós
não tinha o tempo seus tutores.

#586

Quantas destas palavras
são exuberante máscara
de uma alma mortiça?

20.5.18

#585

Dividido o espólio
sobrou um número
ainda maior.

A descoberto

A descoberto
sem telhado por utensílio
que as cores do céu 
não precisam de proteção.

Não é metáfora má
(não há metáforas más);
fora de horas,
porventura
no arremedo das paredes 
as mãos caiadas de medo
de serem o desmedo inverosímil.

O descoberto derriba o sagrado
pois máscaras são avulsos ardis
e a pedra forte
de onde desabrocha a água fresca
ensina a acolher os braços errantes.

Sem telhado por utensílio
na aventura do dia comprido
o corrimão em cima do abismo 
(por companhia)
na vagarosa degustação 
do tempo desamparado.

A descoberto
por imperativo do modesto desapego
sem o viés das cores embaciadas.

19.5.18

#584

Desenho
com o fogo da saliva
no púlpito do teu dorso
o cais do desejo.

18.5.18

#583

Se bebesse parágrafos
era apóstata
(confessava o escritor sem regras).

17.5.18

Dois gumes

Num rosto tingido a suor
o revólver desembainhado
costura a ira 
que não chega a ser alvorada.
O coldre descosido
deixa um líquido restolho
a outonal seiva
e o cachalote à deriva 
fica à mercê dos caçadores.
Em inesperado golpe de sorte
uma onda avassaladora colhe os caçadores
e o cachalote moribundo
refaz-se na companhia das balas perdidas
olhando-as como carrasco malogrado
como olha 
para o rosto assustado dos caçadores
boiando na espuma do mar.
O caçador torna-se presa
como quem vira um avental do avesso
e joga os dados outras vez
à espera de vez 
para regressar ao pedestal
onde se fruem as vítimas dos infortúnios.
As facas 
têm sempre dois gumes.

#582

Que não seja inquietação,
meu amor,
o amanhecer plúmbeo
que em meus olhos
todas as manhãs o sol se levanta.

16.5.18

#581

As lendas 
devem ser todas religiosas
(pois se se diz, insistentemente,
“reza a lenda”).

Léguas ganhas

As léguas são compridas de mais
ou os demais não se auguram confiáveis
e os passos longos são pequenos de mais
para todos os que se constituem nos demais.

Pode ser da bitola
ou apenas um erro de medição:
quem será o juiz do pleito
é interrogação sem resposta.

(O que deixa em aberto 
o pleito,
para deleite dos caóticos.)

Não devemos confiar na sinalética
nem nos palpites dos circunstantes
a menos que sejamos sozinhos
e da solidão tenhamos excruciante dor
e a planície sem fim
julguemos nossa sepultura;
antes a errância
as estradas embotadas nas encruzilhadas
o séquito de desvios e ramais
uma teia tecida na curvatura da mão gasta.

Que importa o tamanho das léguas
se o âmago está no caminho 
– no que já foi feito 
e no que houver por fazer.

#580

Não havia maiúsculas,
por preguiça:
nas maiúsculas
medra a demorada altivez.

15.5.18

Sem medo

Fujo do medo
do medo que não sei ter
do medo que cobre as veias de cinzas
do medo a pedir meças ao medo.

Nas velas atiçadas contra o vento
esboço uma falésia asilo
e do guardanapo amarrotado
retenho as moedas que afugentam 
malignos espíritos.

Não há lugar ao medo
sem ser coragem desassisada
sem conter uma demencial audácia
que arremete contra as muralhas do vício.

Fujo do medo
não por ter medo
apenas 
por ter medo de vir a ter medo.