8.6.18

O ministro

Ministro santo
que tutelas as pastas todas
enfeita quinze minutos da tua atenção
com framboesas diletantes,
poemas de água,
siracusas vertidas em águas lacustres,
lábios retocados com facúndia 
e mostra
(em encenadas palavras
com o beneplácito de catervas de conselheiros)
atenção aos suseranos
em ditirambos não anotados
em versos roubados de esquecidas aspas.
Mostra-te
opíparo de tua personagem
mostra
como escondes a vulgaridade
mostra
como tens os plumitivos sob cordel
(em jeito de marionetas)
e prova
que os ineptos são senhores do mundo, 
mostra, mostra, mostra
tudo à mostra!
Ensina
ministro santo
que a medíocre estampa
tomou lugar no mapa de tudo
e que tu
putativo santo ministro
assobias vacuidades
aclamadas pelo séquito como naco de ciência
e ostentas obesa vaidade
típica vaidade de quem se sabe meão
e disfarça a condição
sob o opúsculo da vaidade.
Podes ser ministro, santo
ou santo, ministro;
mas deixa-me que diga
que não sou pasto para os teus ardis,
ministro farsante.

7.6.18

Repertório

Logro o copo raso
a saliva deitada no arco-íris invernal
no recolher obrigatório na janela talismã.

Logro, este contratempo que arrependo
não soubesse a voragem dos mendazes
o tira-teimas sem prazo.

Logo depois da noite
em coreografias sonhadas no dorso da lua
o sal imenso acastelado no desaguar do rio.

Longânime cruzeiro
na estepe dourada à espera do deserto
a longuíssima avenida sem toponímia.

Litania sufragada por cantares esfíngicos
o tabuleiro cheio de peões
na revolução quadrada de estrofes sem freio.

Logro o peito salvado
um logro desapalavrado de cicatrizes
o penhor imenso da claridade convocada.

#610

Aguardo as fraquezas
no incêndio levitado
desde o fundo de um copo.

6.6.18

#609

Manifesto anti metrossexual
(e poema quase visual):
trago em mim
pelos no peito e nas pernas
(e noutros lugares que não posso mostrar).

Custo de oportunidade

Quanto custa um anjo?
Deixemos para a contabilidade dos faraós
o exato valor das extravagâncias
e a nós sobram os deleites em agenda
(e os que dela estão ausentes).

Quanto custa o sonho?
Um módico de sono
e a imperturbável feição de um anjo
não sobressaltando o olhar resguardado
não incomodando o arquétipo do sossego.

Quanto custa um deputado?
Um sonho mal adestrado
mal passado pelas águas de um pesadelo
em ativa fúria colorida
na paleta dos soluços tonitruantes.

Quanto custa um palco pomposo?
Um opíparo manjar ao deputado
um manancial de pós que endemoninham
uma odalisca curvilínea
uma sinecura ainda mais honrosa.

Quanto custa a tela negra?
Um palco sem fundo
um palco dançando nas águas indiferentes
no cinto afivelado da destemperança
no oráculo vaiado pelo pretérito (ancoradouro).

#608

Pioneiros para quê,
se o pacto se estilhaça
sob o corrosivo olhar alheio?

#607

Pode ser um olhar, 
apenas
e a paisagem do tamanho do mundo
cabe dentro de uma mão.

5.6.18

#606

(Variação #2 do #604)

É diminutivo 
o pergaminho de cidade?
(Se as vilas não abdicam de vilas serem
mesmo havendo promoção a cidade.)

#605

(Variação do #604)

Vilas entronizadas cidades
deviam ser vedadas
de ostentar galões de vila.

#604

Há vilas tornadas cidades
que não saem do armário
e vilas perseveram seu nome.

Charada

Nas armas terçadas
o jugo de uma bênção
bênção porventura pagã
na paga das juras alinhavadas
alqueire pesado de fardos de outrora
na embainhada fortuna silenciosa. 

Medem-se os palmos
nos rostos carregados de usura
e os fiéis escudeiros costuram iras vãs
no parapeito onde, 
deitadas,
sereias sem sono 
insinuam luzes estioladas. 

No recobro das naus
profetas fora de água
assoberbados pelas linhas rombas
e pelas arestas vivas da chuva
proclamam sua humilde reverência
na esquadria do luar envergonhado. 

Não têm dono
os cavalos furtivos no prado ainda invernal
na oposição aos amestrados varões
luminárias incandescentes 
da misoginia dos sentidos
sindicalistas desapoderados de trono
na risível retórica sem verbo. 

Às pontes sucessivas
prometem-se noivas melancólicas
sem a cadeira por perto
no inverosímil desfalque das juras
em pagas contratadas pelos juros em atraso. 

Caminham vagarosamente
os pederastas do tempo
autoproclamados
imperadores de todas as coisas
esgrimindo sua batuta de autoridade
mais altos até que deuses sequer imaginados
oferecendo uma paz oblíqua
e o esquecimento como pretexto
para a letargia dos demais. 

Não sobram navios
nem espadas
(ou apenas espadas circuncisadas)
nem cavalos
nem noivas ajuramentadas à glória
nem pontes
(quem sabe, 
demolidas por ignaros senhores de guerra)
nem militantes da sabedoria à prova de bala. 

Sobra
um trovão medonho
as fundações estremecidas
os frágeis cristais estilhaçados
e a fome inteira da página seguinte
em seu almocreve banal
o fado nunca anunciado
por druidas imersos em almotolias gastas.

#603

Estas palavras líquidas
trespassam a carne
e dobram o braço à mentira.

4.6.18

Cascadeur

Como um cascadeur tresloucado
o ímpeto a transbordar de suor álgido
em sua cegueira determinada
na exibição genuína de demência
antes de levar o sustento para casa. 
A multidão extática 
aplaude as reviravoltas ensandecidas
fica quase sem respiração
no fio da navalha do cascadeur
A multidão
aprisionada num paradoxo
pois sobe-lhe o coração à boca
ao ver o cascadeur beijar o precipício
mesmo sabendo que a função 
está milimetricamente nas suas mãos. 

A multidão
consagra um herói
mesmo sabendo que não é. 

Tanta a condescendência se pôs na função
que só um petiz de quase bueiros
notou:
cascadeur
traz peça de feminina roupa interior
negligentemente espreitando 
desde a fatiota de herói
e ninguém
(a não ser o petiz franzino)
deu conta. 
Logo se descobriu
(em descoberta tardiamente selada
pelo então petiz franzino)
que aos heróis tudo se perdoa
(até os lascivos desvios dos cânones);
ou então
os cascadeurs
conseguem anestesiar as hordas.

#602

No tribunal das intenções
todos são inocentes.

3.6.18

Palavra de honra

Palavra de honra
que honro a palavra
até quando vem com o sal desbotado
até quando chove sobre a chuva
na intemporal arcada sobre o chão,
palavra de honra.

Palavra de honra
que a palavra é de honra
sem a degenerescência do azedo
sem a litania dos absurdos
perfilhando as modas sem arautos
perfumando as linhas com néones,
honra à palavra.

Palavra de honra
que é de honra a palavra
e não minto às mentiras
nem digo verdades às verdades
(nenhum delas precisa da redundância),
palavra à honra.

Palavra de honra
na honra apalavrada
e nos juramentos transidos pela honra
que descreio nelas
(palavras)
e talvez não estejam conjeturadas
em seus pergaminhos
(da honra).

Mas isso sou eu
censor da bolorenta objetividade
capataz das provocações lineares
amotinado contra as grilhetas dos sentidos
em imerso copo de águas barrentas
sem saber o que elas escondem
sem saber que desonrosas 
são as palavras juradas à honra
e que de honra é qualquer palavra que seja
não interessa a sua autoria
não interessa o mensageiro
desde que sejam ditas
na penumbra do silêncio
e por elas
(palavras de honra
e as outras, em antinomia)
o silêncio
em sua densa raiz quadrada
seja palacete.

#601

À consideração:
não faltem apelos
aos desaprovados pelo destino.

2.6.18

#600

Hipóteses sem cadeia
nas ideias sem ancoradouro
e o caos como palco (s)em espera.

Dia da criança em atraso

Dizem:
quando se é criança 
temos pressa;
quando se é adulto
sentimos falta da infância.
Nenhuma das duas anotei 
no caderno das memórias.

1.6.18

Contradição de termos

Timoneiro
em causa própria.
Testa-de-ferro
de idiomas párias.
Mandante
de sonhos amanhecidos.
Intérprete
de mãos contrafeitas.
Tutor
de desejos por franquear.
Autor
de marés sem conta.
Asceta
dos incongruentes devaneios.
General
de areias desemproadas.
Faraó
de cidades absolutas.
Transmontano
de penhores algarvios. 
Profeta
do silêncio.
Ator
em palcos itinerantes.
Jogador
de chapéus em barda.
Lugar-tenente
de árvores matriciais.
Cozinheiro
em jardins arrumados.
Esteta
no ermo das conspirações.
Perito
sem compêndio a tiracolo.

#599

Corpo diplomático:
enverguem as farpelas vistosas
dancem na vaidade da usura
e afocinhem na guerra.

31.5.18

Cidade

Dentro do passaporte
a cidade
o veludo sem tecido
a argamassa do poder sem rosto.
Por dentro da cidade
o passaporte
do olhar sem limites
para colher nas pedras da calçada
um vestígio do ser sedimentado.
A cidade é passaporte
para incontáveis histórias por saber
que de muitas serem contadas
não chegam as páginas inventariadas
em passaportes sem rosto.
Pois às cidades
pertence o rosto 
– seu passaporte.

#598

Esta luz matinal
desmaiando na minha boca
quimera que medra do meu corpo.

30.5.18

A maré está contra

Esta é a árdua condição
de um homem sem podriqueira à ilharga:
vê-lo em vetustos olhares
sujeito aos esgares que dele escarnecem
sujeito à extorsão dos cânones
sujeito a ser pária fora do aquário
enquanto os ladinos profetas da situação
não abjuram as entorses de que são fautores
e tornam-nas medida corrente
o estalão que passa a sê-lo
em vez de leito para a condenação dos pares.

#597

Para o tempo 
é sempre aniversário;
o tempo 
é a coisa mais envelhecida que há.

#596

Arregaço o olhar 
para nele abraçar 
toda esta leva 
de talentos insofismáveis.

29.5.18

Os marialvas

A grande previsão:
a astuta arrumação 
dos pedonais varões na estulta sala
com vista para a parede,
para a parede da mesma cor negra 
da sua risível facúndia.
Bravos, 
tais marialvas
cultores de sintomática fiesta
onde passeiam sua virtuosa falta de coragem
colecionadores de damas incautas
maus amantes
egoístas sem remissão
seguidores da azul e branca bandeira pátria
garbosos no cliché de antanho
saudosistas do passado
desconfiados do presente
(e em pânico
quando o porvir se desdobra 
em folheto moderno)
ensimesmados e iletrados
perspicazmente misóginos
(em confissão silenciosa
da sua inferioridade genética)
agricultores sem as mãos imundas.
Definição acabada
da inutilidade.

#595

Anda a porfiar
ser paráfrase de si mesmo.
Não é nem metade do que contém.

28.5.18

Toque de Midas

O lento deitar do dia
servido na maresia 
deixa o ar a levitar nas mãos
enquanto se sopesam os degraus 
entre o sopé do miradouro e a casa da partida.
Não será a estrelar figura deitada
a fazer-se meã
no avesso da noite dormida
a vertigem sem medida na boca do precipício.

Sem os violinos
a música ensurdece
e eu congemino as margens 
de onde se alinhava
a antítese da solidão.

Um fósforo acerta a chama em erupção
furacão promitente
entre a mansidão dos vales
refém do olhar insubmisso;
talvez se arranjem desenhos frágeis
e das fráguas indomáveis
um ciciar constante emoldure os versos capazes,
a cadeira onde se deitam poemas incertos.
Um chamamento audível
ecoa nas nuvens velozes:
não traduzo o idioma
ininteligível
mas soam musicais aquelas palavras
sílaba a sílaba
como se houvessem sido convocadas 
em substituição dos violinos.
As luvas perdidas no chão
pressagiam o inverno 
– ou então,
a finitude do inverno
e a imprestabilidade das luvas,
as mãos carecendo de liberdade
para seus poros respirarem.

O cais não se segreda
na passividade do entardecer.
Deita-se ao tempo fraturado
e dele esvoaçam os espíritos caldeados
de marinheiros datados.
O cais
recebe as águas amansadas
prepara-se para a noite que já é véspera.
Os improdutivos medos
perdem inventário:
já não se abespinham os desassossegados
nem se atemorizam os tementes do porvir
nem se encomendam ao desengano
os novos eleáticos do mapa apresentado:
doravante
em sucessivas camadas de fuligem desaprovada
filiam-se os corpos na sua filigrana
e os dedos percorrem cada milímetro
como se de quilómetros cuidassem.
Os corpos
caudais de rios desemudecidos.

Já não há 
medos transversais
penhores atrasados
espartilhos denodados
espadas dilacerantes adejando sobre as cabeças;
só há o rio 
que se acama em seu estuário
rio descendente de mitológicas figuras
rio
descendo na sua sede de mar.

#594

Esqueci-me
de todos os esquecimentos
e fiquei órfão a meio de um nada.

27.5.18

Ardina

Do pé para a mão
na boca da escuridão
sofre a carpideira
por ausência de choradeira.

Ainda perguntaram ao engenheiro
se não caiu no banheiro
ao que o troglodita desmente
com um sorriso benevolente.

O cavalo velho faz seu pasto
no jardim onde não há um casto
e o edil cavalga no pedestal
sem contar com o sujo avental.

Mais tarde, na cortina do nevoeiro
nas pontas de um ardina besteiro
veio um touro enfezado
desferir feridas no seu conto irado.

A donzela arrepiada
não conteve o seu ar de fada
e bebeu num trago a larga cerveja
desmentindo o pergaminho que a beija.

No poço do inferno
o coreógrafo fraturou o esterno
disse o aspirante a mentiroso
na alvorada do discurso asqueroso.

Não era grande o mal que vinha ao mundo
entre tanto homem infecundo
pois eram lentes embaciadas
que contavam histórias desairadas.

Eram três os juízes encartados
e todavia peritos em serem distraídos:
prouvera quem neles confiou
que o bom juízo se desafiou.