13.6.18

#617

Nas linhas retas que desenho
contenho os apeadeiros escalados
a súmula que condena o adeus.

12.6.18

#616

É nesta moldura
que tenho o chão
aroma da terra untada com chuva
ponte sem os atilhos das margens.

Corpo mutuado

Aliso os veios
que vêm da parede
e se encostam ao meu corpo.
Desde há muito
não sei o que é sangrar
dos nódulos que são fonte de dor.
As baionetas depostas
figuras circenses de um arqueológico lugar
assinam a diferença dos tempos.
Figurantes
fazem fila de espera
pelo soldo prometido.
Pelo soldo
de fazerem de conta a qualquer coisa
na habitual encenação diária
o jeito para a contrafação
a argamassa deslaçada que se desprende
das mãos desatadas.
A coreografia está desenhada no mapa.
Junto metodicamente os dados 
e atiro-os com força 
contra o estrado onde se jogam os figurantes.
Desconheço as consequências.
Não sei os números 
depois de os dados parados.
Não importa.
Levanto o olhar
para onde me apetece.
E do entardecer
recolho em minhas veias
todo o sangue desatado de anteriores sangrias.
Agora
sinto que sou 
totalidade.

#615

Às de triunfo
hás de ter trunfo
às três tabelas travadas.

11.6.18

Avulso

Sem calhar
arregaço as mangas.
Lido com as sombras.
Teimo.
Teimo 
por dentro da teimosia
em simulacro de heresia
que não tem lugar próprio.

Se calhar
pretendo ser limão
em água sem nome.
Consumo as trevas.
Respiro.
Respiro 
com a sofreguidão do desejo
no triunvirato alheio
desde o palco sem luz.
E noto
o voo desassisado dos pássaros
a relva a crescer,
anotando os milímetros que cresce,
a clepsidra encerrada
o amanhã titubeante
o gato deitado no tapete 
as horas a desoras
e a honra da humilde condição,
meã.

Se calhar
convoco as páginas ao lustre valioso
canto hinos sem país
invisto nas ações em desperdício
fujo das fugas remediadas
e consumo
na vivacidade de meu peito
as palavras avulsas que sobem à boca:
gastronomia
piano
tábua
cotovelo
melodia
manhã
desassombro
sofreguidão
maré.

Sem calhar
dou comigo num lugar
e pergunto ao lugar
pelo lugar que é
talvez sem saber
que o lugar não guarda 
vestígio de um nome.

#614

Veneno 
em porção moderada
o antídoto metódico 
contra o perjúrio da alma.

10.6.18

#613

(Fotografia dos líderes do mundo)
Estão todos de braços cruzados.
Não se sabe se é rendição
ou letargia.

9.6.18

Algibeira

Conto os navios
que dormem na baía. 
Gostava de saber
se os marinheiros também dormem
enlaçados no sono dos navios 
– gostava? 
É só uma figura de estilo
que o sono dos outros
é não assunto
e o paradeiro dos navios também. 
Mas o olhar que se demora 
na finitude do mar
esbarra nos cascos enferrujados dos navios, 
que enforcam o pensamento,
distraem-no. 
Os dilemas insondáveis
fatiados em interrogações
tão solenes como invariavelmente inúteis
têm a mesma profundidade 
das âncoras largadas
do fitoplâncton aos milhões nas águas à volta
de um olhar perdido na lonjura do firmamento. 
Se ao menos 
o mar consentisse os seus segredos
o que guarda no avesso de seus fundos
que ouro nobre se dissolve 
no sal que o compõe;
se ao menos 
o mar
este ou qualquer outro
contasse o segredo da maresia
e nas ondas levantadas em forma de coreografia
democratizasse um saber,
as interrogações deixariam de ser 
fértil desejo de um nada
e o saber
assim democratizado
em coro com a resplandecência do mar
se transfigurasse 
num vão de escada
onde voz mais alta teria a banalidade. 
Que é da mesma cor
do sono dos navios
e dos marinheiros
acordados
ou em seu sono de reclusão.

8.6.18

#612

Sobre um cais esquecido
um poeta sozinho
em demanda das palavras vitaminadas.

O ministro

Ministro santo
que tutelas as pastas todas
enfeita quinze minutos da tua atenção
com framboesas diletantes,
poemas de água,
siracusas vertidas em águas lacustres,
lábios retocados com facúndia 
e mostra
(em encenadas palavras
com o beneplácito de catervas de conselheiros)
atenção aos suseranos
em ditirambos não anotados
em versos roubados de esquecidas aspas.
Mostra-te
opíparo de tua personagem
mostra
como escondes a vulgaridade
mostra
como tens os plumitivos sob cordel
(em jeito de marionetas)
e prova
que os ineptos são senhores do mundo, 
mostra, mostra, mostra
tudo à mostra!
Ensina
ministro santo
que a medíocre estampa
tomou lugar no mapa de tudo
e que tu
putativo santo ministro
assobias vacuidades
aclamadas pelo séquito como naco de ciência
e ostentas obesa vaidade
típica vaidade de quem se sabe meão
e disfarça a condição
sob o opúsculo da vaidade.
Podes ser ministro, santo
ou santo, ministro;
mas deixa-me que diga
que não sou pasto para os teus ardis,
ministro farsante.

7.6.18

Repertório

Logro o copo raso
a saliva deitada no arco-íris invernal
no recolher obrigatório na janela talismã.

Logro, este contratempo que arrependo
não soubesse a voragem dos mendazes
o tira-teimas sem prazo.

Logo depois da noite
em coreografias sonhadas no dorso da lua
o sal imenso acastelado no desaguar do rio.

Longânime cruzeiro
na estepe dourada à espera do deserto
a longuíssima avenida sem toponímia.

Litania sufragada por cantares esfíngicos
o tabuleiro cheio de peões
na revolução quadrada de estrofes sem freio.

Logro o peito salvado
um logro desapalavrado de cicatrizes
o penhor imenso da claridade convocada.

#610

Aguardo as fraquezas
no incêndio levitado
desde o fundo de um copo.

6.6.18

#609

Manifesto anti metrossexual
(e poema quase visual):
trago em mim
pelos no peito e nas pernas
(e noutros lugares que não posso mostrar).

Custo de oportunidade

Quanto custa um anjo?
Deixemos para a contabilidade dos faraós
o exato valor das extravagâncias
e a nós sobram os deleites em agenda
(e os que dela estão ausentes).

Quanto custa o sonho?
Um módico de sono
e a imperturbável feição de um anjo
não sobressaltando o olhar resguardado
não incomodando o arquétipo do sossego.

Quanto custa um deputado?
Um sonho mal adestrado
mal passado pelas águas de um pesadelo
em ativa fúria colorida
na paleta dos soluços tonitruantes.

Quanto custa um palco pomposo?
Um opíparo manjar ao deputado
um manancial de pós que endemoninham
uma odalisca curvilínea
uma sinecura ainda mais honrosa.

Quanto custa a tela negra?
Um palco sem fundo
um palco dançando nas águas indiferentes
no cinto afivelado da destemperança
no oráculo vaiado pelo pretérito (ancoradouro).

#608

Pioneiros para quê,
se o pacto se estilhaça
sob o corrosivo olhar alheio?

#607

Pode ser um olhar, 
apenas
e a paisagem do tamanho do mundo
cabe dentro de uma mão.

5.6.18

#606

(Variação #2 do #604)

É diminutivo 
o pergaminho de cidade?
(Se as vilas não abdicam de vilas serem
mesmo havendo promoção a cidade.)

#605

(Variação do #604)

Vilas entronizadas cidades
deviam ser vedadas
de ostentar galões de vila.

#604

Há vilas tornadas cidades
que não saem do armário
e vilas perseveram seu nome.

Charada

Nas armas terçadas
o jugo de uma bênção
bênção porventura pagã
na paga das juras alinhavadas
alqueire pesado de fardos de outrora
na embainhada fortuna silenciosa. 

Medem-se os palmos
nos rostos carregados de usura
e os fiéis escudeiros costuram iras vãs
no parapeito onde, 
deitadas,
sereias sem sono 
insinuam luzes estioladas. 

No recobro das naus
profetas fora de água
assoberbados pelas linhas rombas
e pelas arestas vivas da chuva
proclamam sua humilde reverência
na esquadria do luar envergonhado. 

Não têm dono
os cavalos furtivos no prado ainda invernal
na oposição aos amestrados varões
luminárias incandescentes 
da misoginia dos sentidos
sindicalistas desapoderados de trono
na risível retórica sem verbo. 

Às pontes sucessivas
prometem-se noivas melancólicas
sem a cadeira por perto
no inverosímil desfalque das juras
em pagas contratadas pelos juros em atraso. 

Caminham vagarosamente
os pederastas do tempo
autoproclamados
imperadores de todas as coisas
esgrimindo sua batuta de autoridade
mais altos até que deuses sequer imaginados
oferecendo uma paz oblíqua
e o esquecimento como pretexto
para a letargia dos demais. 

Não sobram navios
nem espadas
(ou apenas espadas circuncisadas)
nem cavalos
nem noivas ajuramentadas à glória
nem pontes
(quem sabe, 
demolidas por ignaros senhores de guerra)
nem militantes da sabedoria à prova de bala. 

Sobra
um trovão medonho
as fundações estremecidas
os frágeis cristais estilhaçados
e a fome inteira da página seguinte
em seu almocreve banal
o fado nunca anunciado
por druidas imersos em almotolias gastas.

#603

Estas palavras líquidas
trespassam a carne
e dobram o braço à mentira.

4.6.18

Cascadeur

Como um cascadeur tresloucado
o ímpeto a transbordar de suor álgido
em sua cegueira determinada
na exibição genuína de demência
antes de levar o sustento para casa. 
A multidão extática 
aplaude as reviravoltas ensandecidas
fica quase sem respiração
no fio da navalha do cascadeur
A multidão
aprisionada num paradoxo
pois sobe-lhe o coração à boca
ao ver o cascadeur beijar o precipício
mesmo sabendo que a função 
está milimetricamente nas suas mãos. 

A multidão
consagra um herói
mesmo sabendo que não é. 

Tanta a condescendência se pôs na função
que só um petiz de quase bueiros
notou:
cascadeur
traz peça de feminina roupa interior
negligentemente espreitando 
desde a fatiota de herói
e ninguém
(a não ser o petiz franzino)
deu conta. 
Logo se descobriu
(em descoberta tardiamente selada
pelo então petiz franzino)
que aos heróis tudo se perdoa
(até os lascivos desvios dos cânones);
ou então
os cascadeurs
conseguem anestesiar as hordas.

#602

No tribunal das intenções
todos são inocentes.

3.6.18

Palavra de honra

Palavra de honra
que honro a palavra
até quando vem com o sal desbotado
até quando chove sobre a chuva
na intemporal arcada sobre o chão,
palavra de honra.

Palavra de honra
que a palavra é de honra
sem a degenerescência do azedo
sem a litania dos absurdos
perfilhando as modas sem arautos
perfumando as linhas com néones,
honra à palavra.

Palavra de honra
que é de honra a palavra
e não minto às mentiras
nem digo verdades às verdades
(nenhum delas precisa da redundância),
palavra à honra.

Palavra de honra
na honra apalavrada
e nos juramentos transidos pela honra
que descreio nelas
(palavras)
e talvez não estejam conjeturadas
em seus pergaminhos
(da honra).

Mas isso sou eu
censor da bolorenta objetividade
capataz das provocações lineares
amotinado contra as grilhetas dos sentidos
em imerso copo de águas barrentas
sem saber o que elas escondem
sem saber que desonrosas 
são as palavras juradas à honra
e que de honra é qualquer palavra que seja
não interessa a sua autoria
não interessa o mensageiro
desde que sejam ditas
na penumbra do silêncio
e por elas
(palavras de honra
e as outras, em antinomia)
o silêncio
em sua densa raiz quadrada
seja palacete.

#601

À consideração:
não faltem apelos
aos desaprovados pelo destino.

2.6.18

#600

Hipóteses sem cadeia
nas ideias sem ancoradouro
e o caos como palco (s)em espera.

Dia da criança em atraso

Dizem:
quando se é criança 
temos pressa;
quando se é adulto
sentimos falta da infância.
Nenhuma das duas anotei 
no caderno das memórias.

1.6.18

Contradição de termos

Timoneiro
em causa própria.
Testa-de-ferro
de idiomas párias.
Mandante
de sonhos amanhecidos.
Intérprete
de mãos contrafeitas.
Tutor
de desejos por franquear.
Autor
de marés sem conta.
Asceta
dos incongruentes devaneios.
General
de areias desemproadas.
Faraó
de cidades absolutas.
Transmontano
de penhores algarvios. 
Profeta
do silêncio.
Ator
em palcos itinerantes.
Jogador
de chapéus em barda.
Lugar-tenente
de árvores matriciais.
Cozinheiro
em jardins arrumados.
Esteta
no ermo das conspirações.
Perito
sem compêndio a tiracolo.

#599

Corpo diplomático:
enverguem as farpelas vistosas
dancem na vaidade da usura
e afocinhem na guerra.

31.5.18

Cidade

Dentro do passaporte
a cidade
o veludo sem tecido
a argamassa do poder sem rosto.
Por dentro da cidade
o passaporte
do olhar sem limites
para colher nas pedras da calçada
um vestígio do ser sedimentado.
A cidade é passaporte
para incontáveis histórias por saber
que de muitas serem contadas
não chegam as páginas inventariadas
em passaportes sem rosto.
Pois às cidades
pertence o rosto 
– seu passaporte.