27.6.18

#633

Arrefeço
na orla do vulcão
o sangue esportulado pela ebulição.

26.6.18

#632

Se eu tivesse asas
dava caça às renas
só para obnubilar o pai natal.

Sem candeeiros

Apague-se a luz.
Subam os feiticeiros sem nome
as cortinas baças cingidas ao corpo
pois do nada se tira um módico
no bater de asas que o mundo oferece
em cascatas contumazes de águas barrentas.

Apaguem-se as luzes.
Os selos gastos não servem para correspondência
e, à sua míngua,
devolve-se o silêncio ao pedestal
sem contar com as palavras sussurradas
e as baías que alindam o entardecer.

Apagam-se as luzes.
A noite colabora com a angústia
juntando as luzes em seu desmaio
com a poderosa vigília dos rios fartos
na portentosa remissão dos vorazes delitos
turvando a deletéria camisa-de-forças.

Apagam as luzes.
Os anónimos repositores da insanidade
em crendo que a luminosidade é criminosa
um acosso sobre o rosto exasperado
e em antítese soergue-se a terapêutica sombra
o tempero sem receita na sala de espera.

#631

Recorto 
a lava imersa no sonho
e levo o murmúrio no colo sedento.

25.6.18

Carta registada com aviso de receção

Os lábios não pedem água 
– pedem beijos
pedem
todo o impudor e relíquia.

As mãos não estão atadas 
– terçam os versos fadados
terçam
toda a fecunda maresia.

O corpo não decai 
– é um pendão imarcescível
é um cais à espera de navio.

Os olhos não fingem 
– sorvem a água fria
sorvem
até as lágrimas assim enxutas.

A boca não emudece 
– corteja as cores sem paleta
corteja
todas as paisagens amoedadas.

#630

O nosso olhar toca o céu. 
O céu já não é 
território estrangeiro.

24.6.18

Impostores

No avesso da madrugada
ciciam os curadores da melancolia
imersos na solidão.
Contestados pela aurora
consomem-se no fingimento.
Deles se diz
que amesendam na comiseração
náufragos de um cuidado alheio
ascetas de suas próprias trevas;
chegam a lamentar-se de si mesmos.
São vendáveis
no púlpito onde semeiam os prantos
e são como famintos animais
falsamente vadios
que roubam mantimentos putrefatos
onde se amontoa o lixo. 
Às escondidas
ostentam toda a sua fortuna.

#629

Testa-de-ferro dedicado
o peito às balas quando é preciso
idiota útil como nacionalidade.

23.6.18

Anfiteatro

As mãos metidas na areia
levitam um solstício lisérgico.

Os dedos timoneiros
lavram as pedras sem paradeiro.

Aos olhos, a sementeira
lograda no entardecer radioso.

A falésia lesada pela erosão
murmura um adágio temporão.

Na esteira do horizonte
os novelos desemaranhados.

Na véspera da noite
a noiva eternamente amada.

Com a bênção do mar
à espera do ouro nas mãos.

#628

Lei de bronze:
mitos em molduras
sem espaço no tempo.

22.6.18

Simulação

Que é feito 
do paradeiro desta charada
que não se lhe encontra esteio
nem o olhar desembaraçado
ou tutores de rosto aberto
e as conjeturas 
perdem-se em sua opacidade.
Cozinham-se os fungos colhidos
e os pés dançados
fruídos em seu cansaço
são o mostruário da charada 
– um edifício como um suíço queijo
ou pavão aperaltado no ufano transitar
ou mandante que exige genuflexão
e tratamento de polé
ou daqueles vultos da cultura
que exigem reconhecimento de estatuto
(enquanto rezam loas à igualdade
no perfunctório exemplo
de quem se esquece do que faz
e limpa as teias ao que diz).
Que charada é esta
em que fazemos de conta
que fazemos de conta
enquanto
nos tempos livres
fazemos de conta 
que não fazemos de conta
ao fazermos de conta?

#627

Como se combinam
os ossos incorruptíveis
com os músculos indolentes?
(Ou vice-versa.)

21.6.18

Sombras

Na sombra
da sua própria sombra
desalinha do certo,
invólucro do volúvel,
contra as verbenas ditadas
na carruagem enferrujada. 
A sua sombra
não chegava 
para a sombra sua duplicada
em inverosímil combinação com prognósticos
demissão inteira no berço do futuro. 
Malquisto o cerne escolhido
ou apenas uma prece mal entoada. 
Enquanto 
de sombra de sua sombra
descuidasse o esquecimento
teria sempre o aval da meã condição.
Reservado 
argumentava a seu favor:
as sombras
são escudo imperativo;
se se derem em cultura fecunda
garantida está a armadura 
e o arnês necessário.
Não haverá
descortês mumificação que seja maçada.

#626

(Variação do #625)

Em Cantanhede 
há licor de merda
ou há um licor de merda?

#625

Em Cantanhede 
fazem licor de merda. 
Ainda não percebi se a dita cuja
é substantivo ou adjetivo.

20.6.18

Ganho de causa

O que ganhamos
na roda-viva do outono
na chuva fria, viável
se ao dorso da luz
medra um apeadeiro sem luz?
Ganhamos um lampejo de sol
nem que seja entrecortado por nuvens
um vadio corço de rompante
todo o líquido venoso em sorte mandada 
– e o que ganhamos?

A tabuada da manhã bate certo.

Somos nós
e as nossas mãos
fruídoras do dia restante.

#624

Não devas nada à filigrana
a não ser
a sensibilidade de cristal.

19.6.18

Quadro

Justapõem-se
o fértil do chão molhado
as cortinas de veludo
a trincheira escondida.
O copo baço lê a luz coada
e eu deito aos braços
o sal extraído de poços algures.
Oxalá
a combustão se antecipe
a uma possível idade do gelo
e a antecâmara da noite
seja o verso avisado.
Amanhã
quando sentir a véspera do entardecer
saberei do sumo da alma
as cadeiras derrubadas no porfiar tardio
e o fogo não fátuo
escondido em meu rosto.

#623

Nómada no inverno despojado
o iletrado comodato das almas,
em protesto.

18.6.18

Adulteração da causa

O preço combinado
na varanda sobranceira ao sobreiro
diz-se do diamante transparente
e do preço afinal não transparente:
fogem os mercadores
das asas que sobre eles se abatem
sabem
que se sobre eles se abatatem
têm de se abster dos ardis
e dissolvem-se os fartos proventos. 
Os compêndios ensinam
que são os compradores 
os soberanos. 
O regime das coisas
adulterado como está
(chamam-lhe selvagem, 
a este capitalismo)
desmente os compêndios. 
De onde se infere
que ou os compêndios estão datados
ou os endinheirados 
não foram por eles instruídos. 
(Sobra ainda a hipótese,
antipática para os advogados da espécie,
de a mesma ser uma adulteração de si mesma
decaindo no altar da usura
e da avareza.)

#622

O marégrafo
gare de mares tumultuosos
espelho do meu avesso.

17.6.18

Câmara fotográfica

Vejo
desde o camarim
as pessoas sem rosto
a sua letargia
a obediência anestesiada
um espelho estilhaçado 
nos ombros do proveito.
Coabito a sequencial memória
com o sargaço que vem nas ondas
destituído de âmbito
constrangido.
Dos que dizem loas
sem saber a quem
dizem ser sábios
iconoclastas sem pedestal.
Estou convencido
que são apenas
pederastas de si mesmos
ou peões com medalhas a tiracolo
impensáveis rostos sem pessoas
na refrega das tempestades sem nome.

#621

Ser do leste de si mesmo
é achar nos escombros
a reparação dos contratempos semeados.

16.6.18

Vela hasteada

Onde estavam 
as amarras do desembaraço
quando a noite se fez fiadora
e todo o sono tomou forma de estado?

A ferrugem da pele
e o contraste das arestas limadas
mostram a volúpia do tempo.

Que interessam
as juras nos olhos antracite
se a memória se dissolve 
na chuva desenhada?

Cresço na pirâmide 
que é a ossatura fiel
e desarmadilho o fermento mau.

#620

Liberto-me das metáforas:
de cosmética
não precisam as palavras.

15.6.18

Letargia

No semicerrado estio
insisto na voragem do dia
espero que as flores desabrochem.
Espero-as
nem que seja por um instante
para as emoldurar numa fotografia
e dedilhar suas pétalas
para dentro do olhar
na fusão dos sentidos entrelaçados.
A um outro canto
a multidão irrequieta açambarca o espaço
e, ruidosa,
prossegue no mais alto da indiferença
enquanto um vesúvio de pensamentos
enfeita as ruas
atapetando-as com o vinho frutado
bolçado pelos vulcões irreprimíveis.
Os eruditos
colecionam páginas e páginas
sem conseguirem reter meia dúzia de palavras.
Acontece à gente de boa estirpe:
os que se engalanam
em opíparos estamentos
e de seus dedos escorrem filamentos
com sabor a ouro 
– e depois é um fartote de vacuidades
um copo farto de frivolidades
e um prato cheio de ar 
(e do rarefeito).
Ah!,
prefiro os cães sem eira
os navios à deriva
as páginas quase caiadas
os cobres sem valimento
as luvas rotas
as rosas encardidas
os quatrocentos rios inventariados
uma árvore que transborda sobre a paisagem
e um verso vertical
no vício que transverso na colorida paisagem.
Aposto a fortuna
a que tenho e a que não tenho
(como os eruditos 
que convocam saber
que não é seu)
que amanhã
é a véspera de outro amanhã
e no parapeito dos lugares-comuns
nidifica a multidão.
Não há nada que seja diferente.

#619

Sem pré-aviso
desce o preto e branco
para gáudio dos penhores do medo.

14.6.18

Vantagem

Hoje ganhei uma década
nos escombros da primavera
entre o gentil ciciar dos pássaros
e os prantos sussurrados ao longe
por viúvas sentadas na orfandade
contra os relógios madraços
em aproveitamento do luar escondido
de cócoras diante do mundo
ou sobranceiro na varanda sobre ele.

Hoje compus o jardim de pedra
sem o asfalto por companhia
apenas o telúrico sufixo
dando corda ao teleférico da manhã
em falas cobertas por mãos encovadas
desabitando as teias enquistadas
à espera do pleito sem juiz.

Hoje assobiei uma melodia
que julgava olvidada no repasto do tempo
entre quimeras sem sal
e o lodo estético que dá ao cais
sem dar ouvidos às profecias
em apoio do lustre meticuloso
e dos estetas despreocupados
ao colo de poetas esconjurados.

Hoje esqueci-me 
das sombras densas
do arrazoado gongórico
dos recortes espalhados pelo chão
das palavras malditas
do exército de anões
da definição dos limites
do desenho do nevoeiro
das masmorras do pensamento
das pérolas desestimadas
dos celtas embebidos em sua boçalidade.

Hoje
ganhei uma década.
(Pelo menos.)

#618

Há ladrões
que só roubam sonhos
e não sei se merecem exílio.

13.6.18

Confiança

Deposito nas flores
o sal confiado de mim.
Saio do tédio da tarde
e caio no verão renitente.
Destilo as lágrimas de areia
no catavento tardio e gasto
sentado nas margens 
de um rio de março
entregue à folhagem sedosa.
Há nas mãos cansadas
uma plateia de sóis
o requebrado mar
que dança em suas ondas
um fio
que conduz os olhos fechados.
A confiança
é o mar mais apetecível.