2.9.18

Centímetro

Do lago
o dorso do nevoeiro
sobrepõe-se ao leito contumaz.
Os pássaros
em recusa de serem madraços
cantam o peso arqueado
sobre as arcadas do orvalho.
Ao céu
tira-se um pedaço
a favor da história do presente.

1.9.18

#709

Na tabuada dos verbos
escolho os que ornamentam o dia
com uma aguarela.

#708

A maré baixa
concede tréguas 
à soberba da maré antecessora.

31.8.18

#707

A vitamina da empreitada
fortuna em forma de receita
e não está à venda em farmácias.

30.8.18

Conhecimento

Eu sei
o vulgo sem rosto
no vulto do tempo.

Eu sei
às claras e sem medo
o tribuno sem fala.

Eu sei
se na espera me paciento
em remoinhos tangentes.

Eu sei
na hirsuta noite
os arbustos estéreis.

Eu sei
os nomes sem vogal
nas entrelinhas da memória.

Eu sei
na manhã madraça
a cor das estrofes desassisadas.

Eu sei
tudo o que quero saber
na volúpia do saber.

#706

A semântica atordoada,
covil da anestesia imberbe.

29.8.18

#705

(A melhor declaração de amor)
Quero mostrar-te o que não vi
e ao teu lado
saber o que era desconhecido.

#704

Conjuntura.
Esconjura.
Urdidura.
Fartura.
Partitura.

28.8.18

#703

Dar o braço a torcer
pode causar fraturas.
(Decálogo de um teimoso)

Sombra

Em segunda mão
antes que vá ao osso
a demão gasta
no cordão ralo da angústia.
A variável independente
onde antes se tinham os nomes
por casas.
Anuncia-se o verso grado
e a boca serve-se do sal
como rima estimada em página
desembaraçada.

27.8.18

#702

O silêncio
que arde por dentro do corpo
e massacra a alma.

26.8.18

#701

Sob escolta do peito modesto
contra a penúria da audácia
o dialeto que não sabe dos remorsos. 

25.8.18

#700

À espera do outono
os arroios
agoniam na aridez excruciante
de seus caudais.

24.8.18

Estética

Na numeração dos encantos
não nos façamos rogados:
a estética
nunca fez mal a ninguém.
E nem os apoderados da dita
(ou que espalmam a sua existência
no fogaréu da estética 
– como se não houvesse um mundo lá fora)
e o seu proverbial nanismo,
afinal apenas risível
(e não irritante 
– que não temos idade para torvações),
servem para aplacar a proclamação.
Consagremos a atenção
aos lugares belos
às palavras belas
à música bela
aos belos sentimentos 
– e a toda a demais beleza
que haja para apreciar
e por apreciar.
Antes que a feiura seja irremediável
e a estética
contaminada seja
pela tenaz das espécies em vias de extinção.

#699

Socalcos em chão não abençoado:
arte de um viveiro 
de mãos ensanguentadas.

23.8.18

Partitura

É nesta partitura
que desenho uma história.
Na partitura
onde liquefeitas estão as convulsões
e dos embaraços sobra
remota evocação. 
No papel cingido da partitura
cobro os favores aos oráculos
esconjurando-os na mealha das mãos. 
O desejo de ser
é a voz mais alta
o miradouro de onde o olhar
abraça a finitude do ocaso. 
Com a ajuda desta partitura
uma orquestra de acasos
sem o acosso do milimétrico sopesar
sem a jugular ameaçada
por cânticos certificando desideratos. 
Reifico a matéria viva
as linhas sem régua que abjuram segredos
e dou à partitura,
em sinal de reconhecimento,
palavras que namoram o mar vizinho. 
Antes que o mar se cale.

#698

Que aplauso,
se não o silêncio,
quero no ateneu?

22.8.18

Torre alta

Nos balcões estendidos na maresia
intercedo a favor da loucura
dos boémios sentidos da memória
no vulgar dedilhar das páginas em fervor
fecundas sementes do sangue corrente.

Intercedo
em flagrante viagem contra o vulgar
num apanhado de palavras improváveis
deitando os olhos ao céu de espuma
onde dançam
as boreais, lânguidas madrugadas.

Não protesto.
Não devolvo nada à ira.
Canto as músicas que encantam
as músicas quiméricas nos varandins alçados
em constante agradecimento à música 
– a ciência máxima.

Se a mim vierem as sortes
(se por sortes se tiver um fado)
quero que seja um singelo cosmos
poemas destravados
onde as palavras se sobrepõem aos freios
e eu tomo em mim
a inteireza toda
a combustão das coisas gélidas
os braços abraçados ao pequeno planeta 
– o planeta pequeno de mais
para tanta sementeira.

Se a mim vier a fecunda safra
que seja 
uma constelação de aromas
um vulcão indomável
a parafernália de sentidos 
com moldura em palavras
uma imensidão a reclamar lugar ao infinito.

#697

Passageiro no dorso da memória
costuro as nuvens válidas
no teatro desmentido de fadas.

21.8.18

#696

Maternidade.
Materna idade.
Eternidade.

A idade sem mácula

Remato o instinto
com a voz grossa dos intrépidos. 
Não era essa chama
que precisava. 
Dantes
quando todas as coisas eram líquidas
a fúria tinha ninho fácil
e o sono embaciava no altar do desassossego. 
Dantes deixou de ser. 
Revejo as cores gastas
onde se consumiram as pétalas caídas. 
Já não sei dos demónios. 
Já não conto as palavras nervosas. 
Já risquei do mapa das intendências
os sequazes da aflição. 
Retiro à candeia
as sombras tumulares
os feitiços gravitacionais
que descosem a fazenda frágil. 
Não preciso de decorar nada. 
As mnemónicas da madurez
vieram tomar o lugar dos ornamentos
dando a simplicidade ao rosto
ao resto que está sob tutela do olhar. 
Às vezes penso
que a leitura da pele
em seu presságio de rugas
é a certidão que precisamos. 
O conto da velhice adiada
é um logro. 

#695

Escolhes a loucura porque queres
ou és refém de perguntas sem patrono?

20.8.18

Estirador

Curvo-me 
ao deleite das palavras
o santuário escondido
tutor da leveza dos atos
o leite que compõe o sortilégio.
Mais do que processual
é escolha navegando na intempérie
sem o sobressalto 
a tiracolo das intempéries.
Afasto o restolho
que turva o olhar.
Afasto os remédios fraudulentos
(e os outros também)
que não há maleita 
que por eles interceda.
Curvo-me ao deleite das palavras
no leito sufragado
em pose ostensiva, um desafio:
é santuário
tenho a certeza
pois guardo as plantas que desenhamos
em sua instrução.

#694

Conta-me a velocidade da luz
do emaranhado novelo do tempo
e eu converto no esquecimento.

19.8.18

#693

O osso sem poço,
encomenda resgatada
no diuturno pesar.

18.8.18

#692

A árvore centrípeta
chão do mundo
fértil.

17.8.18

#691

Banho-me
nas cores desta maré
à espera de redenção.

Continência

Digo
o sangue eflúvio
nos contrafortes da noite
espada sem mão
na contracapa de um rosto vadio. 

Digo
as milhas que separam do sono
volteios sacrificiais no rumor do ocaso
no idioma dos nascituros
contra a opulência dos lugares-comuns. 

Digo
o jogo sem regras
nos lençóis desarrumados
o lugar benzido por definição
em murmúrios gravados nas paredes. 

Digo
às luas promitentes
as estrofes malditas
as palavras renegadas
desenhando os olhares que se reprovam
no esboço singular da liberdade.

Dito de modo outro: 
bebo na bandeira alvorada
de cores incertas
o módico de mim mesmo
à espera da voz para tudo dizer
e nada ficar por ser dito.

16.8.18

S. A.

Constante teimosia
constante adiamento
sufrágio indolor:
fingimento. 
Merecimento pedido
merecimento em preces
o desenho da esperança:
miragem. 
Navegação ao acaso
navegação sem timoneiro
o mar vadio:
desafio. 
Entardecer sem rosto
entardecer tardio
tapete ornamentado:
contrato. 
Desejo ajuramentado
desejo sem palácio
suor do avesso:
poesia.

#690

O curto prazo
é um esconderijo
que castra o firmamento.