17.9.18

#726

O mexilhão
é metáfora depreciativa
ou a virtude do marisco?
(Pois se o povo é o mexilhão...)

Chocolate negro

Nos termos do mandato:
enfarpelando fatiota de cerimónia
num apessoado estatuto
a eloquência a bolçar das veias
o aparato da importância subindo ao nariz
e a batuta hasteada no tempero da ralé.
Um educador.
Exemplar.
Gosta de saber que é exemplar.
O soporífero que ampara o sono.
Eis que desfila
donairoso
entre as plumas dos pares
mas ele
primus inter pares
dúctil referência
reverenciado como convém
aos penhores das medalhas de si mesmos.
Faz lembrar aquele cão
nos desenhos animados 
(Muttley, julgo ser sua graça)
que levitava de êxtase
de cada comenda pespegada ao peito.
Quando aterrava
nem a anestesia das medalhas
aplacava o fragor da queda.
Do canto aqui recolhido, 
uma sugestão no epílogo da generosidade:
organize-se lauto repasto em sua honra
movam-se as influências
(as possíveis e as fora do alcance)
para engrossar o numeroso exército
dos agraciados no dez de junho. 

#725

Destronadas as maiúsculas
sobrou 
o epicentro da miragem.

16.9.18

#724

Proíba-se
a demência das proibições
que as crescidas gentes
dispensam trelas e freios.

14.9.18

Centrípeto

Declaro-me 
plenipotenciário dos afonsos sem trono
confrade de trovas desalinhavadas
maestro dos mergulhadores em doca seca
artesão à prova de matéria-prima
zelador de águas-furtadas
criador de luas estanques
fiador das palavras gastas
oráculo embaraçado pela miopia
testamenteiro de segredos desacorrentados
lídimo asceta do compêndio da maresia
sonhador de sonhos sem limites
curador de galerias sem vento
marégrafo dos pontos cardeais
albatroz voando sobre as cordilheiras
paramento descosido da fé
mercador de lugares-comuns (hélas)
desmaterializador de ceticismos e catecismos
angariador de silêncios leves
calculador de danos e de sua reparação
segurador de almas
amanhecedor incorrigível
argonauta na paleta avulsa
artífice da ternura
penhor do desejo
indiferente às lotarias juramentadas
credor da paciência geral do mundo
viajante e amante
(não necessariamente por esta ordem).

#723

(Referendo sobre o equinócio)
Muda a hora
ou fica a hora muda?

13.9.18

#722

O dente fundo
é o que deixa 
a última impressão.

Desenho

Não atiro a pedra.
O lago sem ondas
é retrato preferível.
Os nenúfares
não precisam de naufragar.
Os cisnes
estão imersos em seu sono. 
O silêncio
é uma ilha valedoura.

Não escolho a ira.
A penumbra está gasta
sem consulta.
À noite prometi
o ouro do consolo.
Da pele
conservo a alvura.
Retenho
as palavras sem arestas.

Não transbordo os remorsos.
A culpa extinta
adormece no dorso da memória.
Não tenho
vultos em espera de exorcismo.
Às sombras contumazes
arremato existência.
Às águas malsãs
ergo dique.

Desenho a manhã
no púlpito das mãos.
As palavras segredadas
são a combustão do enredo.
Aos olhos férteis
a convocatória da reinvenção.
No silêncio profundo
as palavras adivinhadas.

Desço ao chão
da maré enxuta.
Combino estrofes
no parapeito da maresia.
Murmuro o amor
no corpo tremeluzente.
Esqueço
o devir por selar.

Sou penhor
do refúgio da alma.
Não me escondo
da felicidade.
No suor trespassado
construo a cidade esperada.
Com a docilidade
das palavras sussurradas.

12.9.18

Adia-se o adeus

Adia-se o adeus.
A casa-tribuna não arde
e nem o colostro se perde
na elegia dos pares.

Adia-se o adeus.
O testamento sem páginas
cobra do tempo
o viveiro das aldeias de pedra
e nem caminhos iridescentes
pontuam a destempo nas folhas vitrais.

Adia-se o adeus.
No imorredoiro amplexo da vida
sem o temor angustiante
sem os contumazes patriotas das trevas
sem esculturas esventradas pela ferrugem.

Apenas se adia o adeus
porque a palavra se esgota no seu sentido
e a marmórea tela agasalhada
ensina
que a palavra adeus é vazia
um deserto sem lugar assinalado
a vertigem sem fundo.

Adia-se o adeus.
Porque não há mister
de adeus dizer
e do adeus não sobram 
as saudades fundidas.

#721

Atreve-te
na incendiária centelha
o desejo que não conhece freios.

11.9.18

Tiro falhado

Não ocasionais ocasiões
párias são paridos
por suas não recomendáveis ascendentes.
Os feios nomes
afeiam as ascendentes:
que inominável injustiça
ao considerar
no mais fundo da análise
que piores são os párias pergaminhos. 
É voz corrente:
o opróbrio abate-se sobre as mães
sem culpa formada
nos párias que assim se formaram
em intenso e individual tirocínio. 
Partisse o ultraje o portal dos párias
e esconjurassem as mães do malévolo legado
e lugares assim compostos
seriam tributo à equação da equidade.

#720

O voo picado
sem remorsos do precipício
chamamento sem arestas.

10.9.18

Verbo falso

Armadilha-se o verbo
no logro de uma máscara
o sal ungindo todo o fingimento.

O verbo treslido
é a remitência dos vultos
e as absolvições são cortina baça.

O chão minado
disfarçado de piedoso paraíso
dá de si quando não tem remédio.

Dizem: 
o verbo não precisa de armaduras
precisa de um enfeite mirífico.

E das armadilhas povoarem a gramática
já ninguém sabe do idioma
tudo parece ininteligível.

Salva-se o fardamento das palavras
o celofane que disfarça a escória
uma sinuosa estrada torpedeada por beócios.

#719

A pele em escamas
sem rede de segurança
desalentadamente à mostra
na janela inteira.

9.9.18

Imaterial

Um remédio sem remédio.
O nevoeiro sem prazo.
O sorriso no canto da boca.
A porta entreaberta.
O gato preguiçoso.
A bússola perdida no cais.
A precisa delimitação do espaço.
O néon timorato.
A voz rouca que é tumulto em cena.
A criança com o olhar perdido na aurora.
Um balão sem oxigénio.
A fábrica dos sonhos sem paradeiro.

#718

Fortuita,
a erva daninha
não pesa.

8.9.18

#717

Mosto sem bolor
extorsão das palavras feridas
no púlpito da pureza incensada.

7.9.18

Antijogo

Dionísio protestou
na ciclovia que o distancia de casa
“tenho as rodas nas pernas
enquanto a maresia abusa da atmosfera”.
Dionísio não sabia ao que ia.

Desfiado por uma subida
acendeu os faróis
e fumou um cigarro
(se acreditasse, entoaria uma prece):
ele há milagres 
que encontram cais no inesperado.
Dionísio disparou impropérios
não poupando no vernáculo
(ninguém o ouvia)
(e desta vez 
os impropérios não eram 
contra a maresia):

a maldita subida
parecia só terminar no céu.

Arrependeu-se da analogia.
Nunca se sabe se um deus atento
tomaria aquelas palavras à letra.

Dionísio preferiu o antijogo.
Desceu da bicicleta
e no contratempo das pernas tremeluzentes
tomou lugar na esplanada
à espera do vinho salvador.
E à espera da descida prometida.

#716

No rastilho da madrugada
vozes de chumbo
entretecem conspirações.

6.9.18

Temperamento

Vamos às furnas
onde as mãos naufragam
sob as raízes de tudo,
sem medo da tepidez agressora:
tiremos dos claustros escondidos
(onde se enquistam esteios)
a base das interrogações
a frondosa abóbada da incerteza
em coloquial discurso sem arestas
e deixemos de véspera
os categóricos imperativos
as certezas assim sufragadas
o ensimesmar das palavras feitas
e cuidemos da estultícia própria
se daquele modo persistirmos.
Deixemos para memória futura
o travo doce da valedoura insignificância
pois de minúsculas ilhas não passamos
num abundante mar 
que nos devolve ao procedente anonimato
células só visíveis ao microscópio
de um olhar quase sempre desatento.
E depois de às furnas irmos,
e de lá erguermos as mãos inundadas
na água manancial fértil em humildade,
firmemos o passo no tapete singular
onde as fotografias de tudo se agigantam 
no olhar reinventado,
insaciável.

#715

Amanhã é sempre diferente.
Crua levitação
contra o pesar sombrio do tempo.

5.9.18

#714

Rasurado
e contudo
o nome medra.

Arrependimento

Rasgo o inverno
no interstício da noite,
plausível maré dos dias soalheiros.
Não será por ser pálida
a luz timorata,
embaciada em seus limites
por uma lágrima do mar.

À janela do porvir
bebo do cálice cheio
a maresia quimérica.

O solstício pode esperar:
ajuramentados estão os dias maiores
e a alvorada não demora
na intempérie do sono.
Depois de rasgado o inverno
um galope tonitruante
(sem dar conta do calendário folhear)
enfeitado por relâmpagos primaveris
e o estio espera na soleira
em sua insuportável demora.

Antes não tivesse 
rasgado o inverno.

#713

À moda de lamento (lacrimoso):
“tudo o que faço, desfaço”. 
E eu perguntei
se desfazer não é fazer outra vez.

4.9.18

Licenciamento

Pedi licença ao adiamento
que as varizes do tempo
não libertam espaço em proveito;
pedi licença ao atrevimento
que a insónia do conhecimento
não transige com o comedimento;
pedi licença ao aconselhamento
que a litania da liberdade
não é fautora de paternidade exterior;
pedi licença ao aproveitamento
que o lustro da memória
não aceita o soez oportunismo;
pedi licença ao aviltamento
que as apodrecidas palavras alheias
às vezes são caução da mesma má moeda.

#712

Meias são as verdades
sem eco no radar.

3.9.18

Roda da fortuna

Como se garimpasse
a roda da fortuna
no sortilégio alinhavado
dos versos estatuídos. 
Empilhados nos armários arcanos
o desafio salubre
na modesta revista dos modos. 
Talvez fossem fungos
ou uma bolorenta camada
em sinal de terem sido treslidos
os copos combinados
onde repousava a bebida combustível. 
Não houve tempo
para embainhar as perguntas a preceito. 
Uma revoada de palavras
atropelando-se numa vertigem colapsar
tomou conta das rodas dentadas. 
A roda da fortuna
foi devolvida à procedência:
infecundo oráculo domado pela cegueira
sem o préstimo das coisas não servis.

#711

Num exorcismo piedoso
as notas musicais
são o crédito ponderado.

2.9.18

#710

A corrupção meritória
é a que corrompe a mentira.

Centímetro

Do lago
o dorso do nevoeiro
sobrepõe-se ao leito contumaz.
Os pássaros
em recusa de serem madraços
cantam o peso arqueado
sobre as arcadas do orvalho.
Ao céu
tira-se um pedaço
a favor da história do presente.