7.10.18

Espelho

O homem ao espelho
desafia a sua identidade.

O homem ao seu espelho
desmente a raiz quadrada da alma.

O homem do espelho
terça um contrato contra si mesmo:
um colossal monumento
eivado de equívocos por toda a parte
o distrate da baça pele sem verbo.

O homem e um espelho.
Nunca foi bom remédio. 

#752

A ceia que marejo
no bolbo da mão
par perfeito do desejo 
em combustão.

6.10.18

Afluente

Cumpre-se a vontade. 
A candeia acesa
abre as portas à profecia. 
O estremunhado rosto
desmente a planície emaciada. 
É o pulsar das veias. 
O pulsar das veias
em sua fermentação vertiginosa
que deslaça as teias montadas. 
Nas veias
onde corre o mar sem peias
o estuário na ignição da trovoada sentida. 
As lentes
já não desfocadas
amparam a latitude do olhar. 
Desembestada a infecunda erudição
aos pés 
o tumulto sadio
do mundo inteiro por apreciar.

#751

Mutilada a decência
sobra a indiferença.

5.10.18

Mal menor

A testemunha amordaçada
na celebração dos bacantes
espera no escuro.
Estranhamente calma.
Não vê:
não pode ser testemunha.
Sente o ruído à volta
as movimentações (conspirativas)
uns vagos reflexos de sombras
acertando contas com a rosa dos ventos.
Fala-se um idioma que não conhece
vozes masculinas e femininas
umas infantis;
uma pessoa junto de si
ajusta a venda que embacia o olhar
a pessoa exalando um odor pestilento.
De repente,
ninguém sobrou.
Não sabe se foi ato contínuo
ou se esteve inanimada no entretanto
(o lugar ficou vago num ápice).
As mãos já não estão amordaçadas.
O que quer
é desvendar os olhos
voltar a ser o epicentro da sua vontade.
Não há ninguém à volta.
Nem vestígios da presença de alguém.
O lugar parece ermo
como se fosse 
um lugar virgem ao conhecimento humano.
Ao menos
a testemunha de coisa nenhuma
já não está amordaçada.
É um começo.
Um começo preferível
a continuar amordaçada.
Mesmo que agora 
a percorra um medo intenso
por não saber do seu próprio paradeiro.

#750

Não é um corpo puído
a metralhadora assestada
no coevo cruzamento da história.

4.10.18

Inversão térmica

Jurou
tirar as medidas à noite
mas ficou refém do sono. 

Escolheu
a bondade como tributo
mas foi corrompido pela vingança. 

Assinou
na lombada da verdade
mas murmurou ao ouvido do dissídio. 

Contemplou
a paisagem desde o promontório
mas o olvido dos óculos foi contratempo. 

Admirou
o sorriso perene da atriz
mas desfilou sorumbático. 

Prometeu
um mar inteiro de generosidade
mas abraçou-se à avareza ao primeiro sopro. 

Tirou
ao sol o sal ávido da vida
mas transigiu com a melancolia. 

Confirmou
a obnubilação dos vícios
mas não pesou o fardo da retórica. 

Adiou
pesares tidos como inúteis
mas fechou a porta à jovialidade. 

Assentou
a diferença no livro de registos
mas rasgou a página (e não por distração). 

Abrandou
os dias dantes céleres
mas não deixava de indagar o relógio.

Vestiu
farta roupa para a invernia
mas foi colhido por um soalheiro dia de verão. 

Aprendeu
que juras solenes
acabam na consagração do seu contrário.

#749

Dois dedos de conversa;
por pouco que seja
é sempre mais
do que uma mão cheia de banalidades.

#748

O gato desenha 
(com as unhas)
uma tatuagem na pele.

3.10.18

A invasão do verão

Porto, 3 de outubro, 29º. 
Continua a invasão do outono pelo verão. 
O embaixador do verão foi chamado 
ao ministério dos negócios estrangeiros 
do outono 
para prestar esclarecimentos. 
Argumentou 
que a maioria das pessoas condescende 
(e até apoia) 
a invasão. 
O governo do outono, 
sensível aos predicados da democracia, 
está a considerar a hipótese 
de levar à ONU uma mudança de calendário: 
o outono só começaria a 1 de dezembro. 
Ao menos, 
o verão deixava de ser um intruso.

Competição

Diz das letras estéticas
o gracioso recurso estilístico
uma parede caiada ao melhor estilo
imperador:
um jogo à sombra
dos esqueletos combustíveis
no parapeito dos dedos doces
uma constelação de ideias
em convulsão perene. 
Pelo pescoço da garrafa
(esta devia ser a tradução de bottleneck)
emergem corsários sem gema;
estão para a noite
como o mar retesado na embocadura da baía. 
Se esperassem pelas sentinelas
aquelas ouvidas no sopé do vento
da gruta sem fundo
à tona viriam druidas sem idade
talvez
sereias alindadas
na comenda sem estatuto. 
Um jogo na sombra
sem os devaneios pueris
e a ousadia dos néscios. 
Um jogo com as sombras
dedilhadas no aperitivo da loucura
enquanto se terçam
em exaustiva comitiva
as palavras que houver no bornal.

#747

Não se viajem complexidades
quando o precipício rema no interior.

2.10.18

Domingo farto

E se fosse confisco
a arte de entreter papalvos?

(Pois os papalvos
credores são 
de emagrecidas alcavalas.)

Estendiam-se mantas
atapetadas por egrégios manjares
sempre na mesmice da ementa
em margens debruadas a purulência
os copos servidos do vinho modesto

(e portanto abundante)

nos lírios deleites de música festiva
estridentemente de enfiada
pela goela auditiva
antes de os sentidos embaciados
serem tomados de assalto pela sonolência
e as proeminentes carnes e pilosidades
e o encardido dos membros
em exposição
coroassem o grotesco. 

À noite
depois de viagem não linear
e na companhia
da consorte amuadamente emudecida

(por um olhar inocentemente maroto
arpoado na direção de uma desvergonhada
ainda por cima 
de carnes mais avantajadas)

da prole que tem pilhas sem fim
da vizinha 
que sobrou nos despojos casamenteiros
suspirando e suspirando 
no dorso dos sonhos sem correspondência
e ele 
salivando impropérios a outros da mesma igualha
e depois de brevemente estacionar na berma
e, contristado, arrotar 
que o acidente de viação foi uma desilusão

(por falta de sangue)

entreolha-se no espelho
puxando as adiposidades 
no sentido oposto da força de gravidade
coçando as irritações cutâneas
no dealbar do descuido da exposição solar
tentando dar corda à teimosa cefaleia,
pergunta
por que têm de ser assim os domingos
e adormece antes que a voz murmure
que assim é
porque tal é o imperativo das convenções.

#746

Contrario o peso que curva as veias
e sou bombeiro do fogo 
que as consome.

#745

A cidade acorda. 
Ecoa as dores da alvorada.
Prepara-se para o sacrifício restante.

1.10.18

#744

O caso
é um ocaso
no acaso
do descaso.

Companhia de seguros

Em abono da armadura:
as setas todas
vertidas em remoinho
cavalgando no opróbrio a preceito
artilharia que sobrepesa no dorso
doses maciças de veneno
para não deixar peugada 
– estivesse o dorso inquietado
estivesse a atenção contaminada
estivessem os generais da insídia
no recobro da consciência
de atalaia
imorredoiramente
aferroando as farpas lancinantes
enquistando bolbos purulentos 
– o que não é o caso;
que 
não 
é 
caso.
A armadura
é o sobrepeso que dispenso.
Deito o peito nu ao infortúnio
sem temerária aventura
sem iracunda desfeita dos medos
sem a estulta heroicidade:
apenas um peito
o devir
e o fogo cruzado
de que não há ninguém
que presa dele não se preste.

#743

A maré cingida pelo crepúsculo
residência dos vultos furtivos
que enfeitam o dia.

30.9.18

Desagravo

Deportado
na linha baixa do horizonte
onde se desembainham cuidados
na súplica surda de quem os quer.
A terapia de antanho
não tem réplica,
apesar da ausente serventia:
protestam-se lágrimas, 
retidas,
e o colóquio pede um adeus.
Sentinela,
o desagravo milita a favor.

#742

Passagem de nível;
e quem o não tem?

29.9.18

#741

Deixa a interjeição em sossego.
A frase não precisa de tumulto.

28.9.18

#740

Tão carregado de razão
com a corcunda até ao chão.

#739

(Variação do #738)

No silêncio de chumbo
a voz consentida
pelos tutores das almas.

Sublime


De noite
sou o suor 
dos meus sonhos. 
A transparência
de paisagens sem contornos.
O bálsamo sem dores. 
Confio
nos versos avulsos
no velado sono. 

De noite
não respondo
aos ascetas encomendados. 
Retiro
as vírgulas
dos nós no meio das orações.
Retiro
todo o agravo
nas sílabas à boca levadas. 

De noite
levedo o pensamento.
Sem ónus nem equação. 
Nada hipoteco
na véspera de o ser
a conselho da maré promitente. 
E junto
com as mãos já não trémulas
as pilhas de páginas amontoadas.

De noite
refrigério do silêncio
arremato a doçura da manhã.

#738

Hino do moderno Torquemada:
tomara o maior tesouro
fosse o silêncio de muitos
ser sua voz.

27.9.18

Pedestal

Pedi licença ao pedestal
mas o pedestal era surdo.
Enviei 
sinais de fumo
código morse
fiz de mimo, 
até.
Mas o pedestal era cego.
E mudo.
E inerme. 
Não percebi
por que seu nome era
pedestal.

#737

Desta margem
onde (por fortuna)
encontrei na ponte uma miragem.

26.9.18

Procópio

Apanho as medalhas
o restolho venal
particípio passado com odor baço
e deixo o baço como legado
troféu da ciência estulta. 
Isso era 
quando tinha janela
e o rácio exultante
feitor da gargalhada do retrato alheio
sem reparar na gargalhada própria
com lugar cativo. 

Precisava de uma possibilidade de arnês. 

As causas são estéreis
quando se sufragam em certezas
num papel impecavelmente desamarrotado
na pele sem rugas
no levemente acidulado cultivo de frutos
com o amparo das divindades. 
Mas tudo isso eram agulhas
que cegavam a lucidez
não composta por lanternas resplandecentes. 

O arnês era a demanda:
para o abrir
e deixar cair o corpo na vertical
no muito provável 
exercício risível de mim mesmo.

#736

O choro extinto no rio,
onde secam as lágrimas
no amplo estuário em que decaem.

25.9.18

Situado

Matéria-prima:
punhal sem lâmina
lapidado no diamante crasso
sem erro por terçar
sem armas por equilibrar
apenas rotundas assanhadas
no horário tardio.
Convulsões estioladas
bardos em barda
arroz de tamboril
e um guardanapo fumado
na fogueira dos antanhos.
Roí as nozes macias
e a corda amarelada no sopé do sol
desautoriza o inverno.
Guardem-se as pazes furtivas
os tíbios preceitos da razão
as rodas rombas do risível caudal
e assente-se
em alvenaria convincente
o cimento frísio nas varandas acesas 
– e a lua
inteiramente envidraçada
devolvida contra a galáxia vazia
no inverosímil músculo da voz.