18.1.19

#883

Deles o aparato:
imprevidentes epicuristas
exibindo a soberba sem fundo.

17.1.19

Metáfora

Deixa-me uma metáfora
o aveludado rosnar entre vírgulas
o verbo lúgubre bolçando páginas evitáveis
no alpendre de onde se avista 
o cais esquecido. 

Permite-me a delicadeza
do favor não configurado
e no eclipse deixarmos a carne fervente
enquanto juram os ministros da lassidão. 

Desconheço a matriz
o volúvel ponto de Arquimedes
a desconstrução de todas as construções
num baú de desperdícios em forma de comendas
e exasperados penhores das solenidades
em seu fulgurante despenhar. 

Pudessem as auroras 
tingir-se do amarelo do ouro
em fábricas abandonadas,
tecidas por artesãos senescentes,
e a provecta idade,
sucedâneo de uma perícia singular,
não seria o venal desperdício sem valor.

Deixa-me uma metáfora
a uso;
uma que seja o retrato claro
o tapete em forma de filigrana
o poema reduzido a um punhado de estrofes
síntese perfeita
do muito que ficou por dizer. 

Uma metáfora:
do silêncio apalavrado.

#882

Atravessei portas
(as blindadas, até)
como se não tivesse saído 
do mesmo lugar.

16.1.19

Simplesmente

As noites impossíveis
cadastro cingido à alma
protestam um lugar.

Desde o nevoeiro hirsuto
uma voz 
teatraliza o fôlego necessário
o cónego desprendido na literacia dos sinónimos.

Habitam as casas vazias.

Acalmam o vinho no cálice em espera.

À desdita 
o rosto oferece o avesso
no imperscrutável arrojo dos imberbes.

A carta não tem remetente.

Na roda-viva do crepúsculo
entre acácias serenas
e o mar como pano de fundo
as mãos são coreógrafas da paisagem,
arquitetas.

Se fosse sabedoria a espessura dos instintos
deitaríamos à janela
os despojos infecundos
a praia cinzelada a carvão
os denodados mastins da volúpia.

Ficávamos
com a volúpia
toda para nós.

Egoisticamente.

#881

(Variação do #696)

Eternidade.
Má eternidade.
Maternidade.

#880

Por que é janeiro
desprezado pelos poetas?
(Se ele há tantos poemas sobre novembro.)

15.1.19

Talvez

Talvez 
fizesse uma salada niçoise
deste relógio embotado
juntando duas pitadas de rejubilo
à venda 
nos quiosques sobranceiros a jacarandás.
Talvez 
orquestrasse os dentes brancos
contra a madeira baça
em esperas sucessivas 
na militância dos eloquentes diseurs
de coisa nenhuma.
Talvez
atrelasse ao sol tardio
as pedras desemparelhadas pela tempestade
e o salitre embebido se tornasse vinagre.
Talvez
os gatos dormentes não saibam aritmética
e eu, desenganado,
persevero na lisura dos ingénuos
sem nada para dar em troca
sem nada querer receber 
no avesso do contrato vago.
Talvez
amotinado contra a diatribe do capitão
teça as velas em contravenção
sem medo das represálias
destarte destinadas ao fundo poço
da indiferença.
Talvez
poucas coisas façam sentido
poucas coisas sejam sentidas
e no meio delas
seja ator desorientado no palco sem chão.
Ou talvez
o mundo seja a perfeição indiscutível
e eu sua expressão incólume.

#879

Uma frase solta:
por vezes
o armistício exigível.

#878

Uma frase solta:
o descontexto
em forma de distração.

14.1.19

Renúncia

Os telhados abertos ao sul
na apalavrada jura
devolvida ao chão.

Subsistem as fardas alinhadas
em prejuízo da nudez
e da estética.

No papel onde estão as equações
bolça-se a vítrea bílis
o desaproveitamento cabal
em marégrafos com arestas e limalhas
o propósito da conspiração.

Nas agulhas terçadas
contra as furtivas veias
vagueiam os verbos rebeldes.

Todavia
as vendas não aderem aos olhos
pois os olhos são insubmissos.

#877

A história que não se conhece
embaciada por um biombo.
Provavelmente, a melhor.

13.1.19

#876

Como funciona o luar,
o imenso rosto caiado
que desarma o labirinto da noite?

12.1.19

#875

Convence-me
que os sonhos descarnados
se alinhavam no parapeito da manhã.

11.1.19

Má fazenda

A escolta formada:
como se fosse guarda pretoriana
os chacais dando o peito às balas
(ingénuos, não sabem ao que vão)
seguidos dos mastins
que aferroam furiosamente os calcanhares
dos diletantes próceres da dissidência,
à espera que desmaiem,
suas forças consumidas,
e assim à mercê da espada severa
dos generais. 

Eis a litania dos valentes. 

Um xarope contínuo
contra o pensamento afunilado.
O melhor elixir
para o contrabando do desalinhamento.
Dos bestuntos fidalgos
os que se besuntavam em latrinas
se lhes fosse garantido o unívoco pensamento
e a amestrada condução das almas,
sem lugar a dissidências,
sobra um desdém paradoxalmente magnífico.

Atrozes destes 
não são credores de indiferença,
que a indiferença é trunfo a seu favor. 
Na tradição do melhor pano 
onde se congraça a nódoa,
esses são a nódoa
(embora julguem,
com a altivez dos figurões
que a si convocam o pergaminho da importância,
que são o melhor pano).

#874

A razão é demencial. 
Por ela tantos mataram muitos mais. 
Se razão é lenitivo da morte,
desrazão será.

#873

Sou a manhã
marinheiro de águas outras
uma miragem com espelho.

10.1.19

Colecionadores

Os comezinhos colecionadores
das coisas variadas:
meticulosa função
os sonhos pontuados pelo item raro,
em falta,
conversando no idioma idiossincrático
talvez alimentando-se da coleção
cuidadosamente guardada
sob o seu zelo inspetivo. 
De resto
um desleixo que deixa ler
o afunilar num universo particular
e fora dele
tudo desinteressa
tudo se compõe de detalhes
e os detalhes, sabido é,
não arregimentam cuidados. 
Os comezinhos colecionadores
não frequentam salões de beleza
nem teatros e cinemas
nem gastam o seu tempo em livrarias
não assistem a touradas e futebol
desdenham da televisão
(a antiquada televisão 
que passa dias sem ser ligada)
e descuidam as lides da casa. 
Os comezinhos colecionadores
mergulham na solidão de si mesmos
só rompida pelo deleite das coleções. 
Aprenderam
que mais vale 
uma coleção cuidada com zelo
do que pessoas não confiáveis.

#872

Trovas em loas aos amanhãs novos. 
Ainda que estejam aprisionados
a um relógio soez,
trovas?

(Zeca Afonso passa na rádio)

9.1.19

Alabastro

O crepúsculo admite as primeiras estrelas. 
A noite não demora. 
No desmaio do pensamento
o rosto esquece-se da sua silhueta
quando o espelho o devolve
e não pressinto ser o rosto meu. 

Não há problema. 
Todos temos esquecimentos. 

Imagino os esquecimentos futuros
como se estivesse na dobra dos tempos
e o vindouro fosse meu achaque. 
Não é o caso. 
Não posso estar mais desinteressado
sobre os corredores estreitos
do tempo futuro. 

Tenho-me numa encruzilhada
de que não sou capaz de definir os contornos.
É esta soturna impaciência que me tolhe. 
Espero a noite de véspera
cansado antes do tempo
cansado logo que a noite se anuncia
cansado aos primeiros vestígios da noite. 

Lembro páginas avulsas
enquanto combato a tirania do porvir. 

Se ao menos o tempo se esvaziasse,
se fosse reduzido a um invólucro,
exterior,
fosse legítima a espera,
o sentido da vida,
e os sobressaltos se amputassem
pela simetria perfeita dos novos tempos 
– dos tempos sem tempo.

Combino com a consciência
o redesenho das costuras que me limitam. 
Não faço promessas. 
Não me empenho a juras fátuas. 
Não sei o segredo. 
Porque entendi que os segredos 
são uma miragem 
e por dentro da miríade de palavras que contam
segredo passou a palavra extinta. 

O entardecer ultrapassou-me
e agora já tenho a noite por palco. 

Não há problema. 
A noite não é imorredoira.

#871

(Variante do #870)

Se a mentira tem perna curta,
somos mentirosos
por termos duas pernas iguais?

#870

Deve ser mentira
que a mentira tenha perna curta,
em sendo escassos os coxos.

8.1.19

Antropologia

Se o farol estivesse fundido
quantos naufrágios seriam
quantos marinheiros pereceriam?
As avarias só têm holofotes
quando ganham palco. 
Por mais lições sobre o valor da cautela
não se confere o crédito exigível
da prevenção. 
Por mais que haja seguros
e uma gama de dissuasões
que nos precatam de contratempos. 
Nem sempre 
a teoria quadra com o que as mãos tocam. 
O que desmente o cânone antropocêntrico:
afinal, não seremos tão racionais
como nos ensinam.
Somos mestres na ativação da emergência
da reação que se monta em cima do joelho. 
Talvez esteja encontrada explicação científica
para tantas artroses
que diminuem a elasticidade dos corpos.
O que, por sua vez,
cauciona tanta incapacidade para a tolerância
afinal
o húmus para diferenças convertidas 
em conflitos
e a sementeira fértil para as guerras
o palco autofágico da espécie.

#869

Arrumadas as pendências
do mesmo modo que se varre o chão
e o céu, nítido, exibe o sol.

7.1.19

Comissão instaladora

É da comissão instaladora
o bulldog de atalaia:
a comissão instaladora
receia
que um tenente da loucura
esventre as portas e furte o património
do lugar a instalar
(ou que venha intempérie
que descomponha o edifício).
Dependendo das tailândias em espera
a comissão instaladora
tece suspiros inspirados:
aconselhada por catedrático insigne
(contra honorários de cinco dígitos)
a comissão instaladora foi convencida
que a exegese sentida
ajuda à empreitada.
As chaves ainda estão a ser feitas
com o pesado estrato
da fundação da coisa instalável, 
que não merece lustro de menor jaez.
Os instaladores
ufanos de pertencerem à comissão instaladora
apostam no efeito vulcânico
explosivo
da coisa a instalar.
“Uma revolução!”,
ajuramentam.
Interpelados
à saída da comissão instaladora
sobre o desiderato da coisa a instalar
os instaladores desconversaram:
- a governação é exemplar;
- temos tido uma invernia complacente;
- já ouviram o último disco 
da fadista contemporânea da moda?
- quem, dos presentes, já amesendou
no restaurante chic ao fundo da avenida?
- estão a par da última polémica
vertida nas capas dos periódicos?
Não sabem ao que vão, 
os instaladores.
A não ser
que foram empossados
na comissão instaladora.
Sempre enche duas linhas no CV.

Soneto (sem métrica) sobre o Marcelo

Dele dizem
ser figura paternal 
dele fazem
o popularucho presidente de Portugal.

Marcelo sobre tudo opina
da inseminação artificial das vacas do Barroso
ao telefonema para o programa da Cristina
à tática para banir o nazi verrinoso.

Marcelo emulsiona sua presença
em alter egos se desmultiplica
e muitos o têm em boa querença.

Se numa ovelha a mugir se aplica
logo do bombo se arma em sua parecença
a acabar na professoral veste que descomplica.

#868

Trago desta água à tua sede
e sabes como fundi-la
na alma saciada.

6.1.19

#867

Expropriação.
Por fora dos braços hasteados.
Até à manhã que vem 
depois do amanhã.

Dupond & Dupont

Sorriso e escárnio.
Académico e imperial.
Melancolia e saudade.
Esperança e prisão.
Sobranceria e ensimesmamento.
Conteúdo e substância.
Altivez e ilusão.
Marítimo e imensidão.
Dança e sacrifício.
Bandeira e vazio.
Noite e medo.
Desembaraço e consequência.
Letras e números.
Luvas e inverno.
Travão e modéstia.
Marasmo e preguiça.
Sinaleiro e desordem.
Cidade e volúpia.
Rostos e silêncios.
Movimento e maré.
Inércia e decadência.
Sorte e desafio.
Cais e espera.
Tirocínio e inocência.
Ordem e aluimento.
Avesso e espontâneo.
Música e paisagens.
Palavras e palavras.
Oposto e guardião.
Extravagância e direito.
Contingente e transição.
Rosácea e maçãs.
Sabor e liberdade.
Mundo e alma.
Palavras e (mais) palavras.

5.1.19

#866

Tome-se a nuvem por Juno
demonstre-se o inverosímil.

4.1.19

Crepúsculo

A lava 
que provém das veias
dispensa o sono propedêutico
na imensa planície
onde a lua não chega a entrar.

A seiva
que destrava os muros
convoca o suor hasteado
na fogueira embainhada
onde os estouvados aprendem a ser.

A lava
que incensa as veias
não se consome em vão extravio.
É nutriente matricial da fogueira amena 
em intempestuosa combustão.

O cais norteado
das almas trespassadas.