19.4.19

#1010

Abotoados os sentidos
em sentido
no proveito da desordem.

18.4.19

Braço de prata

Adivinho a noite. 
Inteirado do estado inconsciente
demando à sombra o pecúlio restante
a argamassa que se estratifica
no inútil arranha-céus. 

(Que estulto nome
que convencionaram para o longilíneo edifício:
alguém acredita
que arranha o céu,
ou que sequer perto esteja de o alcançar?)

De resto
são as distrações do costume:
uma polémica entre duas públicas figuras
o sorriso setentrional de uma starlette
o fogo de vista no fingimento reinante
a maré alta tabelada depois da maré baixa
uns inquisidores que açambarcam os costumes
a arraia-miúda, irrelevante
o contorcionismo de estetas inveterados
o suplício das atrizes
a súplica de mendigos e outros órfãos
a publicidade risível
os galanteios de forasteiros
(sem terem tempo
se não para as impressões superficiais)
o denodo da administração pública
as praias estranhamente desertas
(ou não fosse um soalheiro dia de inverno)
a batota fulminante
as batalhas terçadas na violência das palavras
a desonestidade intelectual
a farsa impante dos melhores sacerdotes
(mas nem assim rejeitados)
os penhores por um degrau de reconhecimento
toda esta multidão de meretrizes do pensamento
vendida a preço de saldo. 

Mas não se passa nada. 

Toda a gente dorme o sono dos justos. 
Desenganem-se os meirinhos da insatisfação
que ou é de seus pergaminhos insuportáveis
ou de um clamoroso erro de juízo. 
Já não há pedras no chão
para alguém ser chamado à pedra;
em todo o caso,
se as houvesse,
seria pouco misericordioso
frequentar a plateia
de onde se veria 
uma metade a fugir da pedra
e a outra a imitá-la na função. 

Não se passa mesmo nada. 

Ainda bem que extinguiram as pedras
e nos passeios qualquer um se pode deitar.

#1009

Falávamos do dilúvio, 
a validação da ravina
onde medrava o desespero 
que não era nosso.

17.4.19

Os anões mentais

O ritual
de fortunas madrastas
é um golpe seco
nos avarentos tomadores do futuro.
Não são 
se não meã condição
num ensimesmar mendaz
a cortina gasta corrida
sobre o céu sem costuras.
Ensaboam-se nesse ritual
como se fosse essa 
a única higiene que sabem.
Uma bíblia adeja a sua silhueta;
não é aura que pesponta
as fronteiras de si mesmos:
em boa hora se considere
que não é meã sua condição
por se tratar de autêntico nanismo.

#1008

Que juro se paga pelo que juro
se nem eu sei o que juro?

16.4.19

Xisto

Este o carrossel 
que me escolheu para cascadeur
Só uma ínfima parte de mim
aquela que rima com loucura
quase sempre domada pela hibernação. 
Não preciso de encorajamento
nem sei do equipamento à medida. 
De mim se consta
que alinhei por caminhos delimitados
e jamais transgredi nos deslimites. 
Não dou o braço a torcer. 
Quem de mim assim se pronuncia
não tem de mim
sequer
uma ínfima fração de meu relógio. 
Não se joga a circunstância
(ou apenas não concorre minha vontade)
de segredar
onde é o carrossel de que sou
cascadeur.

#1007

A régua e esquadro
no céu desenhado
o rastilho de avião apressado
para o tempo não morrer adiado.

#1006

Não foram perdidas
as madrugadas penhoradas
na fuga dos vultos noturnos.

15.4.19

Dispersos

Primeiro ato
I
Raça tresmalhada
no casino dos loucos
em mesas dardejadas por balas perdidas.

II
Em contratos selados
os mastins açaimados e seus donos 
com os dentes cariados na ufana pose iracunda.

III
Sem saberem o devaneio
os impecáveis sacerdotes conversam
no pulcro, acetinado balcão das virtudes.

IV
A rapariga tímida
não se intimida com os beócios ululantes
em vampíricos dizeres de sua tóxica condição.

V
O desarranjo do sono
não culpa a lua acesa
a não ser que haja lobos por perto.

VI
O homem passeava o kilt escocês
sóbrio como não é consuetudinário
a caminho de uma solenidade que não confessou.

VII
O marasmo era a soma da inércia
e todos estavam contaminados pelo silêncio
em acidental peregrinação pelo vazio.

VIII
Admitidas na sociedade secreta
celebravam com diamantes vertidos no vinho
à medida que a luz se deitava nos segredos.

IX
Imaginou-se ator
perdido no palco de sua confeção
e conseguiu ver até de olhos fechados.

Segundo ato
X
Era uma amostra de enredo
e as teias sobrepostas
embaciavam o entendimento da audiência.

XI
Já não era véspera de boémia
e elas usavam aspirinas como manobra
esperando ordens para espiar em nome da pátria.

XII
As nuvens imateriais
ofereciam-se antecâmara de um limbo
mas não passava de pesadelo suado.

XIII
Perdeu-se no labirinto
e as nódoas no kilt escocês
não disfarçavam a heresia dss Guiness.

XIV
A alcateia ouvia-se ao longe
e os aldeões lacraram as portas
hibernação imperativa para silenciar os lobos.

XV
A rapariga sonha com a vingança
a liquidação de um erário descultural
no desterro dos marialvas.

XVI
Um eremita foi a tempo da dissidência
e provou o proibido alqueire
não descansando enquanto não tresmalhou outros. 

XVII
Os bravos com mastins a tiracolo
imaginam-se bravos de verdadeira cepa
mas ninguém conhece uma coragem para amostra.

XVIII
Tropas nefandos
regurgitam as balas ao acaso
não contando com o efeito bumerangue.

#1005

Não é líquido que aconteça.
Nem sólido, ou gasoso.
Não vai acontecer,
digam lá de uma vez por todas.

#1004

Um rasgado elogio
é diferente de um elogio rasgado?

14.4.19

Pontes

A geografia das pontes.
O epicentro de onde irradiam 
as convergências.

As pontes 
deviam ser património da humanidade.

Todas.

Por os véus cerrados que se estilhaçam
e se há estilhaços que são bónus
este é o viveiro dos exemplos condensados.

Nas pontes
tornam-se opacos os calabouços
onde dantes se ferviam oposições
e as mãos dão-se
como exemplo de um corpo inteiro
não dando aval a pendências sem fundo.

As pontes são concórdia
sem oprimirem interrogações.

#1003

Um emaranhado de imagens:
paisagens sobrepostas
no corpo tatuado por vozes sem dono.

13.4.19

Codificação

Código postal:
desde a aliança com o vazio
faz-se a estrada no crepúsculo
contra a letargia sepulcral.

Código morse:
desde a noite estilhaçada
faz-se à estrada do lamento
a favor do sonho entorpecente.

Código de segurança:
exceção sem regra
faz-se da estrada gente com lustro
no desembaraço que não deve à vergonha.

#1002

A língua inglesa é admiravelmente otimista.
Dizem que estão “unwell
(à letra: “não bem).
Nós, brutamente,
dizemos que estamos mal.

12.4.19

O véu sobre o medo (subtração)

Dizia:
“não sei como é morrer” 
– e deixava à porta os ramos sortidos,
colhidos da investida furiosa contra
os impérios resguardados do mal.

Continuava:
“não sei como hei de morrer” 
– e armava os braços contra a lucidez
e em vez de comprar navios de porte
contava os que entravam no porto
sem, contudo, quererem cais.

Dizia, vezes sem conta:
“não acredito que vou morrer”.
Em sua defesa
inventariava um ror de perguntas
órfãs de refutações:

“como sei que morri
se não consigo ser testemunha 
da morte minha?
Como é a morte
se do desprendimento de tudo
se impossibilitam os sentidos?”

As aliterações que se jogavam 
no desarranjo de tudo
prefaciavam o santuário que queria seu;
a morte não sentida
deixara de ser uma inquietação.
Não era perene esta inquietação
(isso era uma certeza):
a crer pelas últimas notícias
a morte é uma interrupção.

“A morte deixara de ser uma inquietação” 
– convencera-se.
E nem assim
o medo cessou de ter sua maré
quando a ideia da morte 
subia podre à boca de cena.

#1001

Tara perdida,
imprestável
e ainda assim fecunda.

#1000

Sinto-me uma parcela de mim
mas às vezes
o meu todo não chega 
para o que sou.

11.4.19

Mão-de-obra

Não é emergência
o grito da cria
no úbere maternal.

Não é emergência
a chuva esforçada
no intervalo invernal.

Não é emergência
o lodo imprestável
na pia abismal.

Não é emergência
o farol bastardo
contra a haste sacrificial.

Não é emergência
a fala muda
no cemitério batismal.

Não é emergência
a prece chorosa
no resgate conventual.

Não é emergência
a voz furtiva
no palco matinal.

Não é emergência
o voto impeditivo
no clamor sacramental.

Não é emergência
o entardecer agravado
na véspera do ato final.

#999

“Os direitos do homem desnaturado”.
Ou os direitos desnaturados do homem?

10.4.19

Opúsculo

A que jogo jogamos
quando os dados são o avesso da lua?
Talvez arrumemos a barricada
a fábrica intensa dos sonhos 

– a fábrica que fabrica sonhos intensos – 

e ficamos a saber dos sortilégios em cadeia
e das inverosímeis escadas sem abismo.

A que jogo jogamos?

Oxalá os lúdicos instantes tivessem inflação
para agarrar os demónios pelos cornos
(têm-nos, não têm?)
e reduzir o marfim a quimeras
com que daria de comer aos miseráveis.

#998

O diabo paga portagem
na alfândega que guarda as almas?

#997

Como caxemira
que cai em corpo elegante,
dizer (ufano de si mesmo):
paradigma e corte epistemológico.

9.4.19

Cisma

Que cisma imóvel
o torniquete da vontade
que afivela o céu colonizado
por nuvens incessantes. 
Do cisma que se planteia
não tem recobro o respeito
como se tudo não fosse se não farsa
um fingimento sob o olhar tutelar 
do senador. 
Como locomotiva de alta tonelagem
o respeito que se aguarda
faltando só a imperativa genuflexão:
se ao menos os impropérios
tivessem devida voz
e os seus incapazes transbordassem da covardia
ah, então,
teriam império 
as palavras reprimidas
sem vírgulas de permeio
nem sílabas a salivar na boca
tudo em sua devida forma
pois aos rostos sem mácula
(os que não se apequenam 
no compasso onde se mede o inventariado)
não ficam palavras por dizer
nem meias frases a descair da boca
uma babugem pútrida,
como timorato descaimento do medo 
travado ainda a tempo
de soçobrar ao silêncio 
– ao silêncio
que é verbo do medo. 
Que ninguém se embeba 
no veneno da pesporrência
se seu desiderato for dar-se ao reconhecimento;
pois ninguém consegue sê-lo
se for seu o olvido do respeito.
Que ninguém cisme com o preceituado.

#996

Nunca avisaram
que devemos cair 
como os gatos.

8.4.19

Sentido proibido

Guardamos
na lombada do dia
o traço fino das nuvens
a baça lembrança
do porvir.

Há espadas gastas
na meada à espera de vez
e os artistas emudecem
na greve contra a febre 
das palavras.

As tochas ufanas
sublevam-se no copo mais alto
em prosa inflamada
por dentro das fogueiras que as 
ateiam.

Nos claustros
em doses razoáveis
a doçaria conventual rima
com os mendigos subtraídos
às ruas.

Não contam os verbetes rasurados
ou as estações de comboios abandonadas
na impressão venal dos cobradores
correndo até o fôlego se dissolver
dentro da tirania do vento irrecusável.

Pela noite
à hora do deitar
conto em sílabas
as palavras não ditas:
antes elas do que as palavras 
malditas.

Depois do inventário
ofereço-me aos sonhos sem paradeiro
a ossatura hibernada
na louca vertigem do insondável
em que amanhecem os sonhos.

Não saberei
se deles extraio matéria tangível
ou se prefiro o olvido
o propositado, exíguo olvido
para me não cegar com sonhos improváveis.

Hasteado numa bandeira sem rosto
exorto os cálices brandidos
a recusarem os sismos em que dançam
e resguardo-me nas ameias 
com o olhar humedecido
pelo vento montanhês.

#995

(Variação do #994)

As interrogações incomodam:
vê-las pela mão
é o eflúvio que sobe a palco.

#994

Que interrogações incómodas.
Interrogam o que está situado
e desassossegam espíritos educados
(eufemismo para “formatados”).

7.4.19

Degredo

Quem guarda a paisagem?

Quem cuida da moldura
onde está desenhada a paisagem,
quem lhe garante luminosidade?

Onde ficar
quando a paisagem se acanha
numa miríade de recantos
e quase todos ficam num esconderijo?

O que fazer
quando a paisagem ecoa
através de um vidro sujo?

Quem culpar
se a faro encontrar
vestígios de uma paisagem corrompida?

#993

(Fenícias, de Eurípides)

E todo este sangue 
lavado em lágrimas
à espera do esquecimento dos homens.