15.5.19

Não estrela cadente

No meu posto solar
soldado desarmado me apresento
tirando à sorte
se é da sorte que o dia vem falar. 

Já disse 
do muito que se pode dizer:
fui viajante em lugares muitos
de mitos recebi desmentidos
ouvi uma constelação de idiomas
e das paisagens tantas guardo os retalhos,
a minha geografia privativa
em orquestra afinada com gramática a condizer. 

Deste promontório em que sou sozinho
bebo as paisagens que me cercam,
vagarosamente. 
O vento capital esbraceja a fúria 
forçado que foi a ascender à cumeada;
esbofeteia quem ousou ser como ele, 
ousado,
mas não é infortúnio que emudeça 
a voz todavia contida
que amanhece as estrofes cinzeladas
no pontiagudo chão que recebe os pés. 

Sou
antítese de uma estrela cadente
o guardião da memória embaciada
a árvore frondosa na estepe
o caudal cheio ferindo o calcário
o tirocínio inacabado
a estola pousada no rosto encimado
as cinzas vetustas encomendadas aos meãos
e sou
matéria absoluta
campeão das interrogações
bactéria benigna
semente desfolhada nas mãos ávidas
contrato sem papel em assinatura falada
húmus da bondade discreta 
ponteiro do relógio sem paradeiro certo
novo de mais para desaprender
velho de mais para renunciar
miradouro de peito aberto
conspiração contra mim mesmo.

Das teias expostas
em citações ao acaso
obtenho o ouro perdido,
eu:
nómada fecundo
voz murmurada ao ouvido da noite
iracundo domesticável
e não,
estrela cadente, 
não.
Pois tenho este esplendor
guardado na ossatura funda
o esplendor que contudo se aviva no olhar
contra as homilias que atentam contra
joeirando as limalhas que rimam
com os contratempos.

#1044

No esculpir do exílio
torna-se matriz
a mão álibi.

14.5.19

Martelo pneumático

As ruínas da fábrica
pesam sobre os alicerces
em paráfrase de escombros que não tardam. 
O telhado decadente
arqueia-se sobre a ferrugem 
abraçada à cofragem desnudada.
Arqueado
o telhado dir-se-ia sufocar
a alegria que houve 
na prosperidade da fábrica. 
Não fosse
os operários terem desertado 
para a terra dos não vivos.
(Não fosse,
caso um desvio marxista
empenhasse o raciocínio,
desmentir a teoria 
da felicidade dos operários
enquanto operários).

(Estação de comboios da Pampilhosa)

#1043

Preto no branco. 
E não é isso
um poema?

#1042

Confissão:
sonhara académico ser
só para poder dizer
(gulosamente)
“corte epistemológico”.

13.5.19

#1041

Um espelho estilhaçado. 
A metáfora do zelo composto.

Pequeno manifesto anti-piranhas

O que são as pontes
se não um cais para a diferença?

Não será voraz
o apetite igual
o imperativo mesmo rosto
os gestos melodiosamente harmoniosos
a gramática sem dissensões
os gostos por decreto
o infecundo arrazoado da deferência. 

Avançam os relógios
sobre a inércia tiranete
o obnóxio respirar compassado
a página perfeita e sem vincos
a justaposição do mel tentador
sobre a mais apetitosa divergência. 
Avançam os esconjurados
numa estrada sem chão
talvez tutores de castelos no ar;
não é preciso o chão
se ele for a fértil condição de feudos
na mais infértil capitulação que se organiza. 
Não serão as rimas exigíveis
os olhares da mesma cor
os painéis todos com o mesmo debruado
as implacáveis comoções
os hinos de canto obrigatório
a homogenia. 

Desacertem-se os relógios
a teologia dos fusos diferentes
na escolástica da dissidência. 
Cozinhem-se os ingredientes inesperados
em conjugações verbais não canónicas
caiam as lágrimas
até no esplendor da heroicidade
e arrumem-se os varões iconoclastas
suspeitos de intolerância
próceres do seguidismo
anacoretas da terraplanagem dos hereges 
– arrumem-se 
em aquários contraproducentes
extasiados em suas próprias camisas-de-forças
imersos em seus próprios espasmos bolçados.

#1040

O silêncio em contrabando
antes que as palavras trespassem.

12.5.19

Worst case scenario

O semáforo constantemente vermelho
e a impaciência medra
latejando furiosamente nos olhos.
Arranjam-se as lantejoulas
para nenhum acontecimento:
a decadência da memória
afunda a lucidez
e as pontas soltas jamais serão atadas.
Ao menos
sobra um futuro.

#1039

Não a espantalhos
por serem sentinelas
e não: por estarem de atalaia.

11.5.19

Cabo Espichel

Atira a cor das tangerinas
desde o mais alto miradouro
e vê-la amadurecer
(a cor):
as tentativas não serão vãs
se forem tentativas;
mesmo que saibas perdido o jogo
à partida.
Ao entardecer
junta as mãos ao rosto
e empalidece com o desmaiar da luz.
Ao contrário do pressentido
não serás a mudez de ti.

#1038

Salto páginas do guião
sem da história perder o rosto.

10.5.19

Pecadores certos

Certos e pecadores
estamos escolhidos
pela absolvição.
Não por rezas
ou pelo selo abençoado
do arrependimento
ou de outra farsa qualquer.
Comina-se o feito
com os sais que são cáusticos
ou com a vergonha.
Remedeia-se o que foi feito
com juras de jamais outra vez
tatuadas na pele embainhada
sob pena de juros leoninos
em forma de ruína da alma.

Se não
pela noite
furtivamente
embuçados desapiedados
para o ajuste de contas
e doravante
o sono locupletado por pesadelos
não irrisórios
e a alma envergonhada.

Pecadores e certos
estamos promovidos.
Desmentem-se profecias
e os figurantes passeiam na indiferença
sem que a baía deixe de receber o mar
e a boca se encha de mentira.

Pecadores certos
e certos pecadores:
a fragilidade fortaleza
no império da carne que é para canhão.

#1037

Fui ao fundo da fuselagem.
As mãos apartaram a poeira
e trouxe o escafandro esquecido.

9.5.19

Muralha

Procuras a muralha
à prova de vendaval. 
Sabes o que é
não ser vendável
o ritmo compassado no obelisco
onde se resguardam as relíquias.
Não te apetece
se não a letargia;
não capitulas:
não têm préstimo os epitáfios
se as pedras cimentadas
consumirem o desejo da vida. 
São as impensáveis escadas
que intimidam?
Vacilas. 
Olhas pelos interstícios das nuvens
onde o vazio se esgota
na temporalidade do espaço vago. 
Desejas o impossível 
– antecipas, como hipótese,
ao raiar do dia. 
O diálogo pressupõe 
palavras e um par de pessoas
gramática apessoada
e substância do enredo.
Não sabes 
se os gritos que ecoam
são a aflição personificada
ou o aleatório esbracejar do mundo. 
Não sabes
se a miséria pertence aos abastados
aos gongóricos eruditos
aos campeões de si mesmos
enquanto se exibem 
diante do espelho 
– de um espelho
que não sabem estilhaçado. 
A pureza das condições é um quesito,
desaproveitável,
perfeitamente inútil
(ele há poucas coisas tão perfeitas).
Corrias contra o tempo?
Não:
corres a favor do tempo
porque o tempo traz-te em seu regaço
a mão não tolhida composta a teu favor. 
Admites os contratempos
as linhas entortadas que aceitam estrofes
o linho envelhecido que é teu caudal
a redenção não requerida
a ata desorganizada que dispõe o pensamento
um beijo adocicado da clepsidra futura
o sangue domado entre paredes estreitas. 
Aceitas tudo
a começar nos sobressaltos
(que assim deixam de o ser).
Pois descobres
que és a tua própria muralha.

#1036

Esta varanda
onde colho o mar
nas mãos.

8.5.19

Que sei eu?

Que sei eu
de metáforas impostas
das velas hasteadas numa vírgula do vento
do medo alfandegado em vultos perenes?

Que sei eu
dos colóquios órfãos de ideia
dos voluntários remates do dia
das onomatopeias sem rosto?

Que sei eu
dos nomes sem paradeiro
das armas por terçar por guerreiros sem corpo
da escotilha que espreita o aroma do tempo?

Que sei eu
das flores avulsas em jardins sem mapa
das divindades assinaladas 
da gastronomia estrénua?

Que sei eu
dos cavalos foragidos
dos prisioneiros à margem do verbo
das virtudes escondidas em cortinas baças?

Que sei eu?

#1035

O alfarrabista conserva o tempo
como nenhum retardamento de velhice 
consegue.

#1034

Apanho conchas
na areia da maré-baixa,
pétalas bolçadas pelo mar.

7.5.19

Conjurado

Hoje não há ardinas.
Não há sequer varinas.
Não há sãs narinas.

Hoje não compro jornais.
Não vejo da televisão os canais.
Não há poucos boçais.

Hoje digo poente.
Adio o demente.
Recuso estar doente.

Hoje colho alfazema.
Escrevo o “o” com trema.
Dedilho o açúcar do tema.

Hoje não digo futuro.
Não parafraseio o escuro.
Não viro o avesso do osso duro.

Amanhã esqueço-me do hesterno.
Desenho o parapeito do moderno.
Aqueço as mãos no meu fogo eterno.

#1033

Conheço
o rosto da madrugada
a cura para doença nenhuma.

6.5.19

Paz fingida

O controverso verso
despachado de jato
sem solilóquios nem mesuras:
de diplomacia
não foram embolsadas lições
e os punhos de renda
não passam de metáforas
(assim como acontece a muitos católicos
que se confessam não praticantes). 
O pesa-papéis
traz esquinas aos documentos
e nos salões 
na pose habitualmente aristocrática
os associados só usam lima
para aparar vivas arestas das unhas
(e para enriquecer cocktails
de cuja ciência se encomendam aos peritos).
Termos em que
na antecâmara das embaixadas
as palavras abrem feridas
abundantemente sanguíneas
(fazendo lembrar
as toranjas igualmente sanguíneas
que entram em certos cocktails).
O que tudo compõe
é os diplomatas não prescindirem
dos punhos de renda
enquanto salivam impropérios e detrações
em idiomas não escrutináveis
na tabela das traduções. 
Todos fingem,
a bem da concórdia. 
Foi assim que se inventou
o pão podre,
essa delícia sem pátria.

#1032

As sombras amaciam as mãos
e sei-me regente 
do fio do horizonte.

5.5.19

#1031

Só o bocejo do mar
em pano de fundo
e a trégua a banhar os ossos.

4.5.19

Entorse

Dei do de dado
podia oferecer. 
Desta tautologia
sou refém
mas do resto
de acusações não seja destino. 
Do dado em pose desprendida
ao dado como jogo jogado
ao dado não sopesado:
de tudo o dei
quase não arrependo o dado. 
E este é um dado
que não estou seguro
se o posso dar
como dado.

3.5.19

À vista

Não vejo 
o que as pessoas veem.
A venda avinagrada
que é a vista outra
avaliza a mudez da vista
quando à vista própria
só se desvanece o horizonte vendável.
O vinco do olhar
não se perde em varonis exaltações
vulgares enxurdos que se desaprovam.
Vejo o que a vista avista
e contento-me
com a paisagem avulsa
os vestígios de vertigem
e as sentidas lágrimas devolvidas
ao mar de onde provieram.
Vejo o que os olhos outros
não veem através dos meus.

#1030

Como aquelas obras,
os andaimes nunca desmontados. 
(Work in progress)

2.5.19

#1029

Semente. 
Sem ente. 
Se mente.

Diurese

Cuidadas as feridas
agora as mãos desocupadas
para a genuína ocupação:
cuidar dos tempos normais. 
As barricadas
já são só um pesadelo
arvorando a sua condição a espaços. 
Às cicatrizes
a função de mnemónica
que aproveita aos tempos vindouros
(se a necedade dos homens
não se sobrepuser
num vangloriar estulto
que mais não é do que uma vã glória).
Os dias correm planos
agora. 
Os sorrisos retomaram um lugar
nos rostos quotidianos
o sinal da temperança que se enquista
no ar que parece mais leve. 
As palavras não saem a custo. 
As pessoas querem multiplicar as palavras.
Aprenderam a irrelevância do amanhã,
que pode soçobrar ao menor contratempo. 
Antes as pautas alinhavadas
pelo solfejo da manhã
o sentir do ar frescamente matinal
e a aurora que é sempre uma quimera,
mas só no dia que lhe corresponde;
as manhãs alinhavadas em promessas vindouras
são o juro que a incerteza não pode pagar. 
Se dúvidas persistirem
que a cartografia das cicatrizes,
possível depois de lambidas as feridas,
trate de apurar.

#1028

Os doutores
tão importantes e pimpões
nos sarcófagos de seus fingimentos.