4.7.19

Moeda fraca

Dou de troco
a moeda fraca. 

Há quem a aceita. 

Ao longe
desconfio que é fraca,
a moeda. 
Rejeito-a
se for troco em volta
e prefiro que malogre
a transação. 

E, todavia,
há alturas que em mim
a forte moeda cobra sua metamorfose
em fraca se tornando.
Desconheço
por que misterioso trâmite
se transfigura a moeda,
como se 
por ação de contágio com minha pele
ela perdesse valor. 

Considero sempre
que melhor fico ao dar à troca
o pecúlio de moeda tornada fraca
por uma modesta compensação:
não há fortuna maior
do que não ser contaminado pela moeda fraca
e nela se tornar. 

#1102

Amuralhadas,
as palavras esvaziam-se.

3.7.19

Sal

Naqueles loucos tempos
fugíamos dos guarda-freios
os corpos 
dependurados na retaguarda dos elétricos
enquanto os rostos eram corridos
pelo vento contrário.
Sem darmos conta de tão frágil condição
desaprendemos
que na adulta idade nem sempre assim é:
a ilegalidade fica tantas vezes na sombra
e os seus fautores não perdem o garbo
e ensinam probidade a quem os escutar
(muito certamente para as atenções desviarem).
Desaprendemos a loucura,
também,
na exata medida da legalidade. 
Perdemos um certo sal
que a irresponsabilidade impedia de notar. 
Hoje
continuamos no cálice da retidão
às vezes esperando por um acesso de loucura
ou apenas que o corpo dê conta
de uma salina.

#1101

Junto as palavras gradas
numa equação
e bebo desta matemática quimérica.

2.7.19

#1100

(Atualidade política, 2019)

Catch me
if you PAN.

Irradiação

I
As coisas sem nome
projetos inválidos da boca pálida
um trajeto emudecido
na sombra das árvores. 

II
Os nomes não demandam as coisas
não sabem os seus nomes
no paradeiro incógnito que as mareja
na simbiose dos frutos. 

III
Os nomes não querem nomes outros 
se não a macieza da pele abraseada
e o dorso onde cavalgam os verbos
sem o despeito da angústia. 

IV
Dizem das coisas apalavradas a um nome:
são um santuário proibido
a fantasia turvada num sonho
um pedestal sem deuses. 

V
São os nomes próprios
onomatopeia que se densifica fora do desenho
num atropelo da gramática 
fusão inverosímil dos ascetas e dos boémios. 

VI
Os nomes e as coisas são ímpares
na matemática hermética do desconhecido
em circulares convulsões
nos estereótipos à procura de lugar. 

VII
Quadrassem as coisas todas com nomes
os sortilégios deixavam de estar ao vocabulário
e os homens adormeciam sob a monotonia
enquanto o jogo se fazia fora do tabuleiro. 

VIII
Não há verdadeiramente coisas sem nome
menos as que estão por descobrir
que os nomes são sempre ávidos
de serem apóstolos à procura de enredo. 

IX
As coisas sem nome
são metáfora excruciante
o logotipo encerado dos apóstatas
submersos numa apneia.

#1099

Não dar troco
é pior
do que não deixar gorjeta.

1.7.19

Espera

A varanda
sem parapeito.
O amanhecer
como um feito.
A contestação
sem pleito.
A voz muda
com um suspeito.
A linha a destempo
sem efeito.
O ocaso
com a espada ao peito.
Os espelhos
sem medo do trejeito.
Os corredores
com as mãos a eito.
Os nomes
sem idioma perfeito.

#1098

A escravidão nunca acaba
nem quando oficialmente terminada
nem quando balbucia, 
involuntária.

30.6.19

Pensamentos TGV

Estou a tentar dormir.
Fecho os olhos.
Como quem fecha as janelas
ao pensamento.
E, todavia, 
o pensamento ferventa.
Os pensamentos passam à janela,
importunam-na.
Pensamentos mais rápidos
do que comboios de alta velocidade.
Tão velozes
que configuram uma mancha indistinta:
não consigo dizer
sobre o que são os pensamentos.
O sono postergado,
dedo apontado aos pensamentos
que continuam velozes
muito velozes
a importunar a tentativa de sono.
Não sei o que pensar.
Estava só a tentar dormir.

29.6.19

#1097

Abaixo o Verão.
A baixo do Verão.
Outono, ou Primavera.

28.6.19

Destino

A vigia constante
nas horas e minutos fulcrais
no tempo de resto banal
orquestrando as águas mansas
sem lugar a tempestades.

Uma certa normalidade

(como as pessoas gostam
de normalidade,
a norma sem dor).

Os olhos secos
desaprenderam as lágrimas.

Não é bom sinal.

A impassibilidade
é um disfarce 

– e os disfarces compulsam
o enredo fraudulento
as linhas enredadas na noite sem fim
um jogo de mentiras
que se mentem a si mesmo

(sem reporem o seu oposto).

#1096

Sound bite
as the sound
bites.

#1095

Sobre o vazio
derramo palavras despretensiosas
à espera dos juros.

27.6.19

Desembaixador

Não serviria para embaixador
de coisa nenhuma
se aos pergaminhos pedisse recomendação,
devolvida à procedência
por deserto destinatário. 

Não queria ser embaixador
de coisa alguma
por ficar a léguas da confiança validada
e ser apenas pária 
num cosmos de irredentismo. 

Não podia ser embaixador
de nada nem ninguém
por não jogar com a vontade
e à margem de mim ser palco.

#1094

A pele
em camadas de escamas. 
A palavra que muda
com o escamar a preceito.

26.6.19

Hoje ao longe

Esqueci-me de que é feito
o amanhã
e este lugar parece estranho
sem alguma vez dele me ter apartado
como se fosse a morada permanente
sem histórias para contar.
Não amuralhei as mãos
não as empenhei às forças gravitacionais.
Deixei que o corpo
falasse por mim
nas coreografias não dançadas
no restolho sério das visíveis luas de outrora.
Os lugares pareciam todos iguais.
Uma cortina transparente
e, todavia, infértil 
na empreitada de aclarar 
o significado dos lugares.
Talvez as mãos pudessem ser tecelãs
inventariar os fungos aceitáveis
as sementeiras promissoras
aos hotéis sem medíocre ornamentação
onde apenas contasse gente comum
gente desprovida de vaidade
sem saber do óculo flamejante que amplifica
suas imagens,
o logro ideal.
Atravesso o quarto
e sinto como se do outro lado
estivessem os antípodas do mar
e eu
militantemente cético
esbracejando como se ainda estivesse imerso.
Ah!
Se ao menos não estivesse nas mãos dos sonhos
podia apalavrar o que viesse ao púlpito da fala
e sabia que não há algemas 
a subtrair o equinócio da vontade.
Atravesso o quarto
de regresso ao ponto de partida
e não sinto o sal que tinge o mar
nem o corpo humedecido por suas águas.
A maresia não passa de um distante desejo,
a impossibilidade na ausência de faro.
Não é a noite medonhamente escura
que se atravessa no firmamento;
é o sonho não convidado
as grutas sem fim
a tempestade suicida
os olhos que capitulam ao pesar
as sombras arqueadas sobre o rosto melancólico
a aurora fracassada
o cais seco, lúgubre, abandonado
a impecável fartura que assombra a memória
os pés desalinhados na fronteira venal.
Os lugares voltavam de repente ao seu lugar.
A matéria fundente
chovia sobre lagos aclamados
e os motores ruidosos, indiferenciados,
emprestavam-se à tela que fugia do olhar.
Não temo as consequências do mundo.
Estou à sua altura
no âmago desta fragilidade sem adjetivos
penhor de mim mesmo
na contagem avulsa das páginas sem esquadria.
Fico à espera.
O relógio conta o tempo por mim.

#1093

Vou à medula
ao mais sombrio escondido
e ascendo com a claridade entronizada.

25.6.19

Dicionário

Embraio o medo
antes que venha a noite feérica
e os demónios tenham nela
sua madrugada altiva.
Nos cotovelos da chuva
tomo o avesso da poesia
e vejo como as quedas de água,
no catavento da primavera,
são a melodia sem reticências
o reparo não acintoso
dos equívocos que lobrigam nos outros.

Embraio o medo
sentindo o corta-vento na sua função
e sem o rosto álgido
tomo-me 
por comandante de um navio sem matrícula
que sulca mares sem marinheiros
em vez de ruas apinhadas.

Sem o medo embraiado
meto a velocidade máxima ao chegar à enseada
e aos olhos famintos vem 
o ocaso bucólico
o mantimento sublime que despoja fronteiras
a cabine aveludada onde se consuma o amor.

Já não preciso de dicionários
para converter em verbo capaz
as estrofes demenciais que pareciam
cães vadios fugindo de donos que não tiveram.

Agora
eu sou meu próprio dicionário.

#1092

(Variação do #1091)

Não por acaso
obediência
rima com decadência.

#1091

(O sonho do governo, qualquer um)

Hibernem os protestos
em lampejo de lucidez,
ou disfarce de obediência.

24.6.19

Recuar para a frente


Um sábio aperaltado
com as cores de um sortudo
escreve o oráculo 
com os dedos desenhando no ar.
Não é indiscutível:
poucos lhe conferem crédito

(e muitos mais são os que não se filiam
em sapiências entronizadas nuns,
assim autointitulados,
predestinados).

O sábio continua a desenhar o oráculo.
Em transe
sem ouvir sussurros
que sugerem certas palavras
para o oráculo 

– um sábio tem de estar acima das suspeitas.

Os seguidores do sábio
não têm paciência para esperar pelo porvir.
Odeiam surpresas.
São inveterados domadores do tempo

(ou estão convencidos de sê-lo)

com a ajuda do sábio.
Quando o futuro os desautoriza

(a eles e ao sábio de que são séquito)

acusam o futuro 
de não se ter sabido aconselhar
com o oráculo desenhado pelo sábio.

#1090

A culpa não se partilha.
Assume-se a sua quota-parte.

23.6.19

Tarte

A parte mais importante da tarte
esta que
destarte
se consome no porte do gesto
sem que se negue o conceito
de arte.

A parte mais importante da tarte
aquela que
numa parte
se emudece no requinte do mosto
sem que se recuse o gesto perfeito
que dela se reparte.

A parte mais importante da tarte
uma que 
à parte 
se sacia do visível que está exposto
e depressa chama o verbo ao peito
sem que do restante se descarte.

22.6.19

#1089

Mais notícias
da capital do desimpério:
más notícias
da descapital do império.

21.6.19

Bandeira sem haste

Hoje
era dia de vestimenta solene
mas já não sabia
da causa da celebração.
Há por aí uns papalvos
que se deixam ludibriar
e são carne para canhão de efusividades destas
(a que os doutrinadores mandam chamar
identidade,
ou pertença 
– o que, no derradeiro caso,
é tão sintomático como cunhar a expressão
“sujeito passivo” para a simbiose 
entre quem deve impostos
e quem deles é credor).
Uns cobradores de fraque
a reboque de antropológicos desejos
exsudam os alinhavos da “pertença”,
irrecusável linhagem
a quem se ofereça no altar da identidade
assim devolvida aos anais da pertença 
– a equimose que cobre a pele
bulimia não reconhecida
em que se dissolve a autêntica liberdade. 
Uma espécie de morcela
onde foi fumigado o “sentir pátrio”,
ou coisa que o valha,
e à bandeira seja devida honrosa continência
a apalavrada jura do esvaziamento da pessoa,
como é da conveniência dos bastardos
que são os diletos propagandistas 
da “pertença”.

Termos em que
uma teoria subiu à boca
no suco gástrico de semelhante acédia:
os valentes gurus da portugalização
os pressurosos meirinhos da pertença
são casos de imperativo divã psiquiátrico:
levaram quinquénios inteiros
subsumidos na pertença
e de tanto serem escafandros da pertença
já se confundem a si mesmos
como esfinges que sintetizam a pertença,
arremedos de sebastiânicas personagens
(sem o malogro em que se deitou
o eterno prometido).

Termos em que 
lavro publicamente um orgulho:
andei em turísticas funções
pela capital do império
e muitas foram as vezes que me interpelaram 
em estrangeiro idioma,
o que me fez assentar a argamassa
da inidentidade.
E se à identidade estou em falta
ausentam-se as credenciais da pertença,
no enfim lago idílico
onde se expõe toda a pessoa sem grilhetas.

#1088

Quem imagina
os custos
de ser um políptico?

20.6.19

#1087

Inunda-se
de poesia
esta paisagem mental.

Alvorada


(Alvorada rasgando o Tejo, com a ponte como pano de fundo)

Olho o céu
que apresenta nuvens esfarrapadas. 
A madrugada espartilha-se
na tímida luz, ainda baça,
que a desapodera. 
As nuvens esfarrapadas
estão levemente tingidas por um rubor,
ainda emaciado,
o pressentimento da manhã. 
Detenho-me fixamente
neste horizonte que transborda,
levemente,
a quimera que é o reavivar do dia. 
Sempre soube
que a aurora,
mesmo não sendo boreal,
é um singular enriquecimento. 

19.6.19

#1086

Contradição de termos (exemplo):
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