17.7.19

#1118

Tirou à sorte 
a fronteira do abismo
e fechou os olhos, a medo.

16.7.19

#1117

A mão pressentida
vertida sobre um nenúfar
acende a água redentora.

Generais da estultícia

Cortejo.
De verdades alindadas.
Dá orgulho ver o prazer
os zeladores das verdades.
Insofismáveis,
como é de preceito considerá-las.
(Ou prazer ver o orgulho,
já nem sei.)
Cortejo.
Do verbo arrebatado.
Da bravata fácil
a espada desembainhada
à menor ofensa
(ou coisa que se assemelhe).
Dos jumentos sem onça
não se lamenta a estultícia.
Não pode;
alimenta-se deles,
a estultícia despudorada.
Não fogem do repto.
Inventam-no,
quando não se sentem cercados.
Tresleem
e são pobres hermeneutas
das palavras não deles.
São diligentes
a versar palavras nas bocas outras.
Não satisfeitos
avalizam erráticas leituras
e atiram-nas para cima dos vilipendiados.
Chegavam 
para encher vários quarteis.
Não era mal pensado.
A ilógica castrense
cai-lhes 
que nem fato feito por medida.

#1116

Respiram, 
as coisas,
com a leveza de um avião planando
como se folha de papel fosse.

15.7.19

Quociente

Digo o improvável:
a soberania gasta
o recinto imaculadamente vazio
as árvores inertes
profecias por escrever
o peito marcado pela aurora sem nome
nos confins de tudo
e no limiar do nada.

Digo o improvável:
canto como danço
na voz gutural e no gesto fino
e devolvo à mentira o palco
as tábuas irregulares onde pisam os pés
fábrica abandonada no fastio da tarde
e sem palavras ouvidas
o silêncio vetusto que não se cansa.

Digo o improvável:
arco com o peso da memória
invisto contra a tirania da memória
e debato-me no irreparável desejo
a fatia mais grossa da luz não depurada
e as mãos generosas
nas dádivas que não encontram sujeito.

Digo o provável:
não sei como são as dores
não sei desconhecer a matéria sensível
e da filosofia do modo
entre marchas solenes e opíparas comendas
revisito as cicatrizes oculta
sem pavio para exorcismos
no sempre curto testemunho
do trovejar com saliva contra o efémero.

Digo o provável:
erguidos os cálices
irrelevantes os párias
inconsequentes os perjúrios;
só o cingir do amor
o fausto manjar sem preço nem rótulo.

#1115

Atiro-me à maré
no património de uma frase solta
e de volta trago o dia arrebatado.

14.7.19

#1114

Perdido por mil
é mal menor
do que perdido por dez mil.

Cemitério

“Is there life before death?” (Numa exposição no Museu de Serralves)

Código genético:
o desperdício
das dádivas que vêm às mãos.
O desgaste dos olhos
em vidraças mundanas
venais
que postergam o festim da vida
e aproximam o tempo da morte.
Na encruzilhada do pensamento
uma interrogação desmente a maré:
não é saber da vida depois da morte

(a mais espúria das interrogações,
com negação na sua própria formulação),

mas se houve vida
antes de ela ser negada pela morte.
A hipótese de um palimpsesto de morte
não está de parte:
a vida como farsa
ocultando um sentido antecipatório da morte
e a vida,
mera lantejoula 
onde a morte se passeia.

13.7.19

#1113

Uma excentricidade depois
continuava a mesma pessoa.

12.7.19

Fora do tempo

Não tinha noção do tempo
na contabilidade desassisada dos válidos,
se aos válidos fosse pedida noção.
Preferia outra moção:
faria do tempo
a enseada por onde,
gota a gota,
ao mar seria dada entrada,
sem o apressar nem dilatar
(o tempo).

Uma clepsidra disfarçada de sereia
quis repudiar a hipótese
procurando alternativa no roteiro 
das meãs possibilidades.
Ocultavam,
tais possibilidades,
um tempo que era um enredo em forma de farsa
com um palco sedutor
narrativa solenemente hasteada
o idioma nunca lesado em seu domínio 
muito ouro ungido dos dedos
– tal como o disfarce envergado pela clepsidra.
Mas era um tempo farsante,
um logro de um tempo vazio
sobrepondo-se ao tempo não avarento.
Rejeitei os solilóquios encenados
na bela fazenda arroteada com cores de néon.

Fui a tempo
de não me achar
fora do tempo.

Fiquei com a impressão
de saber da medida certa do tempo.

#1112

No magma sem rota
o sedimento
contra o perjúrio do tempo.

11.7.19

#1111

Queria ser o dia altímetro
para do meu corpo
cordilheiras inteiras irromperem,
vulcânicas.

Extravio

Esta é a pior estrada possível.
A recauchutagem desqualificada
penhor dos piores instintos
a sublimação de todos os males
o correio que não se espera.

Esta é a pior estrada possível.
O degredo metaforizado.
O inalcançável vulcão que respira o enxofre 
– e se alimenta de enxofre – 
no biliar enxovalho das palavras
que descem a sub-idioma
a decadência que se não esconde
sem lugar para esconderijo.

Um extravio,
Esta que é a pior estrada possível.
e, contudo,
é a estrada com mais trânsito
a estrada que apetece parafrasear
saciando as vírgulas e os parágrafos
a pontuação inteira em seu melífluo pesar
por anacoretas fingidos de aristocratas.

A estrada.
A pior possível.
Um desfiladeiro sem opção
no ermo lugar a que se aconchega
nas varandas escancaradas ao luar
onde não sobem lobos esfaimados
nem criminosos do pior jaez:
só os persistentes viandantes usam a estrada 
– a pior estrada possível – 
em estados lastimosos
nauseabundos
o pensamento sem paradeiro
húbrisdesapalavrado nas esteiras sem sol
em movimentos sísmicos
convulsivos
e choros de lágrimas fluentes
que são afluentes de rios caudalosos.

Esta é a pior estrada possível.
A pior possível.

A barreira sobreposta ao olhar
algema que aprisiona as mãos intimidadas
verbo proibido no cancioneiro das falsas fadas
uma espada sem comiseração
crispada sobre o dorso condoído
a punção perene das angústias sem finalidade.

A pior estrada possível.
A inevitável estrada.
Comum.

#1110

O medo
é uma dinastia
à prova de república.

10.7.19

#1109

Devolvo
ao mar cansado
a lágrima doce da bonomia.

Cortina de espelhos

Esconjuro 
as rodas encravadas
na engrenagem que congemino.

Um sussurro
desvenda as cortinas vetustas
no solitário bocejo da noite.

Antevejo
nas escadas íngremes
o absoluto encantamento do verbo.

Revejo
as páginas idas
no mirífico campo do silêncio.

Entardeço
no irreprimível movimento do tempo
sem capitular aos demónios invisíveis.

Arroteio
uma montanha milenar
no refúgio que se intui exigível.

Escondo
a matéria pútrida
dos olhos vivos que são juízes.

Perdoo
ao tempo contumaz
as cicatrizes legadas à pele.

Preparo
o chão gasto
para os pés nunca cansados.

Não corrijo
os contratempos de que fui tutor
por do arrependimento não ter saber.

Não escondo
as mágoas enquistadas
sob o esquecimento armado.

Não resisto
ao ocaso sibilino
a página-entrelinha que dita o segredo.

Não me oponho
ao verdugo da fala
se por ele se desmatar a fala mundana.

Não digo não
se o não for o cais sereno
onde repousa o rosto exangue.

#1108

(Cefaleia)

Um eco persistente
o mais audaz dos punhais
coloniza as veias pungentes.

9.7.19

A manhã e a maré

Deixei que a manhã 
tomasse conta da maresia
em sucessivas camadas de nuvens 
– diademas graciosos sem epílogo.
E nas contas da manhã
entre equações sem paradeiro
e vozes sem nome
dela tomei as rédeas
e somei-me
à aventura do mapa por desenhar.
Talvez fosse a manhã
a arquiteta do mapa por congeminar;
ou talvez a manhã
estivesse à espera de instruções
de um fogo por atear
na maré nascente que se parecia purificar
nas arcadas da paisagem
ela, 
por sua vez, 
debruçada 
sobre o leito seco do mar.
Deixei que a manhã fosse aviso
a cautela por vezes remediada
e resgatei do peito
os versos que ficam sempre por acabar.
Dei-os de volta à manhã
que se fundiu com a maré
e juntos partiram,
as suas silhuetas sumidas 
no ténue fio do horizonte,
sem mapa que os desenhasse
sem nada
a não ser o sangue siamês
que passou a ser uníssono. 

#1107

Depois da ponte
atrás de mim,
as ruínas que me precederam.

8.7.19

Concordância verbal

Passavam juntos
no cais sobranceiro 
de onde estava hasteava o odor à maré baixa.
Havia pegadas no lodo
alguém que não se intimidou
com a brisa pútrida e o chão enlameado. 
Um barco
(possivelmente abandonado)
estava ancorado sobre o lodo
inclinado sobre o lado direito,
como se começasse a ser inaceitável
o peso do seu casco deitado sobre terra. 
Podiam especular
sobre o proprietário da embarcação
ou sobre se aquele
era o retrato do melancólico fado do barco.
Seguiram o caminho
sem pararem do dorso da especulação. 
Ali à frente
já era o mar;
o rio entrava pelo mar
sem se dar conta,
fundindo-se em seu estuário largo. 
Ao menos,
do mar não sobrava um odor pestilento,
que cedeu lugar à mirífica maresia. 
Era toda uma metáfora,
em seu pleno acabamento:
o outrora rio,
indomável por milhas a eito,
quando se esculpia 
entre o granito do desfiladeiro contínuo,
fundia-se nas águas majestosas do mar,
devolvido ao anonimato. 

#1106

Ganho o segredo
e deposito-o em cofre tão forte
que depressa me esqueço dele.

7.7.19

Verbete

Arrumo a paz
no desassossego do tojo selvagem
régulo do perímetro onde cicia
a luz clara,
matinal.

Não é preciso coragem
para destas armas terçar: 
no solilóquio contumaz
salivam as palavras sibilinas
em verbos mendazes
pelas bocas dos capatazes marítimos,
os que andam em profissão de paz.

Suas são as barcas impecáveis
em imagináveis laudos
um remo que deixou de ser baço
no braço formoso que derrota
o bélico rosto dos assim pederastas.

#1105

A venda dos descobrimentos:
entre opacidade dos heróis
e aviltamento por conta dos antepassados.

6.7.19

#1104

Referendei a voz passiva.
Preferiram o verbo acutilante.

5.7.19

Doença crónica

Misericórdia pedida
em formulário encharcado de lágrimas
tentativa de superar empreitada
com o préstimo da preguiça
disfarçada no úbere da piedade. 
Arrastam os corpos poltrões
na indigna condição dos comiserados
em vez de decaírem na vergonha própria
e recusarem
a si mesmos
o opróbrio do requerimento da comiseração. 
Neste impudor
consomem-se num canibalismo interior;
ou talvez não estejam equivocados
já cientes dos arranjos disputados
da corrupção das almas
dos prantos que porfiam e alcançam
num epítome dos medíocres mal fingidos 
– dos medíocres entronizados.
Dizem os incréus
que os milagres são a abstémia condição
dos impreparados.
Quem quer melhor prova,
com requintes de amadorismo
(a condizer com as qualidades
dos profissionais da comiseração),
que as proezas destes descamisados
entram no panteão dos milagres?

Quem falou de anátemas?

#1103

(Sugestão de política fiscal)

Tribute-se o vernáculo
para termos um petróleo em triplo.

4.7.19

Moeda fraca

Dou de troco
a moeda fraca. 

Há quem a aceita. 

Ao longe
desconfio que é fraca,
a moeda. 
Rejeito-a
se for troco em volta
e prefiro que malogre
a transação. 

E, todavia,
há alturas que em mim
a forte moeda cobra sua metamorfose
em fraca se tornando.
Desconheço
por que misterioso trâmite
se transfigura a moeda,
como se 
por ação de contágio com minha pele
ela perdesse valor. 

Considero sempre
que melhor fico ao dar à troca
o pecúlio de moeda tornada fraca
por uma modesta compensação:
não há fortuna maior
do que não ser contaminado pela moeda fraca
e nela se tornar. 

#1102

Amuralhadas,
as palavras esvaziam-se.

3.7.19

Sal

Naqueles loucos tempos
fugíamos dos guarda-freios
os corpos 
dependurados na retaguarda dos elétricos
enquanto os rostos eram corridos
pelo vento contrário.
Sem darmos conta de tão frágil condição
desaprendemos
que na adulta idade nem sempre assim é:
a ilegalidade fica tantas vezes na sombra
e os seus fautores não perdem o garbo
e ensinam probidade a quem os escutar
(muito certamente para as atenções desviarem).
Desaprendemos a loucura,
também,
na exata medida da legalidade. 
Perdemos um certo sal
que a irresponsabilidade impedia de notar. 
Hoje
continuamos no cálice da retidão
às vezes esperando por um acesso de loucura
ou apenas que o corpo dê conta
de uma salina.

#1101

Junto as palavras gradas
numa equação
e bebo desta matemática quimérica.