26.7.19

#1131

Consolado no consulado
admitiu
o consulado consolado.

(Dedução lógica)

Role play

Esquadria do fingimento
a perfeição da encenação elevada a expoente
e todos a jogar ao teatro
e ao teatro por dentro do teatro
e numa cornucópia de teatros
até já todos terem a noção
de que são arremedos de si mesmos.
São as horas de marcar o zénite:
de todos serem fingidores
a palavra farsante saiu do dicionário.
E já ninguém sabe
que está no desempenho de um papel,
ou que por estarem no uso de um papel
não evocam o seu ponto de partida,
entretanto caído em desuso.
A palavra raízes
também foi eliminada do dicionário.

#1130

[Purple Mountains, “All my happiness is gone”]

Ao menos isso,
nos autorretratos dilacerados
a arte lobriga.
(Uma serventia assegurada para a melancolia)

25.7.19

Ana

Sabíamos de cor
as ruas onde as ondas amaravam
os códigos sem regras
os versos que agigantam as almas
o extasiante ocaso sem ninguém por perto.
Tirávamos à sorte
a vez às divindades,
nós que nem sabemos do seu paradeiro,
e subíamos às varandas
só para sentirmos a pele arrepiada
(e não era do vento impulsivo).
Juntávamos o olhar
numa sinfonia singular
e perguntávamos à noite
se não seríamos loucos
se não seríamos
os argonautas onde as causas se não esgotam
e esperávamos pela resposta
sabendo
que nós erámos os tutores da resposta
e que ela tinha o selo do sim
a tudo o que nos ornamentasse de fausto.
Projetávamos as veias
numa piscina onde apenas vivia um néctar,
à procura de mantimentos
à procura de um sentir,
e saímos ricos
no conhecimento de que não precisávamos
da autoria alheia do nosso remanso:
tudo em nós era bastante,
nós
soma maior do que as nossas partes.
Sabíamos de cor
os labirintos onde outros sabem decadência
e da decadência não queríamos saber
enxotada para as calendas
no juramento de que não há tempo visível
nem amarras que amputem o uníssono nosso.
Jogávamos a alta parada
o jogo inelegível,
diriam, 
insensato,
mas não queríamos saber.
Só nos importava 
a lava ininterrupta em ascensão irrefreável
e nós, 
curadores de todas as coisas nossas,
cegos ao alheio, 
ao vetusto, 
ao contratempo,
no sangue cruzado
na tangência das bocas
no sexo sem esteios
na manhã luminosa
por sermos um pedaço inteiro do outro
improviso homérico
as cidades que deixavam de ser estranhas
o céu onde as mãos desenhavam os nossos nomes
a matéria funda que arrematava a medula
e o conhecimento 
– o conhecimento
que triunfávamos na eloquência da simplicidade,
sem trunfos
sem modas
sem truques
sem segredos,
apenas nós
e um apenas do tamanho das galáxias.
Hoje
sei que os verbos no pretérito
são como uma fala do presente.
E sei
que se voltasse ao início do poema
substituía todos os verbos 
pelo tempo no presente. 

#1129

O verão
é a quarta estação
que mais gosto.

#1128

Não
nesta cidade
a maldição extirpada
dos rostos válidos.

24.7.19

#1127

Corrige-me
 se eu estiver
    certo.

Transmissão de pensamentos

Transmissão de pensamentos. 
A mesa esconde um esqueleto
e na cerviz está embebido
o fruto lacustre que orquestra 
um sentir. 

Perseguem-se
os fantasmas
que dantes eram perseguidores. 
Embrulhados na noite
esvaecem-se
e nem vultos conseguem ser. 

Julgo que é da ossatura firme
a transfiguração do cenário
e já nem o entardecer se compõe
como lisérgico açambarcar 
da lucidez. 

Ou talvez
tenha sido apenas 
mercê
da transmissão de pensamentos
e da simbiose amadurecida
e já não seja o ónus ameaçador
a ogiva sem domador
a roubar ao tempo em leitura
a sua indesmentível
exuberância.

#1126

Bolos para tolos,
reza a metáfora.
Logo, muitos são os tolos.
Ou há mais pasteleiros do que psiquiatras.

23.7.19

Siameses de armas

O merecimento da casta 
saliva contra a ilusão 
dos eméritos eruditos,
como se de mastins se tratasse. 
Abocanham tudo 
o que pareça contraditório
até ficar apenas
(ou pelo menos assim julgarem)
os da mesma igualha,
no pensamento fotocópia. 
Afocinham sua teatralidade
em onanistas celebrações
onde só são admitidos à lide
os redondos discursos que se desenham
no mesmo papel
no mesmo verbo
com a consonância cognitiva 
e paridade de sílabas. 
Aplaudem-se. 
Excitam-se com os aplausos
e quando recebem o indisputável aplauso. 
Poder-se-ia dizer
que envergam os mesmos nomes
os mesmos rostos
os mesmos ornamentos
a mesma roupagem
e até as vírgulas e parágrafos assentam
no mesmo lugar. 
Ah! Se pudessem
viajavam na consanguinidade!

#1125

A minha alma
desaprende
com tudo o que ensina.

22.7.19

Ensimesmado

Combinados os verbos
só faltava a gravata a matar.
A rua estava à espera
e o espelho não o deixava desmentir:
tanto fulgor,
como podia alguém fazer de conta
que não notava a sua presença?
E, contudo,
foi tanto o exercício de si mesmo
à frente do espelho
poses solenes a perder de vista
ensaios diversos de pose matrioska
ângulos múltiplos sem encontrar defeito
em autocontemplação vagarosa,
que à hora de sair já era tarde.
Ao menos
o espelho reteve toda a grandiloquência.
Só não sabia,
no contorno do sono ardiloso,
que o espelho não fala com pessoas
e as pessoas não querem saber daquele espelho
(cada qual só toma atenção
ao seu privativo espelho).

#1124

Recolhida nesta avalanche
a antítese de qualquer parábola.

#1123

Em nome de quê,
se não no próprio?

21.7.19

Idioma misto

Será por ser chique
ou por colonização cultural
(ou por se ter convencionado
língua franca)
o pechisbeque
de misturar idiomas na mesma frase
em frases sucessivas
num dia inteiro de falas.
Nobilita.
Confere pergaminhos.
É de casta.
É e um linguajar metodicamente simplório
embora disfarçado de arte sofisticada.
Pois um portofolioé carteira
benchmarké modelo
targeté alvo,
outcome é resultado
profit, no idioma caseiro,
não deixa de ser lucro.
É só perguntar a um dicionário.
O que não é lucrativo
é o idioma misto
que oxigena resultados risíveis
e põe estes trendycomo alvos perfeitos
de uma certa chacota irrestivível.
Podem ser modelos so cosy
tão avant garde
tão distintivos no seu speech
que me deixamsmashedem minha pequenez.
Prefiro ter em carteira
a saloiice de falar um idioma à vez.

20.7.19

#1122

A carne servil
na carne servil
berçário de um vendaval.

19.7.19

Ensarilhado

Este é o meu desmodo:
um arquipélago hasteado
na frontaria do ocaso
e um banco de ardósia
onde cimento meu pesar. 

Tirei as teimas
contra o improvável bocejo
dos deuses reduzidos à inexistência. 
Sabia que podiam ser magoados
mas essa não era minha mágoa. 
Cuidei do sentido olhar imaterial
ou, por assim dizer,
a digressão sobre a teórica conceção
onde se antecipa o pretérito.
O arquipélago era o refúgio 
depois
de extensas camadas de terra de ninguém
e as vozes iradas faziam o que podiam
em suas metáforas inacabadas,
seus proverbiais monólogos. 

Não queria saber de nada disto. 

Juntei as mãos
juntei-as
ao constante desvelo pelo mundo
e sem o contratempo que desfigurava a memória
pareceu-me que o espelho
devolvia algo admirável. 
Não era eu, contudo:
continuo sem remédio
esgotado na fogueira
onde se consome o vão estipêndio da memória
inseguro na consumição das inseguranças
que nem amaldiçoadas se alijam 
da fronteira onde deixo de ser eu. 

Se ao menos 
o arquipélago não fosse cercado por água
podia chamar a mim um reino,
um reino que fosse,
miserável, 
mas reino enfeitado 
pelo segredo de que seria tutor. 

Não contei 
com a desmedida da ousadia
e o arquipélago foi tomado
pelo mar enfurecido.

Tal foi o meu desmodo
não incensado nas arcadas do medo.
E às vezes digo,
quase como se fosse um lamento:
antes fosse, 
o medo.

#1121

(Variante do #1120)

De servitudes avulsas
no esquecimento da memória
amesquinha-se a natureza humana.

#1120

De servitudes avulsas
em ofensa à memória
amesquinha-se a natureza humana. 

18.7.19

Baú do futuro

Não prevejo
a fronteira do medo
o cais sobranceiro ao rio frugal.
É no trivial começo
quando nada parece sê-lo
que se agigantam as asas do sonho
e as barcas se dispõem à travessia.
Oxalá o medo fique antolhado,
preso nas malhas em que se tecem 
as fronteiras
para na pele repousada
se decantarem as vozes ciciadas
em forma de verso
as vozes-candeia
trazendo a tiracolo as luas esperadas.
Não prevejo,
nada.
As profecias,
deixo-as para os peritos.

#1119

Na boca quente
um beijo púrpura
um começo.

17.7.19

Navegação

Sabia de um navio fantasma
que dormia nas minhas mãos.

O navio
fugia dos faróis.
Não temia as marés iracundas
as tempestades impulsivas
os piratas que desrecomendavam os mares.

Estava nas minhas mãos
em seu sono protegido.

Era fantasma,
o navio.
Não tinha nome
nem se lhe conheciam registos oficiais.
Por ser fantasma
descuidara-se de tripulação.
Vogava no sentido dado pelas minhas mãos.
Não precisava de bússola:
o seu sono,
em minha tutela,
sob a jura da minha janela,
era o sextante suficiente.

Por ser fantasma
não estava a jugular sob a mira da destruição.
Era como o meu sono
uma constelação de idiomas perenes
o complexo enredo
desembraçado das teias milhentas
em que se decompunha.

E o meu sono,
dantes povoado por navios fantasmas,
navegava a preceito
no zimbório de onde está de atalaia,
resguardado de fantasmas.

#1118

Tirou à sorte 
a fronteira do abismo
e fechou os olhos, a medo.

16.7.19

#1117

A mão pressentida
vertida sobre um nenúfar
acende a água redentora.

Generais da estultícia

Cortejo.
De verdades alindadas.
Dá orgulho ver o prazer
os zeladores das verdades.
Insofismáveis,
como é de preceito considerá-las.
(Ou prazer ver o orgulho,
já nem sei.)
Cortejo.
Do verbo arrebatado.
Da bravata fácil
a espada desembainhada
à menor ofensa
(ou coisa que se assemelhe).
Dos jumentos sem onça
não se lamenta a estultícia.
Não pode;
alimenta-se deles,
a estultícia despudorada.
Não fogem do repto.
Inventam-no,
quando não se sentem cercados.
Tresleem
e são pobres hermeneutas
das palavras não deles.
São diligentes
a versar palavras nas bocas outras.
Não satisfeitos
avalizam erráticas leituras
e atiram-nas para cima dos vilipendiados.
Chegavam 
para encher vários quarteis.
Não era mal pensado.
A ilógica castrense
cai-lhes 
que nem fato feito por medida.

#1116

Respiram, 
as coisas,
com a leveza de um avião planando
como se folha de papel fosse.

15.7.19

Quociente

Digo o improvável:
a soberania gasta
o recinto imaculadamente vazio
as árvores inertes
profecias por escrever
o peito marcado pela aurora sem nome
nos confins de tudo
e no limiar do nada.

Digo o improvável:
canto como danço
na voz gutural e no gesto fino
e devolvo à mentira o palco
as tábuas irregulares onde pisam os pés
fábrica abandonada no fastio da tarde
e sem palavras ouvidas
o silêncio vetusto que não se cansa.

Digo o improvável:
arco com o peso da memória
invisto contra a tirania da memória
e debato-me no irreparável desejo
a fatia mais grossa da luz não depurada
e as mãos generosas
nas dádivas que não encontram sujeito.

Digo o provável:
não sei como são as dores
não sei desconhecer a matéria sensível
e da filosofia do modo
entre marchas solenes e opíparas comendas
revisito as cicatrizes oculta
sem pavio para exorcismos
no sempre curto testemunho
do trovejar com saliva contra o efémero.

Digo o provável:
erguidos os cálices
irrelevantes os párias
inconsequentes os perjúrios;
só o cingir do amor
o fausto manjar sem preço nem rótulo.

#1115

Atiro-me à maré
no património de uma frase solta
e de volta trago o dia arrebatado.

14.7.19

#1114

Perdido por mil
é mal menor
do que perdido por dez mil.

Cemitério

“Is there life before death?” (Numa exposição no Museu de Serralves)

Código genético:
o desperdício
das dádivas que vêm às mãos.
O desgaste dos olhos
em vidraças mundanas
venais
que postergam o festim da vida
e aproximam o tempo da morte.
Na encruzilhada do pensamento
uma interrogação desmente a maré:
não é saber da vida depois da morte

(a mais espúria das interrogações,
com negação na sua própria formulação),

mas se houve vida
antes de ela ser negada pela morte.
A hipótese de um palimpsesto de morte
não está de parte:
a vida como farsa
ocultando um sentido antecipatório da morte
e a vida,
mera lantejoula 
onde a morte se passeia.