24.10.19

#1236

Ensurdeço
com a altivez da noite funda
refém dos sonhos sem bússola.

23.10.19

Backstage

O nó cego
tem a mesma perspicuidade
que dizer-se
novo em folha.
Agradecem-se
as idiomáticas expressões
que as gentes contemplam em silêncio
acríticas
sem duvidarem
do fundo em que se hasteiam.
Se o nó é cego
não deixa nada à mostra
e não pode ser nó
como ser novo em folha
é desmentir a beleza
das outonais, caducas folhas.

#1235

Faço lei
da tábua rasa
e despedaço a insubmissão
em pedaços sem bandeira.

22.10.19

Equilíbrio

A força maior 
é não fugir da dor 
e ter nela o freio que a mitiga.
A força maior 
é não enjeitar as lágrimas 
e saber que nelas fecunda 
o mar auspicioso.
A força maior 
é trazer o hoje agarrado ao peito.

Sabática

Penso 
em tudo o que podia ser candidato
a uma sabática.
Coisas tão adoráveis
e que me causam repulsa.
Coisas excelsas
a exemplar moeda de troca
o cunho paradigmático dos modelares 
a confiança à prova de contratempos
as lições de boa moral 
enquistadas num compêndio
modismos
palavras proscritas
alfândegas inverosímeis
estatutos subliminarmente superiores
militares de todos os jeitos e feitios
comendas, oh, as comendas
e passinhos, pequeninos
e todas as demais palavras com diminutivo,
porque diminuem.
Penso
em tudo o que está a fugir
de uma sabática.
E lamento
o tanto que todas essas grandiosas coisas 
perdem
por perderem a sua 
profilática sabática.

#1234

Patrocino o instante
antes que o fósforo seja efémero 
e o instante venha delido no olvido.

21.10.19

Relógios

É este tiquetaque interminável
eletrocardiograma dos relógios
de todos os relógios
sobrepostos
entrando em surdina nos ouvidos
ecoando o tempo algoz
e o tiquetaque continua
incessante
teimosamente infecundo
que a cada eletrocardiograma dos relógios
sei que se esvai a andadura em que estou
e os relógios ensurdecem
como fossem conspiração com aval divino
(daí não poder acreditar em deus)
e o meu magma doesse
a cada percussão dos ponteiros dos relógios
em combinação de uma sinfonia interminável
contra os terapeutas alinhados 
em vozearia concorrente com a dos relógios.

Arrependo-me.

Não quero saber da mudez dos relógios
de todos os relógios
sobrepostos
antes de saber
que essa mudez
pressente
a minha própria mudez.

Arrependo-me.

Doravante
consagro o tiquetaque mundano
arbitral
mecanicamente rotineiro
carta registada com aviso de receção
sem data desenhada no calendário,
consagro o som melódico
de todos os relógios
em cada peça por si considerada
singular mote da combustão diária,
ou de todos os relógios, 
por junto,
sobrepostos.

#1233

Da manhã temperada por nevoeiro
dizia o pescador
ser pressentimento de dia 
com segredos escondidos na faina.

20.10.19

Da simplicidade erudita


https://www.youtube.com/watch?v=cPK2DQ0xtQQ

[The Durutti Column, concerto no Indústria, Porto, 30 de abril de 1988, trazido do baú via YouTube]

Aprendi
com a simplicidade dos sons
a partitura feita de paisagens sublimes
e estrofes austeras.

Aprendi
as palavras soletradas por uma guitarra.
E soube
que é dispensável
a implosão da complexidade
o estrénuo leito da erudição sem vagar
para aprender com os aprenderes modestos
como um caudal vasto 
onde se benzem as imagens sinceras.

Aprendi
que não precisamos
se não 
de um punhado de alma
para sermos almas maiores.

#1232

Negociamos a memória
com o pudor
das bocas silenciadas.

19.10.19

#1231

Sabia do mar encapelado
no abismo 
onde o ocaso se aninha.

18.10.19

Rugas

O que dizem as rugas:
pétalas não decadentes
a espuma retirada ao bocejo
a tirania do tempo enquistado,
senescente.

Das rugas retiram-se 
os poros exangues
manchados pelos vitrais intemporais
emaciados pela consagração de uma comenda
e, todavia, imperturbáveis.

O que dizem as rugas
não são cálculos impossíveis
ou palavras articuladas no avesso das bocas.

Dizem
o tanto que houver por dizer
e se em silêncio se mantêm
no restante do tempo
é porque se acham abrigadas 
em sigilos.

#1230

Não eram lantejoulas
o meu manjar. 
Era a luz desmaiada
o entardecer 
a teu lado.

17.10.19

#1229

A meio caminho
entre o apeadeiro e a lua baça
as mãos juntam a chuva ao rosto.

Deserção

Deserto
da matilha sem açaime
os musculados mastins do verbo fatal
apequenados no terreiro que os confina.

O deserto:
lugar achado
para sua pequenez imóvel,
os mastins infrequentáveis
capitulam na alquimia do verbo cabal
deixando para memória futura
uma memória sem memória.

Deserto desse deserto
enquanto há tempo
e a virologia não se enamora
de meus poros que se não fecham
ao saber de outros saberes.

É nesse deserto
que afivelo a deserção não tardia
antes que seja tempo
de um penhor implacável
me tomar pela sua vontade
e eu à matilha ser condenado a regressar.

O deserto de onde desertava
era pesadelo com cenário a preceito
consanguíneo ao real.

Livre do pesadelo
tive alta da consumição
e não seria deserção daquele deserto
nem da matilha dos mastins esfaimados
que se banqueteavam no sangue pútrido,
seu e alheio,
que precisava como redenção.

Hoje pergunto:
de onde preciso desertar 
para marcar encontro com a redenção?

(Ou podia perguntar,
em súplica arrevesada 
no tear de um labirinto sem mapa:
preciso de redenção?)

#1228

Ninguém tem outra vida
a não ser aquela 
a que nem consegue dar vazão.

16.10.19

Barómetro

As décadas acabam no fim
e podemos não esperar
pelos planos retrospetivos
se deles formos reféns
e nossa sanidade
também.

Capturem-se
os fragmentos dispersos
a matéria-prima da lembrança
os leitos secos 
que se desabituaram das lágrimas
as molduras cintadas às silhuetas
os muros caiados com tinta invisível
as coreografias dos mudos.

Disponha-se
a matéria coligida
na aritmética do papel
e do exercício lúdico
extraiam-se as baias do orçamento
a frontaria ufana diante dos miseráveis.

Das olheiras sublinhadas pela insónia
a fertilidade das palavras
os comboios atempados
que troteiam carris impecáveis
as estrofes desacertadas do cânone
a liberdade-esteio
no meio da planície sem gente
os gatos que caminham sobre o rosto do cio
e a chuva que recolhe as lágrimas inúteis.

As décadas não podem esperar 
e podemos acabar no fim
deitando-nos à fecundidade do tempo em espera
sem dele sermos réus
em abono da nossa sanidade,
ainda.

#1227

Subo ao dorso
de uma frase solta
e transfiguro-me
em frase à solta.

15.10.19

O corpo aos hedonismos

Participo da marcha sem vesúvios
no quintal aformoseado
onde se detêm os previsíveis mastins,
mortos de sede.
Recuso o pleito:
não tomo partido
e mesmo que tomasse

tenho o corpo como serventia
de outros hedonismos.

Os mastins ficam sozinhos,
em conferência
a espuma infecunda da ira 
esterilizando o chão
povoado de daninhas ervas.
Nem as daninhas escapam
ao iracundo salivar dos mastins.
Aos mastins,
falta-lhes oponente.
Hão de arrastar-se como meras percentagens
ínfimas parcelas que não se prestam às contas
desapoderados
consumidos pelo emudecimento das atrocidades
larvares em sua própria vanidade.

O corpo,
repito,
reservo-a a outros hedonismos.

E contemplo as virtudes gastas
em desfile nas arcadas do tempo
sob um ecrã a preto e branco
impressionantemente puro.
Se preciso for
atiro para lá o corpo
para o resgatar das marés lodosas
e devolver ao campo fértil
dos hedonismos.

#1226

Matinal.
Um esboço.
Diamante não bruto.

#1225

Esvazio o mar
só de nele deitar
o meu olhar repleto.

14.10.19

#1224

Que é do vinho generoso?
É um filantropo,
incorrigível.

Eventos

Um pó de arroz
servido em chávena de chá.

Um legionário
sem comendas,
órfão.

O vento sem parapeito
no sepulcro dos vencíveis.

A viúva sorumbática
visita frequente do teatro
sem prantos.

O amolgado orgulho
do projeto de Adónis.

As costuras lassas
do navio gasto
pelos mares inteiros.

A metralhadora entupida
um hino que devia ser mundial.

A atónito cão
com imprevisto repasto à frente
sem fome.

A bandeira sem cores
a geografia extirpada aos limites.

Um baralho de cartas
a sordidez da solidão
e o estuário em forma de cicatriz.

#1223

Tinha da janela
uma memória sem rosto. 
Tirava à janela
o lugar sem mosto.

13.10.19

#1222

Minerada a alocução
ficou à espera
de rima em genuflexão.

12.10.19

Uma questão de alcova (censurada)

“É a puta da vida. Até quando deus quiser. Até quando deus quiser.”
(Um velho resignado, no café, na mesa ao lado)

Como se define a vontade?
Onde se encontram as costuras
que alinhavam as vidas?

Onde mora deus?
E deus,
tem o seu próprio deus
a quem presta contas?
E o deus de deus,
responde perante uma divindade
ainda superior?
Por que mecanismo físico se explica
a ubiquidade dos deuses?
E se deus tem o seu deus,
que por sua vez um deus tem,
não acabarão os deuses todos 
por se reduzir à inexistência, 
ou pelo menos à pouquidade?

(Termos
em que não andamos longe
de sermos deuses,
se provada for a sua existência 
– se é que uma e a outra 
são matérias que reúnem interesse.)

A vida pode ser uma puta,
às vezes 
ou quase sempre.
Se a vida é uma meretriz
deduz-se que deus 
(ou o sindicato das divindades)
gosta de prostíbulos?

11.10.19

Desconstrução

De estar em estâncias recolhidas
diz-se
que não lavrei conhecimento
das variadas facetas do mundo
e não soube dele recolher
os subsídios incomensuráveis 
para a madurez. 

Não tenho disso 
juízo formado
nem julgo que deva ter. 

Às costas 
peso a gravidade dos dias inteiros
porque 
(isso posso afiançar)
sempre quis 
dos múltiplos ângulos do mundo
ter uma noção. 

Só fechei um par de janelas
mas a quem é dado garantir
não ser de seus preconceitos prisioneiro?

Desde as alcáçovas emparedadas
lancei o periscópio sobre um olhar diferente
e se polémicas houve
que me agarraram pelo pescoço
foi pela denegação de transitar pelo admitido:
preferia saber 
do que sabia ser meu antónimo
como matéria de aprendizagem,
como caução de uma certa
desidentidade. 

E se insistem 
que fui juiz em causa própria
que me alimentei dos poros que conhecia
que não atendi 
as instâncias onde se jogavam os contraditórios
não tenho resposta
se não 
a de remeter o juízo a quem de direito
aos que da minha vida terão
possivelmente
vivido mais tempo do que a vida teve.

#1221

Junto o esbracejar do mar
junto ao rosto extasiado
e sonho com sonhos desassisados.

10.10.19

Fingimento

Auditadas as parecenças
depois de desalgemados os retratos
sobejavam as miméticas rugas
um gémeo estalão 
que não abrigava teoria. 
Seria um jogo de espelhos
ou o contrabando de uma cópia,
farsante,
contra os rigores do original. 
E, mesmo assim,
era a imagem refratada
considerada o aríete. 
Tomou por conclusão
que somos vítimas voluntárias
dos refratários,
dos que se oferecem a pedestais
sem terem 
se não 
a ousadia como passaporte. 

#1220

Se não fosse o arnês
o que seria das nossas vidas?