8.1.20

#1338

À sorte.
            (Contingência)
À sorte.
            (Chamamento)

7.1.20

Taxa de câmbio

Atiro
a moeda ao ar.
O sortilégio envidraçado,
à espera de ter vez.
Combinação de acasos
no avulso arrepiar 
da gorda desdita
e do obeso fado maior
(para gáudio da igualdade estatutária).

Tiro
a moeda do ar.
Interrompo o jogo
torno-me seu narrador,
que não caibo no estatuto de intérprete.
Estalam as articulações dos dedos
no estirador em que passa a saber o jogo,
talvez 
a maquinação estéril
do medo da sorte
do medo do azar
ou do medo só.

Tiro
a moeda no ar.
A vetusta condição
do artesão que desenha o tempo
contra quimeras infundadas
e angústias infecundas,
contra o malquisto xadrez 
ou o tapete rico em pétalas concebido.

Tiro a moeda.
Que é excedente
e o lugar precisa 
de desmaterialização.

#1337

Limpo o verbo gasto
e eu, na varanda,
aprecio.

#1336

O choro
(alfandegado)
é o antídoto.

6.1.20

Magno

Náufrago
o dia de ninguém
a matriz da miragem a soldo
linhagem sem embaraço
na gentil frase remediada. 
A voz granítica
repúdio das desculpas sem gramagem
o dia impuro
ecossistema da salga sem artesão
ou a armadilha dos despudorados. 
Levanta-se
o sol estremunhado
desembaraçando-se 
das teias que o unem à noite
em conspiração com os confrades da boémia
na instrução obrigatória dos pequenos estroinas
os convictos sacerdotes do incenso vertido 
sobre as costas do dia. 
Porque ao dia impuro
soma-se
a sua proverbial incompletude,
um santuário à espera de geografia.

#1335

Não é a loucura que temo,
é do uso que dela façam.

5.1.20

Provisório

A boca de fogo
sem medo. 

A redenção apalavrada
com verbo. 

A praia como domínio
sem tempo. 

A vastidão servida
com a noite. 

A roda parada
sem rosto. 

O nome improvável
com paradeiro. 

O rio transbordado
sem algemas. 

A cidade sonhada
sem vento. 

A boca da fala
com tudo. 

#1334

Controverso.
Contra o verso.
Compro o verso.

4.1.20

#1333

O infinito é tão longe.
O dia soalheiro
desfaz a distância a um nada.

#1332

[Antepassados]

Ó povo que sais descalço.

[Modernidade]

3.1.20

Modo

Rasurei os olhos
no balcão largo 
onde se convocam os oráculos. 
Não tive tenência do encargo,
que os risíveis desmotivos da alma
são a peça poderosa
o fiel dos atritos não recomendáveis
sem marcação 
no calendário das eventualidades
um esboço de matéria afogada 
na lividez dos sentidos. 
Por acaso 
estava sentado
e não houve como saber 
das pernas rombas
e ao escárnio disse o adeus próprio
da irrelevância. 
Sei que a finitude
cuida do acerto de contas
e impeço que os escombros
sejam o espelho do rosto,
apesar do que possa dizer em seu desmentido. 
Atribuo ao diadema dos lugares
o pensamento escorreito
cristalino
como se fosse o lagar 
onde se rejeita a matéria impura. 
Não combino com demónios
nem rimo com os ascetas da orfandade. 
Prefiro o azulejo gasto
confiável
mesmo que o estuque da parede
aparente decadência. 
Esse 
é um estado que só me diz respeito
uma encruzilhada caiada 
com a miragem 
das não respostas permanentes
a lente vazia, 
aberta à chuva benfeitora. 
Estudo as possibilidades. 
Estruturo o pensamento
na alvenaria das possibilidades
irrompo 
nos interstícios da noite
e sigo o pulso cinzelado 
na lombada das bocas famintas. 
Se for precisa a minha assinatura
sabem onde me encontram.

#1331

(Variação do #1330)

Sou mecenas da minha biografia.

#1330

Sinto o assédio 
da minha biografia.

2.1.20

Requiem pela memória

Não sei
de memória
do paradeiro da memória
pois da memória 
tenho a imagem de um poço fundo
sem cortinas para a memória
e de memória
julgo saber
que perdi o rasto da memória.
E desconfio
se a memória não me atraiçoa
que se da memória tivesse um lampejo
ele seria um disforme quadro
sem vistas para a memória.

#1329

[Bocage]

Visado.
Vi o sado.
Vi o Sado
Avisado.

1.1.20

#1328

Coro em coro
na vigília contra a indigência.
Coro com o coro
no sabre da decadência.

Inauguração

Não profetizo o escárnio
nem amacio as lágrimas de desdém:

torpes entorses da alma
ficam por conta 
dos que de si se representam
em tamanho lugar soez.

Eu prefiro
a serenidade das sequoias
que ficam por conta da perenidade
e conferem a beleza de um lugar.

31.12.19

Aviso de receção

Ao bater a porta
sem remorsos pelo transato
a asa do fio condutor
e o transmissor ocupado pelo devir.

Ao bater a porta
o verbo da nuca sem remissão
a paleta preenchida com as cores 
assinadas no teatro sem tirania.

Ao bater a porta:
o sextante aberto
com a crisálida toda aberta
um vaidoso pavão que desfila
no parapeito do tempo.

#1327

A ovelha negra
é a que empresta cor
ao rebanho.

30.12.19

#1326

[Efeito de Fohen]

Sem o remorso não havia a consciência. 

Força extinta

O espelho no rio
as flores todas avivadas
abertas no acolhimento do sol
balbuciam cantos literais
na sombra das pontes retalhadas.
O rio
não se coíbe
avança contra as marés escrupulosas
como se dançasse entre os rochedos
serpenteando a coreografia avulsa
mas triunfando
para gáudio dos arbustos menoscabados.
Talvez seja um simples bocejar
ou o corvo esquecido entre o nevoeiro
ou uma senhora idosa em contemplação
na varanda do seu esquecimento:

talvez seja
outra tanta coisa
afivelando seu penhor
e a corrente forte do rio, 
imune a qualquer sufrágio,
dita a sua lei intemporal.
Até que um menino
imberbe como o são os meninos
vaticina o rio puído 
mal se consume sua dissolução 
no mar sem tamanho.

#1325

Não é preciso ser vulcanólogo
para saber de erupções.

29.12.19

#1324


[Poder de contradição]

O vento a despentear
o mar ainda bravio.

#1323

Indeferimento da saudade,
se não consigo lembrar 
da posteridade.

28.12.19

#1322

[Faro]

Recruto o sal
pegamos nas mãos
e colhemos as laranjas selvagens.

27.12.19

Mostarda de Dijon

Mostarda de Dijon
lembro
a mostarda de Dijon
o talão mais parecido
com a invasiva alocução 
de não aceitáveis substâncias
(julgo).
Lembro
o que as lembranças querem
insubmissas
tutoras de sua própria vontade,
uma indomável vontade,
como indomável é a rebeldia
da mostarda de Dijon. 

#1321

O belo
efémero
pertinente
em oblívio.

26.12.19

Já é hoje

Hoje 
soube pela minha sobrinha infante
que já era hoje
quando deu pela aurora.

Perguntei-lhe,
na despedida,
quantos hoje faltam
para ser o próximo hoje 
em que nós vamos rever. 

Sentado na esplanada
com muito pouco para fazer
soube-me ocupado
pela descoberta da minha sobrinha. 
O hoje redescobre-se
quando sabemos que já é hoje. 
Estultícia
é deitar um hoje a perder
só por estarmos convencidos
que temos muitos hoje de crédito. 
Desgraçadamente,
e num laivo de excessivo otimismo
(ou de demência irracional),
nem contamos
que o hoje que é hoje
possa ser o último em crédito.

#1320

Mais ou menos
um atilho na dobra do verbo
a névoa que enfeitiça a paisagem.

25.12.19

#1319

Lançada a mão no abismo
e já ninguém fica à mercê
de suplicar: “quem me acode”?